"Olhando em perspectiva, a gente pode entender o porquê de Estados Unidos e Brasil serem os campeões mundiais em mortos pela COVID-19". Este é o entendimento do professor Marcos Cordeiro, coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (IEEI-Unesp).
Entrevistado para esta reportagem, ele falou sobre a recusa do Brasil em trabalhar com o imunizante da Rússia, a Sputnik V, e comentou o pedido de ajuda do ministro da Saúde do Brasil, Marcelo Queiroga, feito ontem (30) ao embaixador dos Estados Unidos, Todd Chapman.
O especialista em diplomacia internacional entende que o Brasil perdeu uma grande oportunidade ao rejeitar um acordo com o governo russo em função de pressão norte-americana, que instou o governo de Jair Bolsonaro a não negociar com o governo de Vladimir Putin. Agora, precisará esperar pela "diplomacia das vacinas dos EUA", o que deve demorar.
Além disso, avaliou Marcos Cordeiro, a recusa das vacinas russas provocou efeitos políticos para o Brasil. O país colhe os frutos de um alinhamento ao governo do ex-presidente Donald Trump, e encontra-se, no momento, isolado da comunidade internacional, sendo visto como um risco sanitário global.
A pressão dos EUA sobre a América Latina
Ao abordar a pressão norte-americana no combate à COVID-19 na América Latina, o professor aponta que há dois elementos que devem ser considerados.
"Em primeiro lugar, ao politizar a pandemia da COVID-19, o governo de Donald Trump agiu para atrapalhar a cooperação internacional e criar uma disputa geopolítica, buscado demonizar a China e desacreditar a eficiência da vacina russa Sputnik V", explicou.
Marcos Cordeiro também criticou a forma como Trump abordou a importância da vacinação mundial, e disse que enquanto carregamentos de insumos destinados ao Brasil eram desapropriados, "o governo dos Estados Unidos aprofundava o negacionismo ao doar para o Brasil dois milhões de doses de hidroxicloroquina".
"Se tudo isso se restringisse aos Estados Unidos já seria um desastre. Mas as redes associadas ao governo Trump difundiram essas asneiras em escala global, principalmente no Brasil, cujo governo reproduziu integramente o negacionismo", avaliou o especialista.
Quando tudo começou...
Em sua análise, Marcos Cordeiro fez uma releitura sobre a cronologia da pandemia no último ano. Ele lembrou que, em 2020, durante o governo de Donald Trump, "os Estados Unidos fizeram um imenso desserviço ao combate da pandemia. Principalmente por politizar a doença, chamando-a de vírus chinês".
Neste sentido, ele relembrou ainda as recusas norte-americanas em apoiar iniciativas de coordenação por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para ele, há um momento claro que define como o Brasil e os EUA tratariam a chegada da pandemia: a questão da cloroquina.
"Mais adiante, ambos governos passaram a defender a cloroquina como tratamento para a doença. O Brasil reproduziu e replicou uma série de mentiras sobre a gravidade da doença, sobre a ineficácia de vacinas e sobre tratamentos esdrúxulos e ineficientes", disse o professor.
Aliados?
De acordo com o Ministério da Saúde, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, teria se colocado à disposição para auxiliar a ampliar a oferta de oxigênio, incluindo cilindros e caminhões para transporte, além de remédios do kit intubação.
Questionado sobre o Brasil ter pedido vacinas ao país que o persuadiu contra o uso da Sputnik V, o professor fez uma leitura sobre o que chamou de "diplomacia das vacinas" dos EUA. Ele avaliou como positivas as mudanças propostas por Joe Biden no combate à COVID-19, porém alertou.
"Uma coisa não mudou: a intensificação das rivalidades [dos EUA] com a China e a Rússia, que está atingindo outro patamar", disse.
"Do lado brasileiro, também houve mudanças, já que o governo federal reverteu parte de seu negacionismo e passou a apostar na vacinação em massa e também em uma mudança na chefia do Ministério da Saúde", explicou Marcos Cordeiro.
Neste sentido, ele avalia que "houve uma maior sintonia entre a área da saúde do Brasil com a dos Estados Unidos, chegando ao ponto de ocorrer uma reunião entre o novo ministro e Antony Faucci, a principal autoridade epidemiológica estadunidense".
"Entretanto, apesar dessa nova abordagem, dificilmente o Brasil obterá um lote expressivo de vacinas, pois nesse aspecto continua valendo a premissa do 'América Fisrt'. A expectativa mais realista é a de que apenas em julho, depois de vacinar a maior para de seus cidadãos, é que o governo Biden iniciará a própria diplomacia das vacinas".