A Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, foi assinada em 13 de maio de 1888. Porém, 133 anos depois, ainda existem muitas amarras invisíveis que impedem o país de atingir a igualdade racial.
Para movimentos negros do país, o dia da Abolição da Escravatura não é uma data de comemorações. Pelo contrário: é um momento de reflexões, manifestações e reivindicações de direitos.
Nesta quinta-feira (13), a Frente Nacional Antirracista (FNA) e a Central Única das Favelas (CUFA) realizaram um protesto nacional, com distribuição de cestas básicas e flores camélias em comunidades periféricas, quilombolas, indígenas e ribeirinhas de todo o Brasil.
Segundo a FNA, a camélia "simboliza a recuperação e a atualização dos sonhos de liberdade e igualdade de oportunidades".
Celso Athayde, fundador da CUFA, lembra que, quando a princesa Isabel assinou o documento que decretou a Lei Áurea, os governantes já não podiam mais sustentar a escravidão no país.
No final do século XIX, a ordem econômica mundial, impulsionada pelo capitalismo e a revolução industrial, demandava mão de obra assalariada.
"Os movimentos abolicionistas já estavam em fase final. Então, não fizeram por respeito à vida dos pretos. Fizeram porque já não tinha mais nenhuma alternativa para poder mantê-los presos. A maioria, inclusive, já estava solta", afirmou Athayde à Sputnik Brasil.
O fundador da CUFA ressalta a importância das manifestações ocorrerem nas favelas por elas serem o símbolo da exclusão e o local com a maior proporção de negros no país.
Segundo ele, a população, principalmente nas favelas, precisa ter a consciência da representatividade do movimento negro brasileiro atualmente.
"Fazemos do dia 13 de maio um ato de reflexão, de ressignificação desse território, onde a maioria das pessoas é negra", disse Athayde.
Elisa Larkin Nascimento, diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), afirma que a data sempre será um dia de referência sobre a questão racial.
Segundo ela, a assinatura da Lei Áurea foi o momento da história brasileira em que a elite dominante ofereceu uma falsa liberdade à população negra.
Nascimento destaca que, mesmo sem a necessidade de mais mão de obra, o país promoveu políticas de "embranquecimento" da população com o incentivo à imigração europeia entre o final do século XIX e o início do XX, o que aprofundou a marginalização dos ex-escravos e seus descendentes.
"A liberdade vinha banhada das mais absolutas faltas de condições de sobrevivência e da supressão da sua vida no contexto nacional a partir de políticas de 'embranquecimento' da população, que motivaram, mais do que necessidades econômicas, a vinda dos imigrantes europeus", disse a diretora da IPEAFRO em entrevista à Sputnik Brasil.
Pandemia evidencia problema racial
Atualmente, a desigualdade racial pode ser verificada, por exemplo, nas diferenças salariais entre brancos e negros.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2018, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas foi de R$ 2.796. Já no segmento que contempla pretos e pardos, cada pessoa recebeu R$ 1.608, em média, ao longo daquele ano.
Isso quer dizer que o rendimento dos brancos foi 73,9% superior ao de pretos e pardos. Os números foram coletados por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad).
A pandemia de COVID-19, maior crise sanitária mundial em um século, também reflete o abismo social entre as populações brancas e negras no país.
Um estudo da Vital Strategies em parceria com a Afro-Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), divulgado em março deste ano, mostra que, em 2020, o estado de São Paulo registrou 25% de mortes a mais entre negros e 11% entre brancos.
A pesquisa avaliou o excesso de mortalidade, ou seja, a diferença entre a quantidade de óbitos observada e a esperada no ano para cada segmento, a partir de dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e do Registro Civil.
Para Elisa Nascimento, o menor acesso da população negra a serviços de saúde e sua maior dificuldade em se proteger da pandemia são consequências do racismo estrutural do país.
"A questão social é determinada pelo racismo, que não é apenas uma questão de cor de pele e de ideias de inferioridade biológica. O racismo é a hierarquização social baseada na interpretação social do fenótipo, no sentido de atribuição de valores e ideias associadas a esse fenótipo", explicou a diretora do IPEAFRO, que também coordena a organização do acervo de Abdias Nascimento (1914-2011), ativista dos direitos civis e humanos das populações negras e ex-senador do PDT no Rio de Janeiro.
Segundo ela, as interpretações sociais dos fenótipos são fatores essenciais, que empurram a população negra para o último escalão na hierarquia econômica.
"A desigualdade em renda, acesso a postos de trabalho, todas essas desigualdades resultam dessa situação que vem do racismo", apontou.
A voz da população negra
Nascimento explica que o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros promove políticas públicas de igualdade racial visando o acesso a oportunidades para populações negras.
Porém, a diretoria do instituto destaca que o IPEAFRO busca, sobretudo, valorizar e reconhecer o protagonismo do próprio negro no processo.
Segundo ela, "enquanto pensarmos uma sociedade brasileira em que os brancos estão tomando providências para ajudarem os negros, não vai funcionar".
Nascimento ressalta a necessidade de se ouvir a voz coletiva da população negra, que, segundo ela, nunca deixou de se organizar para enfrentar as questões de desigualdade racial.
"A grande verdade é que a sociedade dominante brasileira branca nunca deu ouvidos a essa voz coletiva, deu muito pouca atenção. Pelo próprio racismo, essa voz é desconsiderada. Então, sair das ideias generosas e entrar em um esforço coletivo que seja liderado pela ação dos próprios negros me parece algo importante", afirmou.