O coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza acredita que os militares que fazem parte do governo de Jair Bolsonaro estão se preparando para continuar no poder "com ou sem o atual presidente da República".
"Estão destruindo a muralha que minha geração construiu entre as Forças Armadas e o governo, entre o militar e a política", disse Pimentel em entrevista ao portal BBC Brasil na semana passada.
Faltando pouco mais de um ano para as eleições presidenciais de 2002, o coronel da reserva sentencia: "[…] O Partido Militar vai estar no segundo turno no ano que vem".
Para entender melhor o papel dos militares no governo Bolsonaro, o projeto nacional das Forças Armadas, que remonta ao século passado, e as perspectivas da manutenção dos militares no poder, a Sputnik Brasil conversou com Antonio Marcelo Jackson, cientista político da Universidade Federal de Ouro Preto.
Exército de mercenários e projeto nacional
Antonio Jackson afirma que a história dos militares no Brasil é bastante singular e, diferentemente de outros países, as nossas Forças Armadas não se formaram a partir de grupos populares que lutaram pela independência.
"Não custa lembrar que todas as ações em que foram necessários os militares entre a independência [do Brasil], em 1822, até o final da Guerra do Paraguai, em 1870, foram mercenários contratados ou escravos levados à força para os campos de batalhas que efetivamente atuaram."
Em seguida, recorda o cientista político, as Forças Armadas do Brasil derrubaram a monarquia e proclamaram a República, em 1889, através de um golpe militar. "Não à toa, os dois primeiros presidentes foram marechais do Exército: Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto", comenta.
Durante o século XX, os militares chegaram à conclusão de que um país tão socialmente desigual como o Brasil jamais conseguiria viver em um sistema democrático e começaram a tentar implementar um projeto nacional autoritário.
Depois de diversas tentativas de golpe e candidatos à presidência que não venceram, o grupo militar que assume em 1964 coloca em prática esse projeto. Mas, ao mesmo tempo, elimina internamente as vozes discordantes, que defendiam não apenas a não politização das Forças Armadas, mas, principalmente, uma solução não autoritária, explica Antonio Jackson.
A falta de pluralidade dentro das Forças Armadas seria um dos fatores que fariam os militares voltarem ao poder décadas depois.
Ausência de senso crítico e impunidade
Para entender como os militares voltaram ao poder sem ruptura institucional, o professor remonta à Lei da Anistia, de 1979, que eximiu todos os militares envolvidos em torturas ou assassinatos de qualquer punição.
"Essa prática de termos crimes sem castigos, de termos funcionários públicos, não nos esquecemos que todos os militares são funcionários públicos, que praticaram um número sem fim de abusos e não sofreram qualquer represaria, fez com que um segmento desse grupo entendesse que suas ações seriam impunes. Pouco importando o que tivessem feito. O próprio exemplo de Jair Bolsonaro ilustra bem essa situação: expulso do Exército por insubordinação e por planejar atentados terroristas contra quartéis, ele é reformado e ganha uma patente. Ou seja, deixa de ser tenente e passa a ser capitão.
Antonio Jackson explica que essa prática demonstra, claramente, para os integrantes do baixo escalão dessa tropa, "que o militar no Brasil não é punido" e "quando comete crime, mesmo que seja contra o próprio Exército", esse militar ainda recebe prêmios.
Dessa forma, de acordo com o especialista, os militares que se formam no fim da ditadura militar, em 1985, não possuem "um senso crítico" devido à ausência de vozes discordantes dentro da tropa. "Perderam a ideia de um projeto nacional, que se esgotou naquele período, mas adquiriram a consciência que nunca seriam punidos por nada. Esse cenário fertilizou o terreno para que insatisfações surgissem com a Comissão da Verdade […] e, com ela, uma nova ideia de estar no poder", afirma Antonio Jackson.
A Comissão da Verdade (2011-2014), foi instalada pelo governo de Dilma Rousseff (PT) para investigar as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 por agentes públicos. Na entrevista à BBC Brasil, o coronel da reserva Marcelo Pimentel também destaca esse momento como crucial para que parte das Forças Armadas começasse a se articular para voltar ao poder.
Despreparo e perda de prestígio
Antonio Jackson destaca que os militares estão descuidando do que deveria ser uma prioridade para as Forças Armadas: estar preparados para proteger o Brasil.
"[Nas] Forças Armadas praticamente nada se faz para tratar daquilo que realmente interessa: temos um Exército em condições de defender o Brasil? Temos uma Marinha com navios e submarinos bem equipados para dar segurança em nosso mar territorial? Temos uma Aeronáutica com aviões capazes de proteger nossos ares? Parece-me que em todos os três casos a resposta é não."
Por outro lado, os militares que estão ocupando cargos na administração pública não possuem formação para essas funções e, "sem preparo para atuarem", tornam-se "decorativos" e se transformam em "uma verdadeira sangria dos cofres públicos".
Além disso, os novos escândalos de corrupção minam a imagem de comportamento ilibado das Forças Armadas. O professor de ciências políticas recorda que semana passada foi divulgada uma pesquisa de opinião que mostra que a credibilidade pública nas instituições militares caiu 12 pontos, 70% para 58%, desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência.
"Como a meta atual desse segmento dos militares é simplesmente estar no poder, sem qualquer projeto nacional, a opinião [pública] tratará de corroer esses alicerces até o final, carcomendo, destruindo, minando por completo todo o prestígio que um dia eles já tiveram."
Antonio Jackson conclui afirmando que, para prevenir um cenário em que os militares se mantêm no poder de forma indefinida, é necessário o fortalecimento das instituições, "com definições claras do que cada uma deve exercer, e cumprir o seu papel junto à sociedade", além da "punição efetiva de qualquer indivíduo que abuse do poder, seja civil ou militar". Dessa forma, agindo como os demais países, o Brasil terá uma democracia mais do que tangível. "Até lá, padeceremos dessas tempestades vez por outra."