Os 100 primeiros dias de mandato de Joe Biden podem ter gerado menos manchetes bombásticas do que os de seu predecessor, Donald Trump.
No entanto, enquanto a mídia internacional cobria o mau comportamento do cão do casal Biden, que mordia agentes de segurança da CIA na Casa Branca, o presidente aplicava plano econômico ambicioso.
Biden aprovou um plano de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10 trilhões) para mitigar os efeitos da crise gerada pela pandemia do novo coronavírus. Mais de 160 milhões de cheques de até US$ 1,4 mil (cerca de R$ 7,5 mil) foram repassados às famílias norte-americanas, estimulando o consumo interno.
Além disso, a administração Biden negocia a aprovação de pacote de investimento em infraestrutura estimado em US$ 2 trilhões (cerca de R$ 10 trilhões). Os recursos também serão investidos na transição para uma matriz energética mais limpa e diversificada.
Os objetivos principais da política econômica de Biden seriam preparar o país para uma nova fase de competição com a China e fortalecer a sua classe média.
"Wall Street não construiu esse país. A classe média construiu esse país. E os sindicatos construíram a classe média", disse Biden durante discurso que marcou seus primeiros 100 dias na Casa Branca.
O presidente norte-americano ainda apoia a aprovação de reformas no sistema tributário dos EUA, para taxar empresas e pessoas físicas com renda superior a US$ 400 mil (R$ 2 milhões) anuais.
"Não é justo com o restante dos contribuintes norte-americanos", disse Biden sobre as baixas alíquotas de imposto pagas pelas grandes empresas nos EUA. "Vamos tentar colocar um fim nisso."
A agenda econômica do presidente gerou espanto entre economistas mais conservadores e euforia nas alas progressistas.
"Há uma mudança de paradigma nas políticas econômicas dos EUA, uma guinada para o keynesianismo pragmático", disse o mestre em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), David Deccache, à Sputnik Brasil.
Segundo ele, é necessário rever concepções das teorias econômicas clássicas, que sofreram um revés nos últimos anos.
"Ao contrário do que se previa, durante a crise econômica de 2008 a base monetária foi muito ampliada [...] sem nenhum impacto na inflação", lembrou Deccache. "Isso foi um choque teórico que balançou um dos pilares da teoria econômica liberal convencional."
A partir de 2020, a pandemia desafia os velhos cânones do segundo pilar econômico, a política fiscal.
"Foram realizados gastos extraordinários no mundo todo, via ampliação de emissão monetária. Segundo as teorias convencionais, isso levaria à elevação das taxas de juros. Mas não foi o que aconteceu", notou o economista.
Desta forma, políticas que ampliam os gastos públicos para estimular a economia ganham mais aceitação entre especialistas.
"A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE] e o próprio Fundo Monetário Internacional [FMI] recomendam políticas fiscais e monetárias expansionistas nos próximos anos, alegando que, se isso não for feito, os impactos da pandemia serão permanentes", disse Deccache.
Competição global
Além das motivações internas, a política econômica de Biden tem o intuito de preparar o país para mais uma rodada de competição com a China.
"Nas últimas duas décadas os EUA perderam mercado para a China, inclusive em setores de tecnologia de ponta", notou Deccache.
A maior ameaça para a economia norte-americana, no entanto, seria perder a hegemonia do dólar no mercado internacional para a "moeda digital lançada Banco Central da China", disse o economista.
Para Decacche, os EUA devem, portanto, fazer concessões à sua classe trabalhadora internamente, fortalecendo os seus interesses e a sindicalização, para melhor enfrentar um inimigo geopolítico externo.
"Entre a espoliação pura e simples e a concessão à classe trabalhadora interna, eu acho que os EUA ficam com a concessão para não perderem a hegemonia global", acredita.
E o Brasil com isso?
O economista acredita que o Brasil deve se beneficiar, caso as políticas de Biden levem ao crescimento da economia dos EUA.
"O crescimento nos EUA gera alta na demanda, portanto, eles importam mais os nossos produtos", disse o economista. "Quando há crescimento na China e nos EUA, temos uma folga no nosso balanço de pagamentos muito interessante."
Estimativas apontam para um crescimento de até 7% da economia norte-americana neste ano, após retração de 3,5% em 2020.
"Eu não vejo com maus olhos o crescimento da demanda e da economia internacional para o Brasil. Se os EUA vão crescer e demandar mais da nossa pauta de exportação, eles estão aliviando a nossa escassez de dólares", explicou o economista.
Por outro lado, ele não acredita que o Brasil necessariamente vá fazer ajustes em sua política econômica para acompanhar a tendência expansionista norte-americana.
"A mudança dos EUA não tem nenhuma correlação automática para o Brasil", acredita Deccache. "A gente pode continuar com o teto de gastos e política de austeridade fiscal. Entrar ou não nessa mudança de estrutura econômica é uma opção nossa."
Ele lembra que, historicamente, o Brasil já seguiu rumo econômico diferente das economias desenvolvidas da Europa e da América do Norte.
"Durante a ditadura brasileira, adotamos uma política de concentração de renda enquanto o centro da economia mundial construía o Estado de Bem-Estar Social. Em 1988, fizemos o caminho inverso: enquanto o centro desmontava sua estrutura social, a gente aprovava uma constituição baseada nessa ideia", notou.
Além disso, as elites brasileiras seriam refratárias "a qualquer mudança de política econômica", dado o seu "viés muito conservador".
"No Brasil, a austeridade fiscal é funcional porque desorganiza a classe trabalhadora. Assim ela não resiste ao processo de mercantilização de setores como saúde, educação superior e previdência", disse Deccache.
Além do mais, a manutenção do desemprego "é disciplinadora", garantindo que as empresas "paguem salários cada vez menores".
"Caso o Brasil começasse a fazer política monetária expansionista, seriam perdidos os pilares da destruição do serviço público para mercantilização e de manter o desemprego para reduzir salários", concluiu o economista.
A mudança na política econômica norte-americana não deve, portanto, atingir o Brasil por pura inércia, mas somente por opção política.
Apesar da agenda econômica arrojada de Biden, pontos importantes defendidos pelas alas mais progressistas do Partido Democrata ainda não foram abordados, como o perdão da dívida estudantil e a criação de um sistema de saúde gratuito.