Em meio à pandemia de COVID-19, os brasileiros mais conscientes evitaram exercer o livre direito à manifestação, independentemente de suas insatisfações. Porém, a trégua parece ter chegado ao fim.
Embora o vírus ainda esteja vencendo a guerra contra o país, movimentos sociais decidiram convocar, para o próximo sábado (29), atos contra o governo federal e sua conduta no combate à pandemia.
Encabeçadas pelas frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, as manifestações por todo o país vão pedir o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, a compra de mais vacinas e a volta do auxílio emergencial durante a crise.
Os atos contarão com o apoio de centrais sindicais, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), além de outros movimentos e entidades.
Candidato à presidência pelo PSOL nas eleições de 2018, Guilherme Boulos, líder do MTST, vem convocando seus seguidores a participar do movimento pelas redes sociais.
Para o cientista político José Paulo Martins Junior, professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), a queda recente de popularidade do presidente pode impulsionar os protestos.
De acordo com levantamento do Datafolha, divulgado no dia 12 de maio, a aprovação do governo Bolsonaro recuou seis pontos percentuais, caindo de 30% (em março) para 24%.
A pesquisa também apontou que 45% dos brasileiros reprovam o governo e 30% o avaliam como regular. Do total, apenas 1% não opinou.
Segundo o especialista, as manifestações em favor do presidente também podem estimular a realização de atos contrários.
No último domingo (23), no Rio de Janeiro, Bolsonaro promoveu um passeio de moto pela cidade com apoiadores.
"Pode atrair mais gente aos atos. Apesar de setores à esquerda tenderem a não ser negacionistas como os de direita, acho que as manifestações de apoio ao presidente podem estimular a oposição a se manifestar também", pontuou Martins em entrevista à Sputnik Brasil.
Porém, o professor avalia que, devido ao alto número de casos e mortes por COVID-19 no país, não deverá haver uma grande concentração de pessoas no próximo final de semana.
"A pandemia ainda está oferecendo muitos riscos à população, mas vai começar a ter uma movimentação, sim", afirmou.
Embora Boulos esteja envolvido com as manifestações, a cientista política Mayra Goulart, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que os atos não estão sendo convocados por partidos políticos.
Ela explica que os partidos de oposição, por enquanto, preferem se movimentar em outras frentes, no Congresso Nacional e no debate público de ideias.
Segundo a especialista, o motivo é a primeira bandeira dos atos convocados: o impeachment.
"Os partidos não estão propriamente engajados no impeachment, porque não é interessante nesse momento de configuração da frente ampla contra o bolsonarismo. Eles preferem uma desidratação. É mais estratégica uma desidratação do governo até as eleições", afirmou Goulart à Sputnik Brasil.
A professora ressalta, porém, que as outras duas pautas - vacinação e auxílio emergencial - estão dentro do escopo da movimentação das elites partidárias para a formação de uma frente ampla.
"Isso aparece muito forte no discurso do Lula e de algumas elites que estão se movimentando no campo do centro, com críticas ao governo por ter demorado a comprar as vacinas e pela interrupção do auxílio", disse ela.
Por isso, para Goulart, a grande dúvida é se os movimentos vão conseguir atrair grupos além de suas bases, já que há muitos brasileiros fora do raio da esquerda no espectro político que estão insatisfeitos com a condução do governo na pandemia.
De fato, uma pesquisa do Datafolha do dia 13 de maio indicou que 51% avaliam como ruim ou péssimo o desempenho do presidente na gestão da crise sanitária. O instituto aponta que apenas 21% consideram ótima ou boa a performance de Bolsonaro no enfrentamento à COVID-19.
"O grande desafio é convocar essas pessoas para as ruas, no campo dos movimentos sociais e dos partidos, conformando uma frente ampla da qual elas se sintam confortáveis em participar", afirmou.
CPI da Covid
A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid, em andamento no Senado Federal, tem aumentado as tensões entre o governo e a oposição.
Se, por um lado, os depoimentos contraditórios, como o do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, podem ajudar a revelar omissões do governo na pandemia, por outro, Bolsonaro dobra sua aposta no discurso e nas ruas, se reafirmando contra o distanciamento social e o uso de máscaras e a favor de medicamentos sem eficácia contra a COVID-19.
Apesar de evidenciarem as críticas da sociedade contra o governo, os atos do próximo sábado não devem alterar o rumo da CPI, segundo Martins.
"Não acredito que os atos podem influenciar a CPI da Covid. A CPI tem já um caminho razoavelmente bem traçado, os integrantes [do governo] que têm ido à CPI têm mentido de uma forma descarada. Então, acho que a responsabilidade do governo federal, essa incompetência em lidar com a pandemia, já está bem escancarada", afirmou o cientista político da Unirio.
O especialista acredita que, para impactar de alguma maneira, seria necessário que a popularidade do presidente continuasse em queda e que as manifestações se intensificassem daqui em diante.
"Mas não acredito em muitos desdobramentos, porque não acho que vá haver grandes manifestações e porque entendo que a CPI está bem encaminhada nesse sentido de responsabilizar o governo federal", frisou.
Impeachment
De acordo com os especialistas, a chance de Bolsonaro sofrer um impeachment até o fim do mandato, em dezembro de 2022, é muito baixa.
Para eles, o principal motivo está nos acordos do presidente com o Congresso Nacional, especialmente com o centrão.
"Não acredito em impeachment. O Congresso está muito alinhado, especialmente com a pauta econômica do presidente", disse José Paulo Martins Junior, da Unirio.
O professor afirma que o objetivo do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), aliado de Bolsonaro na Casa, é impulsionar a agenda da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, "especialmente com privatizações, desregulamentação e retirada de direitos".
"É claro que, quanto mais cai a popularidade do presidente, mais alto é o custo da coalizão, vai ficando mais difícil para ele. Então, pode haver dificuldade, ficar mais caro, mas não acredito que vá chegar ao ponto do impeachment", afirmou Martins.
Mayra Goulart, da UFRJ, ressalta que as "lideranças não ideológicas", representadas pela centrão, não estão interessadas em adotar uma postura oposicionista ao governo.
"É um procedimento muito difícil, que exige maioria qualificada, de dois terços a favor na Câmara. Esses atores não têm interesse direto em agir contra o presidente", destacou.
Ela explica que, dependendo das circunstâncias, sua base de sustentação parlamentar poderia tentar se descolar do presidente para as eleições ou "aumentar o preço do apoio", com a liberação de mais emendas aos deputados.
"Acho que o impeachment não favorece nem seu principal adversário, que é o Lula. É melhor que o presidente continue desidratando do que operar um impeachment nesse momento", afirmou a especialista.