Em carta aberta, divulgada nesta quarta-feira (5), empresas europeias ameaçam boicotar produtos alimentícios brasileiros se for aprovado o projeto de lei 510/2021, que tramita no Senado Federal, sob a justificativa de que a mudança na legislação aumentaria ainda mais o desmatamento na Floresta Amazônica.
Entre outras mudanças, o PL propõe o aumento do tamanho das propriedades que podem pedir a titulação por autodeclaração, sem necessidade de vistoria presencial de técnicos do governo, bem como a ampliação do prazo para que os ocupantes de terras da União possam pedir a regularização.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Alessandra Silveira, professora da Universidade do Minho e diretora do mestrado em Direito da União Europeia, explica que o Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), apresentado em dezembro de 2019, estabelece uma fronteira alimentar contra produtos que não obedeçam regras de bem-estar animal estabelecidas.
Além da meta de atingir a neutralidade carbônica até 2050 na Europa e assegurar a sustentabilidade do continente, o pacto é baseado em dez pilares com planos de ação calendarizados. Para 2021, um dos objetivos é a estratégia "do prado ao prato", para tornar o sistema alimentar e a agricultura mais sustentáveis. Para Alessandra Silveira, a ameaça de boicote dos supermercados e produtores europeus não se trata de bravata, mas de uma antecipação.
"É, sim, uma pressão, mas perfeitamente factível, porque são os privados a atuar tendo por base medidas anunciadas pela UE e instituições europeias. Essa mobilização de alguns operadores econômicos europeus foi uma espécie de adiantamento em relação à adoção de medidas pelas próprias instituições europeias, em uma estratégia de globalização do ambiente", avalia Alessandra.
Um dos dez pilares que norteiam o pacto é colocar a UE na vanguarda mundial, com o fortalecimento da "diplomacia verde" em cooperação com os Estados-membros e a construção de "alianças verdes" com os países da América Latina, Ásia e Pacífico.
Nesse sentido, Alessandra aponta que a UE pretende fazer o uso de sua influência, dos seus conhecimentos especializados e seus recursos financeiros com vista a mobilizar os parceiros que partilhem do mesmo espírito nessa trajetória sustentável, estendendo a diplomacia não apenas em termos políticos, mas também econômicos.
"A verdade é que a extração de recursos naturais e a sua transformação em materiais, combustíveis e alimentos é responsável por metade das emissões de gases do efeito estufa e mais de 90% da perda da biodiversidade. Portanto, é um problema grave, não é brincadeira", alerta.
Diretora de mestrado diz que portugueses estão ao lado do ambiente
Questionada pela Sputnik Brasil se um eventual boicote poderia afetar a ratificação do acordo comercial entre UE e o Mercosul, a professora é realista e pragmática.
"Eu diria que já está comprometido. Se não houver uma adaptação das políticas brasileiras àquilo que são os imperativos do Pacto Ecológico Europeu, o acordo com o Mercosul não vai ser celebrado. Há uma obrigatoriedade de todos os acordos celebrados a partir de agora estarem adaptados ao pacto", justifica.
Portugal tenta acelerar as negociações com os Estados-membros, mas o prazo é curto, já que a presidência portuguesa rotativa no Conselho da UE termina no fim de junho. Após aprovação em junho de 2019, o texto do acordo com o Mercosul está sendo traduzido para os idiomas oficiais dos 27 países da UE e verificado juridicamente.
Após ser assinado pelos chefes de Estado, os legislativos de todos os 27 países integrantes precisam chancelá-lo. Os últimos passos são a análise e a aprovação pelo Parlamento Europeu. Além da corrida contra o tempo com trâmites burocráticos que não ajudam, Alessandra é pessimista quanto à probabilidade de avanços ainda durante a presidência portuguesa no Conselho da UE.
"Acho muitíssimo difícil se não houver uma manifestação do Estado brasileiro que convença sobretudo os eurodeputados do Parlamento Europeu quanto às possibilidades de adaptação das normas brasileiras àquilo que está estabelecido no Pacto Ecológico Europeu", condiciona.
A ameaça de boicote a produtos brasileiros está longe de ser a primeira manifestação europeia contra a atual política ambiental do Brasil. Em fevereiro, 65 eurodeputados enviaram uma carta a António Costa pressionando para que ele suspendesse o acordo com o Mercosul. Um mês depois, uma nova missiva endereçada ao primeiro-ministro português, dessa vez pelo vice-chanceler da Áustria, Werner Kogler, pediu que fosse evitada "qualquer manobra" para facilitar a votação do texto do tratado UE-Mercosul.
Indagada se a preocupação com o desmatamento da Amazônia seria real ou somente uma forma de disfarçar o lobby a favor de setores da economia europeia, Alessandra, que é catarinense, mas está na Universidade do Minho desde 1994, reconhece que há interesses econômicos, sobretudo no protecionismo agrícola francês.
Contudo, ela considera que as preocupações ambientais tocam muito mais os europeus, mesmo os portugueses, que têm relações muito próximas com o Brasil, de irmandade histórica.
"Não tenho nenhuma dúvida de que a opinião pública portuguesa estaria ao lado das questões ambientais em detrimento de um acordo com o Mercosul. Tenho certeza de que a opinião pública europeia, mesmo dos seus membros que não têm nada a perder em termos econômicos com o acordo, estaria ao lado das questões ambientais", afirma.
Especialista avalia que projeto é 'verdadeira bomba climática'
Diretora do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell, que já foi negociadora pelo Brasil nas Nações Unidas nos temas de floresta e mudança do clima, avalia que um eventual boicote pode afetar o acordo UE-Mercosul indiretamente. Ela ressalta que essa manifestação é a segunda feita pelo mesmo grupo de varejistas.
"Reforça o sinal de que há compradores na Europa dispostos a substituir produtos brasileiros por outros de outra origem, caso os produtores não se livrem do risco de desmatamento. E esse reforço pode ser reconhecido por parlamentares de diferentes países da União Europeia como risco considerável", diz Natalie à Sputnik Brasil.
Ela acredita que a possibilidade de boicote é real, pois o risco de desmatamento é sistêmico, e ninguém quer ser relacionado a ele, nem ser cobrado por seus clientes a respeito. De acordo com a especialista, sem mudanças aparentes nas políticas ambientais, aumenta-se a pressão e se sinaliza que o Brasil está tendo perdas concretas em sua reputação internacional.
"Isso pode afetar tanto os produtos vendidos nestes supermercados, quanto outros. A preocupação é absolutamente real e se espraiou nos mercados internacionais, inclusive no asiático. O maior trader chinês de commodities, o COFCO, já determinou que vai livrar as cadeias em que está inserido do desmatamento. A razão é muito objetiva: o desmatamento na Amazônia está levando a floresta cada vez para mais perto do ponto de colapso do ecossistema", exemplifica.
Para Natalie, que é mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, o efeito tem implicações globais, tanto em termos da regulação global do clima quanto para o aumento das emissões de gases de efeito estufa, sem falar nos impactos regionais, como a mudança no regime de chuvas que abastece a agricultura sul-americana.
Questionada pela Sputnik Brasil sobre quais os possíveis impactos nos cenários nacional e internacional se o PL 510/2021 for aprovado, ela responde com uma metáfora explosiva.
"Esses projetos são verdadeiras 'bombas climáticas', pois permitem que florestas públicas invadidas e desmatadas a qualquer tempo (até mesmo no futuro) sejam legalizadas. Por isso, eles provavelmente agravarão os riscos reputacionais e financeiros que já afetam o Brasil", prevê.
Autor do projeto de lei, senador Irajá defende o debate
Procurado pela Sputnik Brasil para comentar o assunto, o senador Irajá (PSD-TO), autor do PL 510/2021, enviou uma nota, por meio de sua assessoria de imprensa, em que alega que o Brasil tem um passivo de 10,5 milhões de hectares à espera de regularização fundiária. Segundo o parlamentar, são 147 mil propriedades rurais, sendo 99% de pequeno e médio porte, ocupadas quase que exclusivamente por famílias de pequenos agricultores há décadas.
"Corrigir esta injustiça histórica não é apenas uma questão social, garante também a dignidade destas famílias que estão na informalidade", lê-se em um trecho da nota enviada à Sputnik Brasil.
Irajá não respondeu diretamente à pergunta referente à ameaça de boicote europeu, mas referiu que as questões levantadas serão todas esclarecidas no momento da análise em plenário. Segundo ele, o texto recebeu diversas emendas de parlamentares que representam diversos segmentos da sociedade, todas elas serão analisadas, e pontos do projeto podem e devem ser aprimorados.
"Estamos propondo uma legislação moderna, segura, eficaz e que garante aos órgãos de fiscalização e de controle cobrarem o cumprimento das leis ambientais, trabalhistas e a função social da terra. Esses, somados ao Ministério Público e ao Judiciário, possuem instrumentos para identificar e punir práticas criminosas. A propósito, o que os criminosos mais desejam é ficar no anonimato, sem o CPF e a digital vinculados à terra, na sombra da lei e do atual proprietário da terra, o governo", lê-se em outro trecho da nota.