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'Brasil ainda tem relações comerciais com Europa, porém, perdeu a confiança da UE', diz analista

Paulatinamente, as regras do acordo entre UE-Mercosul estão sendo divulgadas. Na semana passada, foram reveladas novas tarifas para importação de carros europeus e café brasileiro. A Sputnik Brasil ouviu analista para saber como fica o bloco sul-americano diante das novas cotas.
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Na última semana, o Brasil decidiu abrir por sete anos uma cota de importação anual de 32 mil veículos da Europa com tarifa de 17,5% (metade da alíquota atual) assim que o acordo Mercosul-União Europeia (UE) entrar em vigor.

Em troca, os 27 Estados-membros do bloco europeu aceitaram reduzir dos atuais 9% para 0 a tarifa para o café solúvel brasileiro quatro anos após a entrada em vigor do acordo birregional.

Assim como o café, o acordo firmado flexibiliza as tarifas de importação para frutas brasileiras. Para uva de mesa procedente do Mercosul, por exemplo, a eliminação da tarifa na UE será imediata, segundo a IstoÉ.

A Sputnik Brasil entrevistou Flavia Loss de Araujo, professora nos cursos de Relações Internacionais da Universidade Cruzeiro do Sul e do Centro Universitário FMU, ambos em São Paulo, para saber se há desequilíbrio nas cotas acordadas, como está a comunicação entre o bloco sul-americano e o bloco europeu e se o acordo Mercosul-União Europeia teria um teor "neocolonial" nas negociações.

'Brasil ainda tem relações comerciais com Europa, porém, perdeu a confiança da UE', diz analista

Considerações sobre as tarifas

Ao olhar para os termos do acordo e as tarifas propostas Araujo diz que um certo desconforto surge naturalmente, a partir do momento que se evidencia um desequilíbrio entre os dois lados, pois enquanto países do Mercosul exportam commodities agrícolas, a União Europeia exporta manufaturados.

Mesmo com essa impressão, a especialista afirma que o acordo é benéfico para ambos os lados. Mesmo sendo carro e café produtos tão diferentes, no final há um resultado positivo, e ressalta que vários estudos já apontaram que o acordo vai proporcionar aumento no setor comercial dos países.

Entretanto, Araujo chama atenção para um fator que precisa ser levando em consideração, até mais do que as atuais tarifas estipuladas, que é "o quanto que o acordo pode prejudicar ou ajudar naquilo que nós não somos fortes, no caso do Brasil, a indústria".

"Como o Brasil poderia se beneficiar desse livre comércio sem deixar de apoiar sua indústria que passa por um momento tão difícil? Hoje, nós estamos vivendo um período de desindustrialização no país [...] e a participação da indústria no PIB brasileiro cai a cada ano. Por exemplo, em 2018, a indústria de transformação representou apenas 11,3% do PIB, quase metade dos 20% que registramos em 1976, para termos a ideia da gravidade do contexto", explicou a professora.

Diante desse cenário, Araujo salienta: "Qual o plano? Qual está sendo a estratégia pensada pelo governo, e também pelo setor privado, para que a nossa indústria se torne mais competitiva [...] e possa se inserir nas cadeias globais de valor? E mais que isso, qual a tática para que setores da nossa indústria não desapareçam?", questionou.

Como exemplo de países que ainda estão em desenvolvimento como o Brasil, mas abriram seu mercado e ao mesmo tempo ampliaram seu setor industrial, Araujo cita os países asiáticos, destacando que, para essa ampliação, esses países não abriram seu mercado somente, "eles se planejaram, elaboraram estratégias e principalmente coordenaram a economia com decisões políticas".

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Ainda sobre as tarifas, um outro ponto que a especialista diz ser preocupante é o fato de os carros elétricos não terem entrado na cota de importação, ou seja, "nós vamos importar carros com motor a combustão enquanto a UE vai investir € 41 milhões [R$ 246,9 milhões] para apoiar a produção de carros elétricos, isto é, vamos continuar a importar essa tecnologia já ultrapassada e temos que nos perguntar se isso atende aos interesses brasileiros".

Além desse fato, Araujo também considera que não foi levado em conta a circunstância de que mesmo que os membros do Mercosul exportem commodities agrícolas, nas comercializações entre os países do bloco há produtos manufaturados, principalmente peças de carro, e "como ficaria esse comércio intrabloco? Será que esse impacto foi pensado? Provavelmente não", disse a especialista.

Concessões para ratificação do acordo

Indagada se a concessão brasileira nas tarifas pode acelerar a validação do acordo Mercosul-União Europeia, a professora acredita que não, uma vez que essas concessões já estavam no pacto inicial, contudo, só foi divulgada a versão completa do documento para o público agora em julho de 2021, sendo que a finalização das negociações ocorreu em junho de 2019.

"Agora que nós estamos sabendo os detalhes do que foi negociado e acordado, mas essas concessões já estavam no texto de 2019, eles estão divulgando aos poucos. O acordo, nesse momento, passa por uma revisão jurídica e sendo assim, pode ser que ocorram mudanças no futuro", contou Araujo.

A professora também ressalta que além da revisão jurídica, há a discussão de novas cláusulas sobre a questão ambiental, e existe a expectativa de que novas regras sejam impostas para o lado do Mercosul em relação ao meio ambiente antes da ratificação.

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União Europeia e países do Mercosul

A professora afirma que a UE tem um peso econômico e político muito maior que os países do Mercosul, e em uma comparação citada pela especialista através do ranking da OMC (Organização Mundial do Comércio), em 2020, o Brasil esteve na vigésima sétima posição, o que significa 1% de participação no comércio global. Do outro lado está a Alemanha, um dos países da UE, na terceira posição representando 11% do comércio mundial.

"A partir desses dados nós podemos ver a disparidade entre os dois blocos, o que explica toda essa longa negociação de mais de 20 anos para chegar ao acordo [...]. Mas do lado do Mercosul é importante reforçar que nós temos bom poder de barganha, já que esse acordo não envolve apenas comércio, mas também convergência regulatória, temas ambientais, que são de extrema importância para os europeus que buscam cada vez mais colocar parte dos seus valores em acordos comerciais", afirmou.

Adicionalmente, a analista pontua que há outro tópico a favor do Mercosul, que é o interesse europeu de ter mais engajamento nos temas internacionais de maneira geral, "visto que eles têm perdido espaço para China, principalmente aqui na América Latina", ou seja, essa seria outra "carta na manga para negociar o acordo".

Para Araujo, o acordo reflete sim a disparidade econômica entre os blocos, mas também reflete, principalmente, uma "falta de transparência nas negociações e a falta de estratégia do lado mercosulino nessas transações".

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Distanciamento da comunicação Europa-Brasil

A especialista diz que o Brasil ainda é visto com muita desconfiança pela União Europeia, e a ratificação do acordo enfrenta imensa resistência especialmente no que tange a questão ambiental, e conta que já existia objeção por parte dos partidos verdes europeus, de ambientalistas e do próprio lobby da agricultura contra o acordo. Porém, a posição do governo de Jair Bolsonaro em relação à Amazônia foi um agravante para dificultar a finalização do pacto.

"A postura do governo Bolsonaro em relação à Amazônia prejudicou o processo. Isso deu muita força aos argumentos contrários à ratificação do acordo evidenciado pelo fato da Áustria, França, Países Baixos e a Bélgica já terem sinalizado que não finalizarão o acordo a menos que o Brasil ofereça mais garantias em relação à proteção do meio ambiente", contou Araujo.

Apesar de o Mercosul englobar outros países, a professora aponta que o foco fica no Brasil por ter a Amazônia e também pela instabilidade brasileira que afeta tanto a comunicação com a Europa como até mesmo a dinâmica entre os Estados-membros do bloco sul-americano.

"Algumas pessoas apostam que o acordo só voltará a ser discutido em 2023, após as eleições presidenciais no Brasil [...] nós continuarmos a ter relações diplomáticas e comerciais com a Europa, porém, perdemos a confiança da UE como um parceiro seguro para os negócios, e perdemos também o protagonismo nas discussões sobre temas ambientais, algo que nos colocava em uma aposição internacional boa, inclusive para negociar outros temas como comércio."

Araujo considera que o momento é de "distanciamento da Europa em relação ao Brasil e de observação sobre como o nosso cenário interno será alterado no próximo ano".

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Teria o acordo caráter neocolonial?

Existem muitas opiniões divergentes sobre o acordo, segundo Araujo. Há pessoas que são a favor, que enxergam a questão como uma chance de maior inserção no comércio mundial, mas também há pessoas que o veem de forma negativa, chamando o pacto de "acordo vampiro e neocolonial".

Na interpretação da professora a realidade é bem mais complexa do que essas duas posições, e apesar de ter várias críticas sobre a forma como o acordo foi negociado, Araujo acredita que chamar de "neocolonial" um pacto que o Mercosul "foi chamado à mesa para negociar, fazendo, ao longo desses 20 anos, propostas e contraproposta, acho que isso tira um pouco da nossa responsabilidade diante dos resultados".

"Nós já conhecemos a posição da UE em relação ao comércio internacional e a forma como ela negocia [...] a Europa é a favor do livre-comércio, mas também é extremamente protecionista no que tange os setores mais sensíveis, e o exemplo máximo disso é a agricultura."

A especialista conta que a agricultura europeia é fortemente subsidiada, e que o setor agrícola europeu, em seus respectivos países e nas instituições supranacionais, faz um enorme lobby para que o acordo não saia, pois isso fere seus benefícios diante das commodities agrícolas dos países do Mercosul.

Entretanto, do outro lado, está a indústria europeia, que deseja que o pacto finalmente saia do papel. Logo, há divergências dentro da própria Europa para que ele se concretize.

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O acordo de livre-comércio Mercosul-UE ainda depende da ratificação dos governos e Parlamentos dos 27 Estados-membros do bloco, mas sofre resistência de países-chave, como a França e a Áustria.

Em março deste ano, o Parlamento austríaco rejeitou por unanimidade a concretização do acordo e enviou uma carta a Portugal (país que na época detinha a presidência rotativa da UE) para reiterar sua oposição ao pacto, por achar que o texto não contém cláusulas suficientes para proteger o meio ambiente e prevenir o desmatamento no Brasil, conforme noticiado.

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