Depois de dois anos e sete meses da fase instrutória, a decisão foi proferida na última sexta-feira (9). No âmbito da Operação Marquês, cujas investigações começaram há sete anos, agora Sócrates vai a julgamento por três crimes de branqueamento de capitais (lavagem de dinheiro) e outros três de falsificação de documentos, assim como seu amigo Carlos Santos Silva, acusado de ser seu corruptor.
O juiz alegou que os crimes por corrupção passiva de titular de cargo político do ex-líder do Partido Socialista (PS) prescreveram. O Ministério Público vai recorrer da decisão. O ex-primeiro ministro, que governou Portugal entre 2005 e 2011, concedeu uma entrevista a correspondentes estrangeiros na Ericeira, a 40 minutos de Lisboa, nesta quinta-feira (15). Na estrada, uma faixa foi colocada em uma passarela com a inscrição "A decência não prescreve".
"Falei com o presidente Lula muito recentemente. Ele ligou para me felicitar pelo resultado [da decisão instrutória]. Dei o meu ponto de vista sobre o que estava a acontecer", disse Sócrates, em resposta à Sputnik Brasil.
Segundo um dos sócios brasileiros do restaurante que Sócrates escolheu para local da entrevista, dias antes, a mesma faixa fora estendida em frente ao estabelecimento em protesto de poucas pessoas contra o ex-ministro. Na noite anterior ao encontro com os jornalistas da Associação de Imprensa Estrangeira de Portugal (AIEP), foi possível ouvir panelaços em alguns bairros de Lisboa, como no Campo de Ourique, no início da entrevista que ele concedera à TVI.
Sócrates chegou descontraído à entrevista com os correspondentes estrangeiros. Mencionou que o bar era dirigido por brasileiros surfistas que faziam caipirinhas muito bem. As referências ao Brasil são constantes em "Só agora começou", livro que está lançando em Portugal (pela editora Actual) e também no Brasil (pela Contracorrente), com textos que escreveu na prisão, em 2014, e outras reflexões de 2018, quando começou o processo instrutório.
Na obra, prefaciada pela ex-presidente Dilma Rousseff, Sócrates tenta estabelecer um paralelo entre as operações Marquês e Lava Jato, grafando-as sempre com letras minúsculas. O Brasil ou variantes semânticas são citados 45 vezes. O ex-presidente Lula é citado 19 vezes, quase o dobro do que o engenheiro Carlos Santos Silva, amigo do ex-primeiro ministro. Já o nome de Sergio Moro aparece em nove ocorrências, duas a mais do que a do juiz Carlos Alexandre, que decretou sua prisão preventiva.
Sócrates ficou preso por 11 meses; Lula, por 580 dias. Questionado pela Sputnik Brasil quais as semelhanças via entre o seu processo e o de Lula, o ex-primeiro ministro português levanta a tese do lawfare, com uso indevido de recursos jurídicos para perseguição política, defendida também por Dilma no prefácio do livro e usada como conceito-chave pelos advogados do ex-presidente petista.
"Há semelhanças absolutamente extraordinárias: no Brasil, como em Portugal, escolheram o juiz. Quem escolheu o juiz de Curitiba? A lei? Não, o Ministério Público. Lá como cá, uma das partes escolheu o juiz. Em todos os casos do lawfare, começa-se pela escolha de um juiz: 'Queremos um juiz que esteja do nosso lado'", compara.
Paralelo entre triplex no Guarujá e apartamento de luxo em Paris
Sócrates também faz um paralelo entre o triplex do Guarujá, que foi atribuído a Lula, e um apartamento de luxo em Paris, onde o ex-premiê morou entre 2012 e 2013, e cuja escritura de compra e venda no valor de € 2,6 milhões (R$ 17,4 milhões) é assinada por seu amigo Carlos Santos Silva. O MP acusava o ex-líder socialista de lavagem de dinheiro por ser o verdadeiro dono do imóvel, apontando, entre outros indícios, o fato de ele ter coordenado as obras de reforma.
No entanto, o juiz Ivo Rosa descartou esse crime e criticou o MP por não ter feito diligências básicas, como ouvir o porteiro do prédio, o empreiteiro e o arquiteto responsável pelas obras. O crime que irá a julgamento, associado ao apartamento, será de falsificação de documentos, pois Sócrates e seu amigo teriam firmado um contrato de aluguel pelo imóvel em data posterior à sua estadia, com o valor mensal de € 3 mil (R$ 20,1 mil) mas sem nenhuma prova documental que parte das quantias teria sido paga, segundo o magistrado.
"O triplex foi apresentado como um apartamento de luxo, do qual Lula não foi proprietário. A mesma coisa que vivi 9 meses num apartamento de um amigo, e disseram que era meu. E eu tive que provar que não era meu. No dia em que fui preso, em novembro de 2014, eu tinha um apartamento alugado em Paris, porque saí do apartamento do meu amigo. Ele fez as obras para colocar o apartamento no mercado, e eu aluguei um outro. É impossível que aquele apartamento fosse meu. É absurda essa acusação", defende-se Sócrates.
De acordo com ele, ambos os juízes, Sergio Moro e Carlos Alexandre, foram transformados em super-heróis pela mídia. "Há um fio que os une e que é produto de um certo storytelling – essa ambição que as televisões, na verdade, nunca abandonaram: somos nós que criamos os personagens. Certo: a Globo dá a Moro o prêmio de personalidade do ano; a SIC faz uma entrevista de vida a Carlos Alexandre", lê-se em um trecho do livro.
Ambos os juízes estiveram nas Conferências de Estoril, em 2017, passagem que é resgatada pela obra. Há uma diferença, contudo, entre os dois. Carlos Alexandre permanece na magistratura, enquanto Moro, como se sabe, deixou a carreira de juiz para embarcar na política, como Ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro.
Em outro trecho de "Só agora começou", o autor se refere "à arrogância do abusador" ao mencionar o episódio em que Moro levantou o sigilo do inquérito em que constavam as escutas telefônicas entre Dilma e Lula, mesmo após o horário em que havia determinado a interrupção das interceptações. Indagado pela Sputnik Brasil se acredita que o ex-juiz tinha um projeto de poder político, Sócrates é ainda mais incisivo.
"Uns anos depois, percebe-se o vazio dos personagens, porque se percebe que são apenas hipócritas. Usam a toga para construir uma biografia política. Mais tarde ou mais cedo, se percebe a mediocridade, quer na Justiça, quer na política. Foi o que aconteceu com o Sergio Moro. Ele nunca foi um juiz, sempre foi um ativista político. Queria ir para o governo e foi medíocre. Saiu e continua medíocre. Não passa de um medíocre que, depois daqueles sonhos de que seu nome ficaria na história da política brasileira gravado com letras de ouro, descobre que ficará a falar para as pedras no deserto", dispara.
Sputnik Brasil procurou a assessoria de imprensa do ex-juiz Sergio Moro, mas ele não quis se manifestar sobre as declarações de Sócrates.
Admiração pelo apoio do PT a Lula e decepção com o PS
Outra diferença no paralelo entre Brasil e Portugal é o apoio político que Lula, mesmo preso, sempre recebeu do Partido dos Trabalhadores (PT), como natural que fosse, mas que Sócrates jamais obteve do PS. Pelo contrário, nesta terça-feira (13), o socialista Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, disse que o seu "comportamento corrói a democracia e que o aceitamento de dinheiro é inaceitável do ponto de vista ético".
Na entrevista à TVI, Sócrates não quis responder diretamente a Medina, mas se dirigiu à direção do PS, afirmando que essas declarações são de uma "profunda canalhice". No livro, o ex-líder socialista confessa que tem "uma profunda admiração pelo comovente companheirismo" do PT com Lula, deixando nas entrelinhas sua decepção com o seu antigo partido. Aos correspondentes estrangeiros, no entanto, externalizou sua mágoa.
"Nunca pedi nada ao PS. Era um caso judicial. Mas nunca esperei que o PS, a quem nunca pedi nada, pedisse uma condenação sem julgamento, tivesse uma atitude de quem quer condenar sem dar oportunidade à defesa. Foi isso que me levou a sair do partido. Tenho uma divergência com a direção do PS, não com seus militantes", justificou.
Sócrates não quis responder perguntas sobre seu futuro político. No entanto, reafirmou a tese de que foi preso para que não pudesse disputar as eleições presidenciais de 2016. Nesse ponto, sua história volta a se cruzar com a de Lula, que argumenta que sua prisão também era um projeto político para tirá-lo da disputa presidencial em 2018.
Como o livro foi escrito até setembro de 2018, com a ideia de ser publicado apenas após a decisão instrutória, Sócrates indaga em um trecho sobre o Brasil: "Quem será capaz de se elevar acima do trauma e do ressentimento, estendendo a mão para um novo começo? Ninguém sabe, mas arrisco dizer que quem o pode fazer está preso há quatro meses".
Faltavam 50 dias para as eleições brasileiras de 2018 quando escreveu esse trecho. Confrontado com a mesma pergunta pela Sputnik Brasil, a um ano e meio para as presidenciais de 2022 no Brasil, Sócrates comparou Lula a Nelson Mandela.
"No caso brasileiro, em que a política passou por tamanho trauma, em que estão colocados desafios muito sérios à democracia, é preciso alguém que tenha uma biografia para construir um pacto social. Tem que ser alguém [que tenha] sofrido com um crime e seja capaz de se elevar acima desse sofrimento para um novo recomeço. Foi assim na África do Sul, com Mandela, que sofreu e estendeu a mão. Lula tem o apoio de uma larga maioria da esquerda. Estou convencido de que ele é o personagem ideal para fazer uma nova reconciliação social", opinou.
Sócrates não quis responder a perguntas da Sputnik Brasil sobre Bolsonaro, mas mandou um recado aos militares brasileiros.
"Tenho muita confiança na democracia brasileira. Acabarão por ultrapassar todas as dificuldades. Para esses aventureiros militares que acham que podem fazer alguma intervenção, é preciso dizer-lhes que já não estamos nos anos 60. Uma das doenças do Brasil é a normalização da ideia de que pode haver militares da ativa em cargos governamentais. Nas democracias maduras, isso não acontece nem deve acontecer. O lugar dos militares é no Exército", concluiu.