No que diz respeito às cotas, o plano pretende definir um contingente especial adicional de vagas no acesso ao ensino superior e cursos técnicos superiores profissionais para alunos das escolas do programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). Atualmente, são 136 agrupamentos de escolas em locais socioeconomicamente desfavorecidos, marcados por pobreza, exclusão social, violência e abandono escolar.
Em entrevista à Sputnik Brasil, a deputada Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda, elogia o plano, mas diz que é preciso ampliar as cotas étnico-raciais para além do programa TEIP. Ela lembra que a reserva de vagas para comunidades racializadas não será disruptiva, uma vez que já existem outros contingentes para grupos como maiores de 23 anos.
"Os TEIP resultam da segregação territorial, com populações empurradas para as periferias das cidades, mas não exclusivamente cigana ou afrodescendente. Pensar que os alunos que sofrem discriminação só estão nesse território é errado. Há outras escolas que não serão beneficiadas por essa medida. É preciso alargar a medida e torná-la universal", recomenda.
O plano segue em consulta pública até o dia 10 de maio e depois será encaminhado à Assembleia da República, onde será debatido e votado pelos deputados. Um dos entraves para a universalização da medida é o de que o Censo que decorre este ano excluiu perguntas sobre a origem étnico-racial.
A deputada do BE diz que o partido havia reivindicado que a autodeclaração étnico-racial fosse voluntária e confidencial, em que só o Estado teria acesso a esses dados. No entanto, a medida não foi aprovada. O governo optou por implementar um Inquérito Piloto às Condições, Origens e Trajetórias da População residente em Portugal, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), "tendo em vista contribuir para a prevenção e o combate ao racismo e à discriminação", segundo o plano.
Para a parlamentar, que é candidata à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, o Brasil é uma referência com sua Lei de Cotas, que, desde 2012, reserva no mínimo 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, que são preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Segundo ela, o exemplo brasileiro deve ser estudado e seguido, guardadas as devidas proporções, já que o país tem uma população majoritariamente negra, diferentemente de Portugal.
"É inspirador como os movimentos sociais no Brasil construíram esse caminho. É muito importante trazer o movimento social e a academia para o debate público. Essas conquistas no Brasil resultam da luta intransigente do Movimento Negro. Estamos num processo de disputa desse espaço [em Portugal]", compara.
Conselho Nacional de Educação apoia a medida
As cotas encontram respaldo também no Conselho de Reitores de Universidades Portuguesas (CRUP) e no Conselho Nacional de Educação (CNE). Ao Público, o presidente do CRUP e reitor da Universidade do Porto, António Sousa Pereira, classificou a ideia como excelente, pois permite ascensão social, e citou os exemplos de Brasil, Estados Unidos e França com "resultados muitíssimos bons".
Já Maria Emília Brederode Santos, presidente do CNE, informa à Sputnik Brasil que uma recomendação feita pelo conselho em novembro de 2020 já chamava atenção para a necessidade da promoção de um programa nacional de educação antirracista e para os direitos humanos, envolvendo atividades curriculares, extracurriculares e de educação não-formal. Esse é um dos 12 pontos da recomendação emitida pelo órgão.
"O objeto da nossa preocupação era, para além dos imigrantes/estrangeiros em geral, em especial os afrodescendentes e a comunidade cigana. Uma educação que valorize o contributo de outros povos é uma estratégia de longo prazo. O recurso às cotas para o ensino superior é uma estratégia que poderá ajudar no curto e médio prazos", explica.
Outro ponto da recomendação do CNE diz que as escolas devem fomentar procedimentos específicos e orientações para acolhimento de alunos estrangeiros, nos regulamentos internos, promovendo a interação positiva entre estudantes, recorrendo a projetos de mentoria ou tutoria e combatendo situações de discriminação étnico-racial. No plano nacional apresentado pelo governo português, esse tópico aparece com a criação de um Observatório Independente do Discurso de Ódio, Racismo e Xenofobia.
Questionada pela Sputnik Brasil especificamente sobre como combater a xenofobia contra brasileiros nas escolas, traduzida em pichações como "zukas, voltem para as favelas", que ocuparam as paredes de instituições de Lisboa no fim de outubro de 2020, a presidente do CNE aposta na educação como forma de resolver os problemas de uma forma mais profunda e capacitadora dos cidadãos, mesmo quando confrontada sobre a necessidade de haver punições mais rigorosas.
"Deveremos estar muito atentos também a comportamentos xenófobos relativamente aos imigrantes brasileiros. Certamente que o faremos. É provável que 'só educação e conscientização' não cheguem e que 'seja preciso mais rigor nas punições'. Nas escolas não poderá haver comportamentos xenófobos. Se existirem, terão que ser trazidos à luz do dia, debatidos e objeto de intervenções educativas apropriadas", defende.
Estudo mostra que brasileiros têm notas menores que portugueses
No mesmo dia em que o plano nacional foi anunciado, a Universidade Nova de Lisboa divulgou os principais resultados do estudo "Inclusão ou discriminação? Da análise dos resultados escolares às estratégias para o sucesso dos alunos com origem imigrante".
A pesquisa, feita em parceria com os Empresários pela Inclusão Social (EPIS), mostra, por exemplo, que "os alunos naturais dos PALOP [Países Africanos de Língua Portuguesa] e do Brasil têm, em média, cerca de menos 13 pontos no exame de Matemática quando comparados com alunos naturais de Portugal com as mesmas condições socioeconômicas".
Para além da educação, cultura e ensino superior, o plano quinquenal enumera 10 outras áreas de intervenção: governação, informação e conhecimento para uma sociedade não discriminatória; trabalho e emprego; habitação; saúde e ação social; justiça, segurança e direitos; participação e representação; desporto; meios de comunicação e o digital.
As áreas de atuação são norteadas por quatro princípios transversais: desconstrução de estereótipos; coordenação, governança integrada e territorialização; intervenção integrada no combate às desigualdades; e interseccionalidade.
No campo de trabalho e emprego, por exemplo, o plano recomenda práticas de contratação para promover maior diversidade, como recrutamento cego e metodologias desenvolvidas com parceiros sociais, além de programas que assegurem igualdade na progressão de carreira e o acesso a lugares de liderança por parte de profissionais de grupos discriminados.
Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e investigadora em pós-doutoramento no projeto "POLITICS - A política do Antirracismo na Europa e América Latina", no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Danielle Pereira de Araújo sente a discriminação na pele. Literalmente.
Uma das poucas negras na pós-graduação da universidade, ela conta que, além de ser acompanhada por um segurança na maioria das vezes em que vai fazer compras em um supermercado de Coimbra, já ouviu de uma jovem estudante, nas escadarias da instituição, a clássica frase xenofóbica dita por portugueses: "Volta pra sua terra".
"Sempre que há uma fresta, o imaginário colonial de que corpos negros não pertencem a esse local é rapidamente ativado. Mais importante do que olhar para o racismo cotidiano, é importante questionar a estrutura que permite que esses indivíduos se sintam legitimados para fazer o que fazem. Acho que o plano é um primeiro passo fundamental na problematização do racismo em Portugal desde a estrutura", avalia Danielle.
A especialista acrescenta que, no Brasil, além da Lei de Cotas, a lei 10.639, de 2003, incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". O plano nacional português prevê a inclusão de conteúdos, imagens e recursos sobre diversidade e presença histórica dos grupos discriminados, e processos de discriminação e racismo, nos currículos e manuais escolares de disciplinas.
"Tal como o Brasil, Portugal ainda nega profundamente o seu passado e o presente colonial. Os tensionamentos trazidos pelo Movimento Negro em Portugal, expressos no plano, indicam que já é insustentável a cegueira racial na qual a sociedade e o Estado portugueses têm insistido em permanecer por várias décadas", afirma à Sputnik Brasil.
Danielle recomenda que as cotas étnico-raciais se deem em todas as fases do acesso ao ensino superior e não apenas em uma delas. Caso a reserva de vagas seja estendida a estudantes que não pertencem ao programa TEIP, o que seria louvável segundo ela, há de se instituir a autodeclaração étnico-racial em todas as escolas para mapear esses grupos para a política pública poder inclui-los. Assim, ela acredita que o ambiente universitário português possa deixar de ser majoritariamente branco e o acesso à educação passe ser mais democrático.
"Vemos uma ausência chocante, brutal de pessoas negras na universidade não apenas de Coimbra, mas em outras instituições portuguesas. Tal como no Brasil há alguns anos, vemos pessoas negras ocupando o espaço de serviço de limpeza, mas não como estudantes ou professores. Isso acaba por manter a universidade como ilha branca de privilégios", conclui.