O MP-RJ requer ainda o afastamento da diretora acadêmica e do coordenador de ensino médio do colégio, também réus na ação, por não protegerem as estudantes, de acordo com as provas coletadas. Os fundamentos se dão com base no descumprimento da Lei 13.431/17, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
A ação, à qual Sputnik Brasil teve acesso, dá o prazo de 30 dias para que Ana Maria Bastos Loureiro e Marcos Vinicius Borges da Silva Machado sejam afastados das atividades de direção na Rede Jesuíta de Educação, à qual o colégio pertence, a mesma ordem católica do Papa Francisco. A multa prevista no caso de incumprimento é de R$ 3 mil por dia. Segundo o MP, "caso os referidos profissionais continuem em suas funções, inevitavelmente permitirá que se perpetue o histórico de abusos com vítimas ou com novas potenciais ofendidas".
Sputnik Brasil apurou que Machado não exerce mais o cargo de coordenador de ensino médio, mas ainda mantém uma função de coordenação de oficinas de xadrez, robótica e grupos de estudo. No entanto, Ana Maria Loureiro permanece como diretora acadêmica, de acordo com o site do colégio, que fica no bairro de Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro.
O MP-RJ também requer a condenação dos réus a pagar indenizações pela violação aos direitos individuais homogêneos das adolescentes vítimas de assédios sexuais e/ou morais por parte de professores do Colégio Santo Inácio ao longo dos anos, a título de danos morais coletivos, e pela omissão quanto às providências a serem adotadas para proteção de direitos, inclusive, abordagem, acolhimento e tratamento psico-pedagógico-social.
Segundo a promotora Rosana Barbosa Cipriano, uma das autoras da ação, os valores serão liquidados por arbitramento do juízo. As possíveis indenizações serão destinadas ao Fundo Municipal e Estadual Para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O único valor pré-estabelecido é o requerido no pedido de condenação dos réus à multa por infração administrativa prevista no artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê pagamento de três a vinte salários se um professor ou responsável deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente. A pena pode ser dobrada em caso de reincidência.
Os promotores também pedem indenização a título de reparação de danos materiais em razão dos gastos efetuados com tratamento psicológico e medicamentos pelas adolescentes vítimas, mediante respectiva comprovação a posteriori.
"Depreendeu-se dos relatos das alunas que houve diversas formas de assédio sexual em relação a alunas perpetradas de forma repetida, seja através de palavras, conversas indesejáveis, piadas de conteúdo sexual, contato físico sem consentimento e convites impertinentes", lê-se em um trecho da ação civil pública.
Pelo menos quatro ex-alunas do Colégio Santo Inácio foram ouvidas pelo MP-RJ, três na condição de vítima e uma na de testemunha. Uma das vítimas, cujo relato é inédito na imprensa, disse que, em 2015, chamou um professor para tirar dúvidas, ele se aproximou e colocou a mão em sua coxa e a abraçou por trás, durante uma aula, na frente de outros alunos.
Diretores desencorajaram aluna a levar acusação adiante
Segundo o relato ao MP, foi realizada uma reunião entre a referida vítima, menor de 18 anos à época, o coordenador de ensino médio, Marcos Vinicius, a diretora acadêmica, Ana Loureiro, e um advogado da escola, tratando claramente do assunto.
"A solução apresentada pela Escola à ex-aluna (e também a sua respectiva mãe em reunião posteriormente realizada) é que seria 'perigoso' alardear quanto à questão dos assédios sofridos por parte do referido professor. Os representantes da escola, notadamente, segundo e terceiro réus, alertaram que seria temerário 'acusar' o professor pois tal situação poderia 'expor' a aluna e, caso essa não provasse o que afirmava, poderia configurar calúnia e/ou difamação, além de 'desgastar a imagem social' da Escola", lê-se em outro trecho.
Ainda de acordo com a denúncia, a proposta oferecida pelo colégio foi de concordar que a acusação não seria levada adiante, ou seja, os assédios não seriam publicizados e todos aguardariam até o final do ano letivo para que ocorresse a demissão do professor sem justa causa, o que foi providenciado pela escola naquele ano.
O caso narrado mostra que a alta cúpula do Colégio Santo Inácio já havia tomado conhecimento de casos de assédio sexual de professores a alunas desde 2015, pelo menos. No entanto, em 4 de junho de 2020, um comunicado assinado pela diretora Ana Maria Loureiro e pelo então reitor Ponciano Petri foi enviado aos pais dos alunos relatando que o colégio tomou conhecimento, com surpresa, de denúncias de assédio sexual pelas redes sociais.
O comunicado provocou a indignação das vítimas, que já haviam feito denúncias à direção do colégio em anos anteriores. Em 11 de outubro de 2018, por exemplo, uma vítima enviou um e-mail à diretora Ana Maria Loureiro, com um arquivo em anexo que reunia denúncias contra outro professor.
Há pelo menos 1 ano, este agora correspondente da Sputnik Brasil questiona o Colégio Santo Inácio por que a diretora não foi afastada para que tivesse pleno direito de defesa. A escola não afastou Ana Maria Loureiro nem Marcos Vinicius Machado, mesmo após o MP-RJ ter proposto um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Segundo a promotora Rosana Cipriano, da 1ª Promotoria de Justiça da Tutela Coletiva da Infância e Juventude, a escola não aceitou assinar o TAC.
"Abrimos as portas do Ministério Público para ouvir, numa perspectiva empática e acolhedora, as alunas e ex-alunas do estabelecimento de ensino. Notou-se na ocasião que referidas testemunhas e vítimas estavam ansiosas para serem ouvidas e legitimadas em seus sentimentos", explica a Rosana Cipriano à Sputnik Brasil.
Questionada se a assinatura do TAC teria evitado uma ação judicial contra a escola e poupado o desgaste ainda maior na imagem da instituição católica, a promotora .
"Sem dúvidas. Depois da fase investigativa, o MP dirigiu-se à escola, numa atuação extrajudicial resolutiva, buscando a composição amigável de conflitos. Houve realização de reunião com os representantes jurídicos da escola, e o MP debruçou-se sobre a confecção de minuta de TAC para encerramento da situação mediante a implementação voluntária de diligências solicitadas. O Colégio Santo Inácio não aceitou a confecção do referido TAC, não restando outra alternativa que não o ajuizamento da presente ação civil pública para cumprimento de normativas protetivas infanto-juvenis e de educação", completa.
Dois professores demitidos e denunciados criminalmente
Sorte diferente tiveram dois professores acusados por ex-alunas de assédio sexual. Após a VEJA Rio revelar o caso há um ano, a 10ª Delegacia de Polícia (Botafogo) abriu um inquérito para investigar a conduta dos docentes. Após afastá-los, o Santo Inácio os demitiu ainda em 2020, apesar de a instituição não confirmar o motivo. No fim do último ano, conturbado pelas denúncias e pela pandemia, a Companhia de Jesus, ordem do Papa Francisco, trocou o reitor do colégio sob a alegação de que Ponciano Petri havia terminado o seu mandato.
Em março deste ano, o MP-RJ denunciou criminalmente os dois professores por assédio sexual. O processo corre sob segredo de Justiça. O crime, previsto no artigo 216-A do Código Penal consiste em constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. A pena é de detenção de um a dois anos.
Antes, o MP-RJ havia aberto dois inquéritos civis para investigar os crimes assédio moral e difamação (artigo 139, do CP), injúria (140, do CP), ameaça (147, do CP) e constrangimento ilegal (146, do CP), assédio sexual (216-A, do CP), importunação sexual (215-A, do CP) e delitos previstos nos artigos 240 e 241 do ECA, além de constrangimentos morais, especialmente por questão de gênero, em relação a adolescentes em geral e alunas do Colégio Santo Inácio em especial.
O MP-RJ elenca ainda uma lista de quase 20 ações a serem implementadas pelo Santo Inácio, entre elas, protocolos de recebimento/registro de demandas de qualquer natureza por parte dos alunos, prestigiando a transparência e a legitimidade participativa; fluxos de atendimento e encaminhamento à rede do sistema de garantia de direitos, notadamente ao Conselho Tutelar ou Delegacia de Polícia (no caso de configuração de fato típico); articular com os conselhos representativos para a construção de ações de fomentos à espaços de defesa de Direitos Humanos, Equidade de Gênero e Combate à violência.
Vítima pretende processar colégio por danos morais
Uma das vítimas de assédio sexual também deve processar o Colégio Santo Inácio por danos morais. Em entrevista à Sputnik Brasil, a advogada Luísa Fernandes, do escritório Farag Ferreira e Vieira, que representa a jovem, afirma que os abusos sofridos já justificariam, por si só, uma ação com fins de reparação dos danos morais e psicológicos sofridos pela ex-aluna, então menor de idade.
"Infelizmente, o abuso foi agravado pela negligência da escola em apurar o caso e pela postura de sua diretoria, que minimizou os episódios e chegou a culpabilizar a vítima, a quem tinha dever legal de proteger. A aluna perdeu aulas e até hoje, já formada, tem acompanhamento psicológico pelo trauma sofrido. Por isso, independentemente da atuação do MP-RJ, que vem se mostrando louvável, estamos estudando a viabilidade de uma ação indenizatória individual a ser proposta em face da instituição de ensino", diz Luísa Fernandes.
Sputnik Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do Colégio Santo Inácio, com Ana Maria Bastos Loureiro e Marcos Vinicius Machado por telefone, e-mail e mensagens, mas eles não responderam até o fechamento desta reportagem.
Após o fechamento da reportagem, o Santo Inácio enviou uma nota sem, contudo, responder os questionamentos de Sputnik Brasil sobre por que a escola não afastou os diretores quando da proposição do TAC pelo MP-RJ nem se a instituição pretende brigar na Justiça para defender seus funcionários.
"Os relatos referentes a episódios ocorridos em 2018 geraram melhorias e avanços no Colégio Santo Inácio. Uma série de iniciativas foi adotada para fortalecer e aprimorar a cultura institucional do cuidado, além do lançamento da Política de Proteção às Crianças e Adolescentes – documento que define as condutas aceitáveis e recomendadas no espaço escolar para garantir a segurança de todos e as relações saudáveis e adequadas. Investimos em medidas institucionais que ampliem e assegurem processos seguros e confiáveis para toda nossa comunidade educativa", lê-se em um trecho da nota.
No entanto, em comunicado enviado aos pais de alunos nesta quarta-feira (16), a instituição alega que diante do TAC proposto, deu-se
um impasse em questões de cunho administrativo, envolvendo a gestão da equipe acadêmica da escola.
"Paralelamente, estamos respondendo todas as questões que envolvem a esfera legal. Assim continuaremos enquanto persistirem as demandas e tudo for esclarecido. Da mesma forma, seguimos com a postura que está plenamente alinhada com nossos valores de não expor pessoas que fazem ou fizeram parte da nossa comunidade escolar", lê-se em outro trecho da nota enviada à Sputnik Brasil.