No dia 10 de junho, uma deputada democrata do Congresso dos EUA, a muçulmana Ilhan Omar, acusou os Estados Unidos e Israel de "atrocidades impensáveis", comparáveis às que realizam o movimento islâmico palestino Hamas e o Talibã (organização proibida em diversos países e na Rússia).
Tal declaração gerou uma forte reação dentro do Partido Democrata, vários membros do qual a rotularam de antissemita ou anti-Israel.
Pedro Costa Júnior, professor de Relações Internacionais da FACAMP e autor do livro "Colapso ou Mito do Colapso?", comentou em entrevista à Sputnik Brasil por que o tema israelense é tão sensível para os norte-americanos e se essa declaração desvenda uma divisão dentro do Partido Democrata dos Estados Unidos.
Ilhan Omar foi uma das duas primeiras muçulmanas a serem eleitas para o Congresso dos EUA. O aumento da diversidade no parlamento norte-americano, mesmo como a heterogeneidade do órgão, no entanto, não muda muito os fundamentos da política externa de Washington, opina o especialista.
"Em termos da política externa, pouco ou nada muda porque a política externa dos Estados Unidos [...] tem um sentido muito forte. Nesse sentido e nessa direção, que é dos chamados interesses americanos, da proeminência dos Estados Unidos no mundo, como superpotência – como a única superpotência no sentido de se privilegiar na visão deles mesmos, como a única superpotência militar, política, econômica e [...] assim privilegiada nesse momento pós-Guerra Fria", disse.
Lobby judeu nos EUA é 'homérico'
Doze congressistas judeus democratas desaprovaram publicamente, em uma carta, a integrante de seu próprio partido.
Explicando as razões da enorme repercussão da fala de Omar, Pedro Costa Júnior afirma que questionar a política israelense é um tema muito sensível nos EUA, primeiramente porque "o lobby judeu nos interesses governamentais nos EUA é homérico".
"Israel é o parceiro estratégico dos EUA desde sua assunção em 1948. Isso é notável, inexorável e não há nenhuma perspectiva que isso vai mudar", ressaltou o especialista.
Essa ligação se baseia em parte nas convicções ideológicas dos dois Estados, considera Costa Júnior, em particular, na grande semelhança entre a ideia norte-americana de os EUA serem uma nova civilização que vai guiar o mundo para um mundo melhor e a ideia do Velho Testamento. Então, essa conexão entre os EUA e Israel é quase "espiritual", mais do que material e econômica.
Por isso mesmo, qualquer fala que não seja pró-Israel dentro dos Estados Unidos provocará críticas duras, segundo o especialista.
Além de serem inclinados aos judeus, os Estados Unidos, do ponto de vista do professor, são um país "completamente islamofóbico", e essa islamofobia foi ainda mais acentuada e exponenciada após a presidência Trump, que, relembra Costa Júnior, impôs em 2020 uma proibição de viajar e que proibia a emissão de vistos a emigrantes de 13 países islâmicos.
"Há uma esmagadora maioria de países legítimos, como o Brasil, que reconhece o Hamas como instituição legítima, representando a Palestina, assim como os próprios palestinos", aponta ele. "Quem não reconhece são os Estados Unidos e seus aliados próximos, o chamado "Ocidente", o mundo ocidental, bom, parte dele", continuou reforçando seu argumento.
Ele também relembrou o recente conflito entre Israel e Palestina para ressaltar, entre outros, o papel das mídias na representação de tais convicções islamofóbicas. Para o especialista, não houve "um conflito aberto", como representaram as mídias, "houve um massacre", já que os números de mortos dos dois lados foram incomparáveis entre si: 12 israelenses contra 232 palestinos.
"Então, se fosse o contrário, como estariam as manchetes atlanticistas? Eu acho que esse é um ponto que tem que ser discutido."
Divisão ou unidade?
"Uma colcha de retalhos", assim o professor qualificou a situação por dentro do Partido Democrata. Mas, na opinião dele, a divisão entre os apoiadores dos judeus e os dos islâmicos não é nele a divisão principal.
De acordo com professor, dentro do Partido Democrata há vários "clãs", como os chamados clintonistas, obamistas e velhos falcões republicanos. Mas mesmo que todas essas fações estejam disputando o poder, todos eles estão unidos pelo medo de volta dos trumpistas "e de tudo aquilo que o trumpista representa para os EUA e para o mundo".
Embora seja assim, os membros do partido mostram sua unanimidade, particularmente em relação a sua aliança com o Estado judeu. "No momento, o Partido Democrata pretende passar uma mensagem de união para a população, mais do que de divisão", constatou o especialista.
O especialista expressou que seria lamentável se a deputada fosse punida, "até porque o sistema norte-americano é bipartidário basicamente, então, ele tem que abordar uma certa heterogeneidade dentro de cada partido para que as posições sejam minimamente democráticas e, portanto, legítimas", adicionou, explicando seu ponto de vista.
Em conclusão, o professor apontou que o Estado norte-americano enfrenta problemas maiores do que as divisões internas dos partidos. Em termos da política externa, a administração Biden se preocupa mais com "a ascensão da China e o renascimento russo". De acordo com palavras de Costa Júnior, são esses assuntos que literalmente "tiram o sono" dos Estados Unidos.