Na última quarta-feira (19), o Rio de Janeiro, estado mais letal do Brasil no contexto da pandemia do novo coronavírus, segundo os dados disponíveis, celebrou o Dia em Homenagem às Vítimas da COVID-19, sob o temor de uma nova onda da doença.
Enquanto no território fluminense já são contabilizados quase 50 mil óbitos relacionados ao novo coronavírus, no país, as vítimas já passam das 440 mil. E, considerando o atual ritmo da vacinação nacional, as previsões são de que esses números continuem aumentando de maneira significativa ao longo dos próximos meses.
De acordo com uma projeção recente do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington, o Brasil deve atingir a marca de 832 mil mortes provocadas pela COVID-19 até setembro. Mas, no pior dos cenários, esse número pode aumentar para 974 mil. A título de comparação, os Estados Unidos, líder no ranking de casos e óbitos já há algum tempo, acumulam 588.454 óbitos até o momento, com mais do que o dobro de infecções em relação ao Brasil e também com uma população consideravelmente maior (332 milhões contra 213 milhões).
Com tantas perdas até aqui e com previsões pouco animadoras para o curto e médio prazo, qual seria o impacto da morte na vida dos brasileiros no atual contexto? Com essa realidade sombria tão presente no dia a dia de, praticamente, toda a população, a morte tem para o brasileiro o mesmo significado que tinha antes da pandemia?
Consciência de vulnerabilidade x sensação de onipotência
"O problema é esse, os brasileiros não vêm lidando com as perdas da pandemia. Lidar com as perdas significa considerar que o ser humano é vulnerável, é frágil, é falível. A pandemia, o coronavírus, ele traz isso para o humano, para todos: todos podemos morrer. É claro que isso está colocado para todo mundo, a gente sabe que vai morrer. Mas não sabemos quando. E esse vírus colocou isso, esse risco iminente de morte, para todo mundo", afirma a psicanalista Simone Cesa Delgado, ouvida pela Sputnik Brasil.
A profissional conta que, em meio à pandemia, muita gente tem procurado seu consultório em busca de ajuda, em um cenário no qual uma série de questões importantes e, muitas vezes, relacionadas a perdas, de diferentes tipos, tem vindo à tona.
Segundo ela, diante da "consciência de vulnerabilidade" evidenciada pela atual crise, o indivíduo tem dois caminhos a seguir. De um lado, o da busca pelo cuidado pessoal e dos seus entes próximos. De outro, a procura por "estratégias defensivas", não querendo saber do que é falível e adotando uma "postura de negação de tudo, que é o que a gente vê coletivamente".
"É claro que esse coletivo está extremamente ligado às instituições que representam esse coletivo. Então, se a gente tem um governo que se coloca onipotente, como se de fato não houvesse essa fragilidade, não existisse, como se as pessoas não tivessem que ter medo, não precisassem se cuidar — e esse cara foi eleito —, isso fala, vamos dizer assim, do ponto mais obscuro de cada sujeito."
Citando como exemplo casos reais do cotidiano, a psicanalista argumenta que tem observado que, mesmo em situações nas quais determinados indivíduos admitem reconhecer os perigos impostos pela COVID-19, a necessidade de se vacinar e de evitar os riscos de contágio, muitos desses indivíduos acabam deixando transparecer, às vezes, essa sensação de onipotência, como se não pudessem ser atingidos por esses perigos.
"Com uma postura defensiva, sustentam que não precisam vacinar, que não precisam usar máscara adequadamente, que não precisam de distanciamento. Isso, obviamente, estimulado pelas instituições."
No que diz respeito especificamente às perdas, Delgado acredita que é possível visualizar uma relativização das mortes desde o início do surto no país. E isso, em sua opinião, não mudou mesmo depois de tantos e tantos óbitos oficialmente confirmados no Brasil em pouco mais de um ano.
"Eu acho que as pessoas não estão temendo mais, agora, a letalidade da COVID-19 do que antes. O retrato são essas mortes. Há ainda a insistência de que é uma gripezinha. Para muitos ainda. É claro que muita gente pode ter tido alguma consciência, talvez para os que perderam pessoas muito próximas, como pais e filhos. Talvez isso tenha tido um efeito importante. Mas, do ponto de vista coletivo, social, eu diria que não."
'Brasileiro teme muito mais do que a letalidade da doença'
Para a analista do comportamento Terumy Reybaud, embora sejam muito diversas as formas como os brasileiros lidam com as perdas relacionadas à crise do novo coronavírus, é possível fazer alguns recortes de tendência baseados, por exemplo, na proximidade dos indivíduos em relação a essas mortes e aos seus grupos sociais.
Também em entrevista à Sputnik Brasil, ela destaca que as "classes mais altas têm lidado, em grande parte, de maneira mais negacionista", por serem menos afetadas pelas perdas e também "pelas consequências sociais da pandemia". É nas classes mais baixas, segundo ela, que tem sido observado "maior impacto em relação às perdas, já que a pobreza tem grandes fatores de influência nos números de vítimas e em outras consequências" da pandemia.
"Os constantes óbitos também trazem impacto sobre como as pessoas sentem e lidam com o momento atual. Existe uma questão sobre estar constantemente exposto ao risco, em que tendemos a senti-lo em menor intensidade", explica Reybaud.
No início da pandemia, quando tudo era muito novo, "o não saber com o que estávamos lidando e quais seriam as consequências às quais estaríamos vulneráveis ao nos expor" facilitava, de acordo com a especialista, reações de medo e autopreservação. Mas, com o passar do tempo, a grande maioria das pessoas foi obrigada a se expor ao risco, com o trabalhador sendo forçado a "decidir morrer de fome ou se arriscar para garantir sua sobrevivência", alterando essa dinâmica.
"Ou seja, isso que temos visto como relativização das mortes passa por essa questão que é extremamente delicada, as pessoas estão tentando sobreviver como podem e praticamente sem respaldo, não restando muitas opções em relação ao medo."
Essa realidade, ainda de acordo com a analista, também ajuda a compreender outros comportamentos mais controversos, como a lotação de praias e a realização de festas clandestinas, atividades de lazer que acabam sendo incluídas nesse pacote.
"Essa insensibilidade à morte é atravessada pela lógica dura de uma realidade em que o trabalhador é colocado em risco o tempo todo para manter seu sustento. Daí pensar que também tem o direito ao lazer é um passo rápido. Até por todos terem consciência de que esse direito não é negado às classes mais altas, como podemos ver nos muitos exemplos de celebridades que tornam seu lazer público ainda que de maneira irresponsável."
Além desses aspectos, Reybaud também considera que existe um peso importante das "muitas orientações desconexas que a população recebeu desde o início". Isso, ela ressalta, deixou as pessoas tão confusas sobre como agir e quem ouvir, que acabamos tornando individual "uma responsabilidade que deveria ser coletiva".
Por essas razões, acaba "parecendo", no entendimento da analista, que, hoje, o brasileiro não teme tanto a letalidade da COVID-19 quanto temia no início da pandemia.
"Quanto mais obrigados somos a nos expor àquilo que tememos, menos sensível ao medo estaremos. É uma questão adaptativa e necessária à sobrevivência. Isso não quer dizer que todos os brasileiros deixaram de lamentar suas perdas e se tornaram insensíveis ao momento que estamos vivendo. Significa que chegamos ao ponto em que não só a própria doença é um risco, mas as decorrências sociais que ela e a falta de respaldo público trouxeram também são. Então eu diria que, hoje, o brasileiro teme muito mais do que a letalidade da doença, teme a letalidade da tristeza, do luto, da fome e da desesperança por falta de perspectivas a curto e médio prazo sobre a situação na qual o país se encontra."