Militares portugueses veem golpe em reforma das Forças Armadas; especialista diverge

A Associação de Oficiais das Forças Armadas de Portugal emitiu um comunicado em que repudia a reforma das leis militares em curso, vista como um golpe que leva a degradação da democracia a um patamar preocupante no país. Especialista ouvido pela Sputnik considera exagerado o posicionamento.
Sputnik

A Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA) e a adaptação a esta da Lei de Defesa Nacional foram aprovadas em Conselho de Ministros no dia 8 de abril e vão ser debatidas no Parlamento a partir de 12 de maio. A expectativa do ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, é de que a aprovação pelos deputados aconteça até o verão europeu.

A principal mudança é a concessão de maiores poderes ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), ao qual ficarão subordinados hierarquicamente os chefes militares dos três ramos (Exército, Marinha e Força Aérea). Ele ficará responsável pela coordenação de assuntos de natureza conjunta, do planejamento do conceito estratégico militar ao sistema de forças. 

Militares portugueses veem golpe em reforma das Forças Armadas; especialista diverge

Entre os militares, um dos maiores receios é o da perda de autonomia de cada uma das forças. No último domingo (25), o tenente-coronel da reserva Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril e uma das lideranças da Revolução dos Cravos, chegou a dizer que a Assembleia da República está prestes a aprovar uma alteração na estrutura das Forças Armadas que vai apontar para acabar de vez com as Forças Armadas. À Sputnik Brasil, ele explica o que quis dizer com a declaração.

"Foi uma figura de retórica para dizer que, se continuarem a destruir o conceito da condição militar, que tem sido espezinhada, e se transformarem em uma organização mais governamental, as Forças Armadas terminariam. São uma instituição nacional que deve obedecer ao poder político desde que seja democrático. Obediência é uma coisa, mas subserviência é outra", alerta Vasco Lourenço.

O discurso está alinhado com o comunicado emitido pela Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) e assinado pelo também tenente-coronel António Augusto Proença da Costa Mota, presidente do Conselho Nacional da instituição. Ambos consideram que os problemas mais urgentes a serem resolvidos são a falta de meios e efetivos, o déficit de manutenção e a baixa remuneração dos militares, sem aumento há mais de uma década.

"A AOFA repudia o processo em curso, que aproveita a pandemia/surto epidêmico, o confinamento e um clima de permanente tensão para atestar mais um golpe nas Forças Armadas. A promoção de uma Força Armada não é um desígnio constitucional. A partidarização/governamentalização das Forças Armadas não é caminho a seguir", lê-se em um trecho do comunicado.

O argumento do governo vai no sentido contrário, de que, com a reforma, o poder político passaria a ser essencialmente estratégico, não precisando funcionar como orientador operacional. Lourenço duvida da intenção e acredita que as forças se tornariam mais burocráticas. 

Nova estrutura segue padrão da UE e da OTAN, diz analista

Em entrevista à Sputnik Brasil, José Palmeira, professor de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade do Minho, afirma que, em teoria, a reforma poderá aumentar a eficácia da estrutura hierárquica das Forças Armadas e facilitar o seu relacionamento com o governo, passando o poder político a ter um único interlocutor na estrutura militar, o CEMGFA, em vez dos três ramos.

"Remeterá assim para a estrutura militar o apaziguamento de eventuais divergências entre os ramos. Em vez de ser o governo a ter de arbitrar essas eventuais divergências, passa a ser o CEMGFA a fazê-lo face ao reforço dos seus poderes", explica Palmeira.
Militares portugueses veem golpe em reforma das Forças Armadas; especialista diverge

Segundo o doutor em Ciência Política e Relações Internacionais, aventa-se que a reforma é congruente com o modelo de outros países da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), onde se tem diluído a diferenciação entre os ramos, dado que as operações militares envolvem cada vez mais a sua ação integrada.

"Uma vez que na União Europeia se caminha cada vez mais para uma comunitarização do pilar da Defesa, justifica-se que haja uma maior harmonização entre o funcionamento das estruturas de comando portuguesa e dos outros países da UE. O mesmo se aplica à OTAN", compara. 

Lourenço e a AOFA alegam que o governo acena com isso, mas não pratica nada do que se está a fazer na Europa nem na OTAN. Há três situações, contudo, que não ficarão a cargo do CEMGFA, dadas as especificidades das respectivas missões: as operações de buscas e salvamento marítimo, e a atividade das autoridades naval e aeronáutica. Questionado pela Sputnik Brasil se isso enfraqueceria o Exército, Palmeira justifica.

"Tendo Portugal uma extensa área marítima comparativamente com a terrestre, é natural que o papel da Marinha e da Força Aérea se destaquem, tanto mais que desempenham no mar funções de segurança que em terra são da competência das forças de segurança: Guarda Nacional Republicana (militar) e Polícia de Segurança Pública (civil)", detalha.

Apesar de ser do Exército, Vasco Lourenço defende que não haja primazia de nenhuma das forças, que têm suas características próprias, uma das razões para que haja uma separação muito forte dos ramos. Por isso, ele insiste que a concentração de poderes no Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas tem uma natureza política que é concebida há anos.

"Cada chefe de Estado Maior quer ser o dono da sua capelinha. Os problemas das Forças Armadas são muito mais urgentes do que está a pretender-se uma unidade de comando. [A reforma] fica muito aquém do que poderia ser feito. Já vem de há bastante tempo, com um militar que está claramente partidário do PSD, que defende essa teoria, na minha opinião, muito pouco democrata, avalia".
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Outra mudança com a reforma será nas competências do Conselho de Chefes de Estado-Maior, que passará a ser um órgão consultor do CEMGFA, perdendo suas funções deliberativas. Na prática, caberá ao CEMGFA coordenar a promoção de oficiais indicados pelo conselho.

Nesse aspecto, Palmeira faz a ressalva de que o fato de o CEMGFA ser oriundo de um dos ramos pode criar o receio de um favorecimento corporativo, o que poderia justificar os argumentos de alguns dos opositores à reforma. 

"Em causa pode estar, por exemplo, a dotação orçamental de cada um dos ramos, em função daquilo que são os desígnios estratégicos do Estado", exemplifica.

Proposta do PCP prevê direito de declarações políticas por militares

Além da reforma enviada à Assembleia da República pelo governo, há uma outra proposta do Partido Comunista de Portugal (PCP), que prevê maior autonomia de cada uma das forças no processo de escolha e nomeação para a estrutura superior. O projeto do PCP também defende que "os militares na efetividade do serviço têm o direito de proferir declarações políticas desde que não ponham em risco a disciplina nem o dever de isenção partidária".

Palmeira ressalta que a reforma enviada pelo governo conta com o apoio dos principais partidos de governo em Portugal, o Partido Socialista (PS), do primeiro-ministro António Costa, e o Partido Social Democrata (PSD), além do presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Por isso, ele acha pouco provável que a proposta do PCP seja aprovada pelo Parlamento em detrimento da apresentada pelo ministro da Defesa.

"Estes dois partidos [PS e PSD], tal como o presidente da República, estão fortemente comprometidos com a integração europeia e a Aliança Atlântica, ao contrário do PCP, pelo que, em princípio, a reforma proposta pelo governo deverá vingar", prevê.

Apesar de o descontentamento com a reforma ser manifestado publicamente apenas por militares da reserva, durante uma reunião em que Gomes Cravinho recebeu sugestões dos chefes do Exército, Marinha e Força Aérea, os comandantes pediram que os três ramos só ficassem subordinados ao CEMGFA quando houver necessidade operacional, mas não de forma permanente. Isso também permitiria que os três continuassem a ter acesso direto ao ministro da Defesa.

Em artigo publicado no Diário de Notícias, o major-general da reserva Carlos Branco, que também é investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, reconhece que a centralização de poderes nas mãos do CEMGFA até pode melhorar a rapidez da resposta operacional. No entanto, segundo ele, "nos restantes aspectos é um exercício funesto".

"Não faz sentido concentrar numa pessoa um leque tão alargado de poderes. É perigoso e desnecessário. Não se traduz em benefícios. É abrir as portas à autocracia e ao despotismo, sintomas já noticiáveis sem a lei ter sido ainda aprovada", lê-se em um trecho do artigo.
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