A Sputnik Brasil pesquisou em cada uma das regiões do país — Sul, Sudeste, Norte, Centro-Oeste e Nordeste — um produto que se destaca nessas atividades para dar uma visão sobre como ele contribui para a geração de renda das famílias, principalmente em um momento difícil para a economia brasileira por conta da pandemia do novo coronavírus.
A agricultura e o extrativismo familiar geram renda e criam uma rede capilarizada de produção/extração geralmente agrupada em cooperativas, que gerenciam o beneficiamento e venda dos mais diversos produtos, sejam in natura ou industrializados.
De cada região há como se abordar um caso de sucesso desse tipo de atividade.
Em uma época em que o desemprego atinge níveis sem precedentes, a agricultura e o extrativismo familiar continuam sendo uma solução para geração de renda para milhares de famílias brasileiras.
A agricultura e o extrativismo familiar são atividades realizadas por pequenos proprietários rurais, tendo como mão de obra, essencialmente, o núcleo familiar, em contraste com a agricultura patronal, que utiliza trabalhadores contratados, fixos ou temporários, em propriedades médias ou grandes.
A atividade é a principal responsável pela produção dos alimentos que são disponibilizados para o consumo da população brasileira. É constituída de pequenos produtores rurais, povos e comunidades tradicionais, como os quilombolas, por exemplo.
O setor se destaca pela produção de milho, mandioca, olerícolas, feijão, cana, arroz, café, trigo, mamona, fruticulturas e hortaliças. Na parte extrativista, chamam a atenção cacau, açaí, frutas do cerrado, palmito e castanhas.
Sul: o cultivo da uva no Rio Grande do Sul
O vinho é uma herança passada de geração para geração na Região Sul, em especial na Serra Gaúcha, que detém hoje 85% da produção nacional de vinho e derivados, segundo dados disponibilizados pela EMBRAPA.
Na região, muitos pequenos produtores de uva tornaram-se grandes empresários do ramo de vinhos, mas a grande maioria continua sendo de pequeno porte.
Enio Todeschini, engenheiro agrônomo e extensionista rural da EMATER-RS disse à Sputnik Brasil que o estado do Rio Grande do Sul cultiva comercialmente 44 mil hectares de parreiras, majoritariamente americanas e híbridas, destinadas principalmente à produção de vinhos, sendo que nos últimos seis a oito anos também à produção de suco para consumo interno e exportação.
Ele confirma que é uma agricultura basicamente familiar, uma atividade que envolve a família toda. Em 80% dessa área de 44 mil hectares no Rio Grande do Sul a principal atividade — ou uma das principais dentro da agricultura familiar — é a aplicação da força de trabalho na viticultura.
Segundo Todeschini, os maiores desafios que estas famílias enfrentam é a questão do investimento: "A implantação do vinhedo é bastante cara, precisa de toda a estrutura de parreiral, do ramado e posteação... As mudas também pesam bastante, e para tentar compensar as perdas na rentabilidade a família viticultora cada vez mais aumenta a área de plantio".
Com isso, há efeitos cumulativos. Em um ano de safra cheia ou supersafra, há uma quantidade de uva às vezes acima da capacidade da indústria de absorver esse produto e transformá-lo. Eis aí um grande desafio de acordo com Todeschini: conciliar o volume produzido — que precisa ser cada vez maior para compensar as perdas da rentabilidade — com a questão da indústria, como ela vai absorver toda essa produção, que esse ano chegou perto de um milhão de toneladas no Rio Grande do Sul.
"O destino da produção da uva familiar no estado é basicamente a indústria local para transformação, para os dois produtos vinho de mesa e suco, seja ele integral ou de forma concentrada para exportação, reduzindo assim custos de frete. Essa cadeia produtiva traz grandes efeitos na geração de empregos, de retorno de ICMS, de toda a indústria agregada na cadeia vitivinícola, desde a produção de insumos, transporte, envolvendo um volume bastante grande de dinheiro e de pessoas", explicou o engenheiro agrônomo.
Sudeste: o arroz de Italva, no Rio de Janeiro
Produtores rurais do município de Italva, no Noroeste Fluminense, já iniciaram a colheita da safra 2021/2022 dos cultivos de arroz vermelho e arroz preto, chamados também de gourmet, que têm características diferenciadas do arroz tradicional.
A tecnologia desenvolvida e entregue para famílias da cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro é do Centro Estadual de Pesquisa em Agroenergia e Aproveitamento de Resíduos, da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro (Pesagro-Rio), em parceria com a EMATER-RIO.
A Sputnik Brasil ouviu o supervisor do Escritório local da EMATER-RIO em Italva, Wagner do Nascimento. Ele explicou que o município já teve uma grande aptidão para a cultura do arroz branco no passado, que foi recuperada pelo Programa Rio Rural, com incentivos a subprojetos econômicos aos pequenos agricultores.
"O PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar — foi outro fator que fez com que a cultura do arroz branco em Italva fosse recuperada, que a partir de 2013 possibilitou ao produtor vender com preço justo, diretamente para a prefeitura. Em 2016 surgiu a demanda pelo arroz gourmet (preto e vermelho), produto que não era produzido no estado do Rio de Janeiro e que tinha um valor considerável de mercado", continuou Nascimento.
Começou então uma parceria entre Pesagro-Rio, EMATER-RIO e os produtores rurais de Italva, a fim de testar essas variedades gourmet com os agricultores familiares. A cada ano houve aumento no número de produtores interessados no plantio desse arroz, devido a sua grande demanda e valor de mercado, conforme explicou o supervisor da EMATER-RIO.
Nascimento disse que existem gargalos comuns como em qualquer outra produção, mas o arroz gourmet continua sendo um ótimo negócio para a agricultura familiar na região.
Norte: o açaí silvestre do Pará
No Norte, um dos grandes exemplos de extrativismo familiar é o ligado a um fruto apreciado em todo o país: o açaí.
O açaí é o fruto de uma palmeira (Euterpe oleracea) muito comum na região da Amazônia que produz um fruto bacáceo de cor roxa, muito utilizado na confecção de alimentos e bebidas.
A Sputnik Brasil entrevistou José Leite, analista da EMBRAPA-PA. Ele disse que hoje é muito pequeno o número de famílias que vivem puramente do extrativismo de açaí, no estrito senso. Segundo ele, qualquer que seja o nível de intervenção sempre é feita alguma: "Corte, seleção de estirpes, mudança de lugar de plantas, sempre há alguma coisa sendo feita", explicou o especialista.
"Creio que dificilmente o volume de açaí oriundo puramente do extrativismo passe de 10%. Acho que em mais de 90% há algum tipo de intervenção na área, não é exatamente o manejo de impacto que a gente recomenda, mas sempre é feita alguma intervenção [pelas famílias que vivem da colheita de açaí]", explicou José.
No Estado do Pará, o analista da EMBRAPA disse que o principal desafio dessas famílias é o período de entressafra, pois na safra os problemas são mínimos, porque eles tem açaí suficiente para alimentação. A questão de segurança alimentar dessas famílias é praticamente resolvido, porque o fruto entra em uma proporção muito grande na dieta alimentar dos ribeirinhos e, com o excedente, eles têm renda para resolver outros problemas, como por exemplo adquirir alguns bens permanentes, um barco, melhorar suas casas, comprar um motor para gerar energia.
"Então, hoje, o ribeirinho está tendo acesso a esses bem sem grande dificuldade, visto que o excedente de açaí normalmente é suficiente, porque o agricultor extrativista faz algum tipo de intervenção, de manejo, e, com isso, tem produções melhores", explicou José.
Financeiramente falando, a conclusão a que se chega é que para o pequeno produtor a extração do açaí compensa: "O principal produto da região do Marajó, da mesorregião do Marajó e do baixo Tocantins com certeza é o açaí. Todos os trabalhos de consultoria encomendados pelo PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] que deram origem à atividade de manejo de açaizal já mostraram isso".
"Quase todas as famílias dos municípios do Marajó e do baixo Tocantins, de uma maneira ou de outra, se beneficiam do açaí. Ou eles são manejadores-extratores, ou são intermediários, ou eles têm batedeira na cidade, é um número muito grande [...] Eu diria que pelo menos 80% das famílias da região de alguma forma dependem ou têm relação com a cultura do açaí, com o extrativismo ou com o cultivo".
Centro-Oeste: baru, fruto do Cerrado do Mato Grosso do Sul
O baru ou cumbaru (Dipteryx alata) é o fruto do baruzeiro, árvore nativa do Cerrado brasileiro. Infelizmente, esta espécie está ameaçada devido à extração predatória de madeira. Ela possui reconhecida resistência e qualidade, com propriedades fungicidas.
A planta é imponente, com uma copa densa, e pode alcançar mais de 20 metros de altura. O seu fruto é protegido por uma dura casca e, no interior, encontra-se uma amêndoa de sabor parecido com o do amendoim, de alto valor nutricional.
O baru possui cerca de 26% de teor de proteínas, mais do que castanha do Pará e castanha de caju, por exemplo. O fruto pode ser utilizado integralmente, resultando em polpas de fruta, óleos, farinha e manteiga. A ele são associadas propriedades afrodisíacas. Seu óleo tem propriedades medicinais antirreumáticas.
Luis Roberto Carrazza, secretário executivo da Central do Cerrado — cooperativa que reúne diversas organizações comunitárias que desenvolvem atividades produtivas a partir do uso sustentável da biodiversidade do Cerrado e da Caatinga — falou com a Sputnik Brasil sobre a principal característica do extrativismo familiar na Região Centro-Oeste.
"Trabalhamos com o conceito de agroextrativismo que combina a produção agroecológica de frutas, legumes, verduras, pequenos animais, gado e outras atividades da agricultura familiar com a coleta e aproveitamento dos produtos a biodiversidade nativa", explicou Luis.
Segundo ele, o trabalho é familiar, geralmente organizado em comunidades e baseado no uso de tecnologias sociais ou apropriadas, desenvolvidas e disseminadas pelos próprios agricultores.
"Esse modelo combina a produção de alimentos e promoção da segurança e soberania alimentar com a conservação da biodiversidade, geração de renda, manutenção dos modos de vida tradicionais, da permanência das famílias no campo, manutenção dos territórios, das paisagens produtivas valorizando o saber e a cultura local", continuou Luis.
Luis comentou que o baru finalmente está sendo conhecido e sua produção tem crescido exponencialmente em todos os estados do Cerrado onde há a ocorrência do fruto. Porém, segundo ele, não existem dados organizados que mostram quantas pessoas estão envolvidas na cadeia produtiva do baru.
Contudo, o especialista explicou que no âmbito da Central do Cerrado há vários núcleos produtivos operando na cadeia desse fruto nos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Tocantins, envolvendo no total mais de duas mil famílias.
Nordeste: o cacau agroecológico na Bahia
O cacau "cabruca" é um sistema ecológico de cultivo agroflorestal, termo regional usado para caracterizar uma forma de plantio de cacau na mata atlântica, sem prejudicar a preservação do bioma.
Entende-se como sistema cabruca o cultivo do cacau sob o dossel de uma floresta nativa. As cabrucas foram estabelecidas através da remoção do sub-bosque e raleamento das copas das árvores da floresta densa que recobria originalmente boa parte da região cacaueira baiana.
Carine Assunção, produtora e também diretora-presidente da Cooperativa de Serviços Sustentáveis da Bahia (Coopessba), explicou em entrevista à Sputnik Brasil que a agricultura do cacau na região do sul da Bahia é desse tipo, e as famílias que vivem da extração do fruto trabalham nesse sistema.
"Assim, elas conservam a Mata Atlântica, muito mais do que os grandes produtores, porque a agricultura familiar — como é de pequena escala — conserva o bioma", explicou Carine.
Ela disse que o cacau agora está sendo renovado, está dando um retorno satisfatório para os produtores. A Coopessba reúne 87 famílias, cuja principal cultura é o fruto, mas que também cultivam outros vegetais, só que em menor escala.
Em relação aos desafios da cultura, com a renovação das plantas e manejo das mudas surgiram variedades mais resistentes à vassoura de bruxa, praga que ataca o fruto e causa grandes prejuízos. Por isso é importante, segundo Carine, mudar a cabeça de alguns produtores, para que deixem a mata um pouco mais raleada, porque a vassoura-de-bruxa (Crinipellis perniciosa) é um fungo que se espalha se a vegetação estiver muito fechada.
"Os técnicos ensinam a fazer a poda da maneira correta, na mata também [...] Na realidade é o manejo, porque o cacau não precisa de maquinário", explicou Carine.
Segundo ela, o que o produtor precisa é só fazer o manejo adequado para se obter um cacau de qualidade. Os cooperativados trabalham para obter um chocolate certificado, de procedência sul da Bahia. "Para isso, a gente ensina a fazer compostagem orgânica, o que fazer com as cascas na roça, a quebra do cacau que fica na roça..."
Carine deu o exemplo do momento atual, quando se está iniciando a safra temporã do cacau, uma safra pequena, mas quando é explicado ao produtor que não deixe as cascas da quebra no roçado de qualquer jeito, pois assim pode haver aumento de doenças para o cacauzeiro.
"Então isso tudo é focado pela assistência técnica [...] O produto não precisa ter adubação química, só apenas com o manejo correto, com adubação orgânica, só com o que tem na roça ele pode ser autossustentável, estar produzindo sem precisar ao mesmo tempo ser agressivo", concluiu a produtora.
Panorama
O mais recente Censo Agropecuário — realizado em 2017 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) — fez um levantamento em mais de cinco milhões de propriedades rurais de todo o Brasil. Os dados apontam que 77% dos estabelecimentos agrícolas do país foram classificados como de agricultura familiar.
Em extensão de área, a agricultura familiar ocupava no período da pesquisa 80,9 milhões de hectares, o que representa 23% da área total dos estabelecimentos agropecuários brasileiros.
O governo federal oferece linhas de crédito para o setor rural através do MAPA. O valor das contratações de crédito rural somou R$ 169,44 bilhões entre julho de 2020 e março de 2021, o que representa um aumento de 22% em relação a igual período da safra anterior.
As contratações de crédito rural são feitas pelos pequenos e médios produtores no âmbito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), mitigando assim um dos grandes desafios para o produtor familiar: recursos financeiros para ele iniciar ou ampliar sua produção.