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Justiça de Portugal considera ilegal quarentena de família vinda do Brasil e pode abrir precedentes

Uma decisão da Justiça portuguesa liberou uma família brasileira de cumprir o isolamento profilático obrigatório de 14 dias na chegada ao país europeu. O Tribunal de Sintra considerou a medida inconstitucional, e a sentença que beneficiou a advogada gaúcha Vanessa Klaus pode abrir precedentes.
Sputnik

O presidente da Ordem dos Advogados de Portugal, Luís Menezes Leitão, considerou a sentença exemplar por assegurar o respeito da Constituição perante atuações inconstitucionais do governo na violação do direito fundamental dos cidadãos à liberdade. À Sputnik Brasil, ele explicou que, como se trata de uma questão de constitucionalidade, o Ministério Público será obrigado a recorrer da decisão ao Tribunal Constitucional (TC). 

No entanto, ele acredita que a sentença de primeira instância possa abrir precedentes para que demais passageiros brasileiros e de outras nacionalidades que chegam a Portugal não precisem cumprir mais quarentenas compulsórias de 14 dias sem sair de casa.

"Se seguir a sua própria jurisprudência anterior, o Tribunal Constitucional vai confirmar a decisão [do Tribunal de Sintra]", aponta Menezes Leitão, que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 

Ele se refere a uma outra decisão de maio de 2020, quando o Tribunal de Ponta Delgada, nos Açores, considerou inconstitucional o confinamento obrigatório de 14 dias em hotéis locais que o governo regional havia determinado a passageiros que chegassem ao arquipélago, mesmo após o fim do estado de emergência. 

Justiça de Portugal considera ilegal quarentena de família vinda do Brasil e pode abrir precedentes

No final de julho do ano passado, a decisão de primeira instância foi confirmada por um acórdão do Tribunal Constitucional que considerou a medida similar a uma "pena curta de prisão, porventura até com aspectos mais pesados (por exemplo, a falta de acesso a um espaço comum para exercício físico)".

'Me senti em prisão domiciliar', diz advogada brasileira

Foi assim que a gaúcha Vanessa Klaus se sentiu sem poder sair de casa com o marido e a filha, de 8 anos, durante seis dias, desde que chegaram do Brasil, no dia 2 de maio, com testes negativos de COVID-19 apresentados pelos três no Aeroporto de Lisboa. Só saíram de casa para comparecer ao Tribunal de Sintra na última sexta-feira (7), quando conseguiram o habeas corpus que garantia o fim do isolamento domiciliar.

"Me senti numa prisão domiciliar. Não podia sair de casa, ir ao mercado, à farmácia, nem sequer jogar o lixo fora. Não tinha direito de pegar um sol, fazer um passeio na rua para respirar um ar livre. Meu marido, minha filha e eu não podíamos fazer nada. Ficamos todo esse período literalmente presos dentro de casa. Por isso, fui buscar o amparo da Justiça", conta Vanessa à Sputnik Brasil.

Não é exagero. Na própria decisão do juiz de instrução criminal Pedro Faria de Brito, ele enumera entre os fatos provados que Vanessa e seus familiares avistaram uma viatura policial estacionada à porta da respectiva residência, embora nada lhes tivesse sido comunicado. 

No processo, ao qual Sputnik Brasil teve acesso, o magistrado escreve que a delegada de Saúde de Mafra, cidade que fica a 40 quilômetros de Lisboa, "acrescentou ter emitido a ordem unicamente com base nas instruções que lhe foram transmitidas pelos canais da Direção-Geral de Saúde".

"É muito estranho, porque foi no mesmo dia em que ela [delegada] me mandou a declaração de isolamento profilático e que ia comunicar às autoridades policiais. Em dois anos que moro no mesmo lugar, nunca vi nenhum carro de polícia parado por várias horas exatamente no hall de entrada, com quatro policiais dentro. Tudo leva a crer que foi a pedido dela, porque nunca mais ninguém apareceu aqui", relata Vanessa.

A advogada gaúcha, que mora em Mafra, diz que não se sentiu intimidada com os policiais, mas respeitou a determinação da autoridade de saúde de permanecer em casa, apesar de considerá-la ilegítima. 

"Eu não me intimido com um carro de polícia, porque não fiz nada de errado. Recorri à Justiça porque tentei resolver o problema junto à delegada de saúde, expondo tudo o que constou na decisão judicial, porque me embaso simplesmente na Constituição, e ela não quis me dar ouvidos", explica.
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Juiz considera inconstitucional fundamentação para isolamento 

Na sentença, o juiz refere que a delegada de Saúde alegou como norma fundamentadora da decisão de privação da liberdade o artigo 25º da Resolução do Conselho de Ministros nº 45-C/2021 de 30 de abril. 

O referido trecho determina que o isolamento profilático domiciliar é aplicável aos passageiros de voos com origem inicial na África do Sul, no Brasil e na Índia, que tenham feito escala ou transitado noutros aeroportos, e aos passageiros de voos, independentemente da origem, que apresentem passaporte com registo de saída da África do Sul, do Brasil ou da Índia nos 14 dias anteriores à sua chegada a Portugal.

No entanto, o magistrado justificou que a medida desrespeita a Constituição da República Portuguesa (CRP), entre outros, nos seus artigos 19º, sobre a suspensão do exercício dos direitos, e 27º, especificamente sobre o direito à liberdade e à segurança. 

"A ordem de privação de liberdade emitida não se enquadra em nenhuma das enunciadas possíveis restrições. (...) No presente momento, não vigora o estado de emergência pelo que não existe legislação excepcional a ponderar", lê-se em trechos da decisão.

Isso porque a mesma resolução do Conselho de Ministros evocada para justificar a quarentena compulsória havia declarado situação de calamidade em Portugal, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, uma vez que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa anunciara o fim do estado de emergência a partir de 1º de maio, com base na redução do número de mortes e casos provocados pelo novo coronavírus.

"Em situação de calamidade, nunca direitos fundamentais [como a liberdade] podem ser suprimidos nem restritos, muito menos com base numa resolução de Conselho de Ministros, que foi o que o nobre juiz de Sintra fundamentou", defende Vanessa.

Ainda assim, ela e seus familiares tiveram esse direito suspenso por quase uma semana, causando prejuízos a suas atividades profissionais e aos estudos de sua filha.

"Minha filha perdeu uma semana inteira de aulas. De segunda a sexta, ninguém fez nada. Como muitas atividades dos advogados são presenciais, inúmeras diligências que eu necessitaria realizar no desempenho da minha profissão, não conseguia resolver por telefone ou pelo computador. Meu marido da mesma forma", lamenta.

Além de ter declarado ilegal a ordem de privação de liberdade e determinado a imediata libertação dos requerentes, não podendo ser compelidos a permanecer na habitação, o juiz também ordenou a imediata comunicação da decisão à autoridade de saúde e aos órgãos de polícia criminal.

"Ficando passíveis de responsabilidade criminal e disciplinar aqueles que pretendem compelir os requerentes a permanecer na habitação sem possibilidade de frequentar a via pública, com fundamento na ordem que agora se declara ilegal", concluiu Faria de Brito.

Governo silencia ao ser questionado pela Sputnik 

Para Vanessa, que, antes de conseguir chegar a Portugal teve voos cancelados e remarcados em função do fechamento do espaço aéreo com o Brasil, a decisão de primeira instância provavelmente será confirmada pelo Tribunal Constitucional. 

"Como advogada, entendo que não tem como o TC, que visa somente a assegurar as normas constitucionais da República Portuguesa, contrariar as próprias normas. Acredito que a decisão seja mantida, em virtude de a mesma ter sido embasada na Constituição Federal especificamente", prevê.
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Durante quatro dias, a Sputnik Brasil solicitou um posicionamento do Ministério da Saúde e da Direção-Geral de Saúde sobre o caso específico de Vanessa e também sobre como é feito o controle e a fiscalização do isolamento profilático, mas não houve respostas até o fechamento desta reportagem.

A Sputnik Brasil também tentou apurar se a quarentena obrigatória será mantida na próxima resolução do Conselho de Ministros, mesmo após a decisão judicial. O questionamento foi enviado à assessoria do primeiro-ministro António Costa e aos ministérios de Estado e da Presidência, dos Negócios Estrangeiros e da Administração Interna. Nenhuma das pastas respondeu.

Apesar de ter dado sinal verde para o Certificado COVID-19 UE como um documento que vai facilitar a viagem dentro da União Europeia de pessoas que comprovem que estão imunizadas ou não contaminadas com o SARS-CoV-2, o Parlamento Europeu defende que os Estados-membros não podem impor quarentenas ou testes-extra aos detentores do certificado.

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