O descontrole da pandemia no Brasil eclodiu não só como uma crise sanitária, mas também como uma crise diplomática.
A necessidade de importação de vacinas e insumos farmacêuticos ativos (IFAs) do exterior foi um alerta para a importância da cooperação entre Brasília e os países do BRICS, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
A China é a maior produtora de IFA do mundo, enquanto a Índia se destaca pela produção de vacinas. A Rússia, por sua vez, desenvolveu três vacinas nacionais contra a COVID-19, uma das quais, a Sputnik V, é aprovada para uso em mais de 60 países.
Apesar da piora do cenário durante a pandemia, mesmo antes da crise sanitária global a arena internacional já enfrentava ambiente pouco propício às trocas internacionais: guerra comercial, sanções econômicas e retirada de países de acordos multilaterais eram a tônica desde a posse do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, em 2017.
"É claro que há uma crise na globalização, mas que não significa o seu fim, mas a sua transformação", disse a professora Maria Cândida Mousinho, do Instituto Federal da Bahia, à Sputnik Brasil.
Nesse contexto, "a cooperação nunca foi tão importante quanto agora para mitigar os desafios globais", especialmente na área energética.
"Para produzir vacina é necessário muita energia. É a energia que conecta todas as atividades econômicas", disse Mousinho.
Dentro dos países do BRICS, a Rússia e o Brasil "são aqueles que têm uma posição mais confortável energeticamente", ao contrário de Índia e China, que "enfrentam necessidades energéticas muito grandes".
"A Índia tem cerca de 177 milhões de pessoas sem acesso à eletricidade. Esse dado mostra como será difícil conduzir uma campanha de vacinação efetiva naquele país", notou Mousinho.
Segundo ela, os países do BRICS têm muito a "colaborar para suprir essa demanda energética, tanto do ponto de vista comercial, quanto do ponto de vista da cooperação em ciência e tecnologia".
"Para que os países do BRICS possam avançar, é necessário investir no viés científico e tecnológico", acredita a especialista.
Energias sustentáveis
A cooperação energética está na pauta da agenda do grupo BRICS desde sua primeira reunião, na cidade russa de Ekaterinburgo, em 2009. O foco nas energias renováveis, no entanto, é tendência mais recente para a agremiação.
"No tocante às energias renováveis, o Brasil pode colaborar com os outros países membros do grupo, principalmente na área de hidroeletricidade e biocombustíveis", notou Mousinho.
A especialista ainda sugere investimentos em áreas como a de produção de etanol através de algas, "uma vez que todos os países contam com uma vasta costa litorânea".
Para financiar projetos inovadores, o grupo conta com o Novo Banco de Desenvolvimento, comumente chamado de "Banco dos BRICS".
"O banco tem atuação na área de energias sustentáveis, financiando projetos no Brasil e na Índia, por exemplo", disse Mousinho. "Embora eu acredite que a participação do banco possa ser mais preponderante nesse contexto."
Países como a Rússia, que tem grande produção de combustíveis fósseis, também têm interesse em integrar o debate sobre energia limpa, "seja para atender às exigências da comunidade internacional em relação às emissões de carbono [...] ou para aumentar sua influência geopolítica".
"A Rússia tem uma posição confortável, mas é estratégico para ela pensar nessas questões, porque estamos falando de avanço científico e tecnológico, de interação com outros países, sobre como encontrar o equilíbrio [global] entre o Norte e o Sul", disse a especialista.
Apesar da importância das energias renováveis, "o uso de combustíveis fósseis também vai continuar relevante nas próximas décadas".
"A Rússia tem a maior reserva de gás natural do mundo, e pode expandir o seu mercado para o Brasil", sugeriu a especialista.
O consumo de gás natural brasileiro passou de 21 milhões de metros cúbicos em 2007 para 35,9 milhões de metros cúbicos em 2018.
"Há uma tendência de alta no consumo, e para suprir a demanda nós importamos da Bolívia, da Nigéria e do Qatar. Porque não importar da Rússia? Precisamos de uma política pragmática nesse sentido", acredita Mousinho.
Tanto em trocas comerciais, quanto em cooperação em ciência e tecnologia, os países do BRICS podem cooperar para se fortalecer durante o cenário da pandemia de COVID-19.
"É necessário fortalecer os BRICS como um instrumento geopolítico, ele é desde a sua criação um grupo político e deve ser encarado como tal", declarou a especialista.
Um dos principais incentivos para a cooperação entre os BRICS é que a troca "pode se configurar em um instrumento geopolítico e geoestratégico fundamental".
"Nesse jogo, a diplomacia da energia é essencial para equilibrar as relações de conhecimento, de técnica e de poder", disse a especialista.
A troca de expertise entre os países do grupo também contribui para o aumento da competitividade econômica de cada um deles.
"Na minha opinião, a colaboração torna esses países mais competitivos, o que é fundamental nesse cenário pós-pandemia", concluiu Mousinho.
Desde janeiro de 2021, a Índia ocupa a presidência do grupo BRICS, constituído por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em seu 15º aniversário, o grupo vai trabalhar de acordo com o lema adotado por Nova Deli: "BRICS 15: Cooperação pela continuidade, consolidação e consenso".