Enquanto comércio teve baixa, tráfico de drogas lucrou e foi 'vencedor da pandemia', diz analista

No final do mês de junho, a ONU divulgou seu Relatório Mundial sobre Drogas 2021, o qual apontou um aumento global no consumo de entorpecentes. A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas para entender melhor esse quadro.
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De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2021, divulgado no dia 24 de junho pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), cerca de 275 milhões de pessoas usaram entorpecentes em todo o mundo em 2020.

Ainda segundo o documento, nas últimas estimativas globais, cerca de 5,5% da população com idade entre 15 e 64 anos usou drogas pelo menos uma vez no ano passado, enquanto 36,3 milhões de pessoas, ou 13% do número total de pessoas que usam drogas, sofrem de transtornos pelo uso das mesmas.

Entre 2010-2019, o número de pessoas que usaram entorpecentes aumentou 22%, devido em parte ao crescimento da população global. As projeções atuais sugerem um aumento de 11% no número de pessoas que usarão drogas globalmente até 2030.

Para entender melhor esses dados, o porquê do aumento global do uso de entorpecentes e como a pandemia ajudou nesse contexto, a Sputnik Brasil ouviu dois especialistas sobre o assunto: o professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP, Paulo Pereira, e Leonardo Chilio Jordão, doutorando e pesquisador do programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUC-SP) e membro do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Pandemia e tráfico de drogas

O novo relatório mostra que o mercado de drogas retomou rapidamente suas operações após uma ruptura inicial no início da pandemia, uma explosão que desencadeou ou acelerou certas dinâmicas de tráfico pré-existentes no mercado. A resiliência desses mercados teria demonstrado, mais uma vez, a capacidade dos traficantes de se adaptarem rapidamente a ambientes e circunstâncias alterados.

Para Leonardo Jordão esse fato não foi muito chocante, visto que esse tipo de mercado já requer uma inata adaptabilidade para acontecer pelo contexto ilegal, mas o mesmo ressalta que o que realmente impressionou foi a velocidade com que essa adaptação ocorreu.

O pesquisador conta que algumas análises apontaram que "o tráfico e a criminalidade foram os vencedores da pandemia, porque enquanto alguns setores comerciais começaram a cair na lucratividade, para o tráfico só aumentou esse lucro".

Dentro dessas adaptabilidades utilizadas pelos traficantes para ultrapassar o período pandêmico, Jordão cita um maior uso da deep web, novas modalidades de transporte de carga e um maior número de cargas ilícitas em uma só modalidade. Entretanto, o pesquisador acha que ainda é cedo para dizer se essas tendências serão perenes pós-pandemia ou não.

"O tráfico de drogas é um mercado, um tipo de economia, um tipo de prática muito maleável, muito adaptável, que depende de várias conexões associadas, então [saber se essas práticas vão continuar] é muito uma resposta ao contexto", disse o especialista.

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No entanto, o professor Paulo Pereira acredita que a pandemia nos fez estabelecer uma série de novas medidas e hábitos que serão difíceis de "voltarem ao que era" e a economia da droga passaria pelo mesmo processo.

Uma vez essa "adaptalidade" iniciada, ela não teria como voltar atrás, e também cita como exemplo o aumento do uso da Internet pelo tráfico, pois "o ambiente virtual já valoriza o anonimato, valoriza as transações que são escondidas", então esse seria um bom cenário para pratica comercial das drogas e seria difícil o mesmo sofrer uma desaceleração ou retroceder.

Deep web

A deep web é uma parte da Internet que não é indexada pelos mecanismos de busca, como o Google, por exemplo, portanto, fica oculta ao grande público, sendo conhecida como "a Internet profunda". 

Leonardo Jordão conta que há bastante tempo tanto a Internet "comum" quanto a deep web são utilizadas pelo tráfico de drogas, e que talvez o que esteja mais em voga é um aumento no acesso à deep web para essa finalidade. Para o pesquisador a ferramenta é mais utilizada agora pelo fato de as pessoas estarem em casa pela pandemia, mas de maneira geral "não afeta a natureza ilícita, a natureza anônima do tráfico de drogas".

Perguntado sobre possíveis regulamentações que a comunidade internacional poderia aplicar para que haja um maior controle do uso da deep web nas transações de entorpecentes, o analista acredita que é preciso mudar a abordagem, uma vez que "a deep web é mais uma ferramenta do que a permitidora da existência do tráfico de drogas".

"Se a gente começar a trocar a abordagem em relação às drogas e começar a tratá-la como uma questão de saúde pública, a questão da deep web acaba se resolvendo por consequência. Mas claro, a questão específica desse tipo de Internet em relação ao tráfico."

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Aumento do uso de drogas

O relatório também apontou para um aumento mundial do uso de drogas e ainda fez uma perspectiva para uma elevação desse número em 2030.

Na visão de Leonardo Jordão, esse aumento se deve ao fato de que as políticas adotadas para lidar com a questão foram políticas equivocadas, é que é necessária uma mudança no enfoque dessas medidas, ou seja, ao invés de utilizar violência repressiva para tentar barrar o uso de drogas, é preciso olhar para questão como um tópico de saúde pública.

O especialista também ressalta que "os países que começam a tratar a descriminalização de algumas drogas [...] estão mostrando alguns avanços promissores".

Ainda sobre o aumento do consumo, Paulo Pereira diz ser importante pontuar o fato de que esse aumento não foi observado em todos os tipos de drogas, mas em algumas em particular, uma vez que a pandemia criou um contexto específico para o seu uso. As drogas ligadas às festas, a uma sensação de euforia, mais psicodélicas como MDMA e o LSD, apresentaram oscilações para baixo na sua procura.

Já a cannabis teve um aumento, o que faria sentido, já que seus efeitos podem ser aplicados no contexto doméstico.

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Um problema transnacional ou nacional?

A questão das drogas é um problema mundial e sempre está presente com relevância seja na pasta da Saúde ou da Segurança em diversos governos, mas seria esse um problema transnacional ou nacional? Para Leonardo Jordão, a questão é ao mesmo tempo transnacional e nacional, pois os dois se "retroalimentam".

Segundo Jordão, a demanda global faz com que diversos atores, tanto da esfera legal quanto da ilegal, se movimentem para que a droga possa chegar a lugares mais distantes, sem muita oferta, e somente através da transnacionalidade vivida por esses atores é possível que esse percurso aconteça.

Ao mesmo tempo, a questão também é nacional, pois muitos problemas decorrentes do tráfico de drogas acontecem devido às políticas públicas que são respostas nacionais.

Coca

No relatório foi apontado que os efeitos econômicos da pandemia podem levar à precarização da situação da população camponesa na América Latina, o que poderia aumentar a produção de coca, revertendo a queda de 5% neste plantio.

Paulo Pereira explica que diante da crise econômica, as pessoas precisam achar alternativas para gerar renda, e a plantação de coca nas regiões mais interioranas poderia ser um "atrativo" para burlar esse problema econômico.

"Há um atrativo para que camponeses usem o plantio da folha de coca como um substituto da produção de outras commodities agrícolas que não têm o mesmo valor. Se você planta feijão não gera a mesma renda se você plantar folha de coca."

Por outro lado, o professor também salienta o fato de que o plantio da coca tem chance certa de ser comercializado a partir do momento que é comprado pelo tráfico de drogas, o que pode não acontecer com a plantação de outras commodities que dependem de vários fatores para ter sua venda acertada.

Como o próprio relatório apontou, houve crescimento no uso de drogas durante a pandemia, então seria um mercado certeiro.

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Ao mesmo tempo, em relação à planta, Leonardo Jordão enfatiza que é preciso desmistificar o plantio da folha de coca relacionado à cocaína.

O plantio faz parte de uma cultura secular de povos, principalmente os da América do Sul, e que para folha chegar à forma da droga, passa por diversos processos químicos que a potencializam e não estão presentes na planta naturalmente, portanto, seu plantio cultural é diferente do seu uso para consumo como entorpecente.

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