O governo federal brasileiro ignorou por dez dias uma recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para suspender voos vindos da Índia.
Além de registrar recordes diários de casos e mortes por COVID-19, o país é o berço de uma nova variante do SARS-CoV-2 classificada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como "preocupante".
A recomendação da Anvisa foi enviada ao Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da COVID-19 no dia 4 de maio, mas a decisão do governo de Jair Bolsonaro sobre restrições só foi decretada na última sexta-feira (14).
Estados Unidos, Canadá, Austrália e diversos países europeus e asiáticos já haviam suspendido voos da Índia - muitos deles, desde abril.
Além da Índia, o Brasil já aplicou medidas de restrições para o Reino Unido e a África do Sul, onde também foram identificadas variantes do coronavírus.
"Ficam proibidos, em caráter temporário, voos internacionais com destino à República Federativa do Brasil que tenham origem ou passagem pelo Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, pela República da África do Sul e pela República da Índia", diz o texto da portaria 653 da Casa Civil, publicada em edição extra do Diário Oficial da União na última sexta-feira (14).
Para o epidemiologista Guilherme Werneck, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o país já conhece "a forma pouca efetiva do governo federal em lidar com a pandemia de COVID-19".
Segundo ele, devido à situação "dramática" da evolução da pandemia no país asiático, com o surgimento da nova variante, o governo brasileiro já "deveria ter imposto, imediatamente, restrições à entrada de pessoas originárias da Índia ou de outros países onde essa nova variante já está prevalecendo, como o Reino Unido".
Ele enfatiza que, desde o início da crise indiana, o Brasil já deveria ter exigido a quarentena obrigatória de 14 dias a viajantes que passassem pelo país asiático, além da apresentação de teste de RT-PCR negativo.
"Essa seria a conduta ideal. E o atraso dessa medida pode custar caro à população brasileira, com a possibilidade de entrada e espalhamento dessa nova variante no Brasil, eventualmente provocando sua disseminação e piora das condições sanitárias", alertou Werneck, em entrevista à Sputnik Brasil.
Maior transmissibilidade
O epidemiologista ressalta que serão necessárias mais investigações para identificar se a nova variante indiana causa doença mais grave ou se promove algum tipo de escape da resposta imune vacinal.
Mas ele lembra que já se sabe que a cepa "tem a característica de maior transmissibilidade".
"Tem um potencial muito grande de provocar um avanço da pandemia na população brasileira, causando um aumento súbito do número de casos, sobrecarga de serviços de saúde e, eventualmente, o aumento do número de mortes. Então, o atraso [em anunciar medidas de restrição] é um aspecto muito dramático", disse o especialista.
Werneck explica que é "muito difícil" evitar a entrada das novas variantes no Brasil. Porém, segundo ele, o mais importante é adiar ao máximo a chegada de outras cepas. Assim, o país se prepara melhor para lidar com o novo cenário.
"Mas quando se age de forma tardia, abre as portas para que as variantes penetrem no Brasil e comecem a se espalhar rapidamente pelo território nacional, provocando danos que poderiam ter sido evitados com algum tipo de conduta, como a restrição da entrada de passageiros internacionais", indicou.
Raciocínio do governo 'já se mostrou equivocado'
O especialista diz que não é possível apontar respostas racionais para a atuação do governo depois de quase 15 meses do primeiro caso de COVID-19 em território nacional.
Para o epidemiologista, o governo é "ausente na maior parte das medidas sanitárias necessárias para lidar com a pandemia há mais de um ano".
Ele ressalta que já se comprovou que a "justificativa econômica" do governo fracassou.
"Esse raciocínio já se mostrou equivocado, e isso foi demonstrado por vários estudos nacionais e internacionais. O que tem sido demonstrado é que não há solução econômica sem solução sanitária. A solução sanitária, a proteção da saúde da população, é o aspecto prioritário. E é esse aspecto que poderá contribuir para a recuperação econômica de médio e longo prazo, e não o inverso", afirmou Werneck.
O epidemiologista diz que o governo federal "precisa reconhecer que suas ações até o momento têm sido insuficientes, tanto nos aspectos sanitários como econômicos".
"O governo tem que mudar a estratégia e agir o mais rapidamente possível, acompanhando as recomendações das agências internacionais, pesquisadores da área da saúde e também da área econômica. Todos eles convergem para a ideia de que o cuidado à saúde das pessoas é o aspecto predominante neste momento e é aquilo que pode garantir uma retomada econômica mais adiante", apontou.