Brexit ainda não foi solucionado, diz analista ante questão da Irlanda do Norte entre UE-Reino Unido

Diante do impasse entre a União Europeia (UE) e o Reino Unido pós-Brexit no que se refere à Irlanda do Norte, a Sputnik Brasil entrevistou especialista para saber como está a dinâmica entre o bloco europeu e o governo britânico sobre a fronteira alfandegária criada no mar da Irlanda.
Sputnik

A adesão do Reino Unido à UE, que durou desde 1973, foi encerrada à meia-noite de 31 de janeiro a 1° de fevereiro de 2020, horário da Europa Central (20h00 no horário de Brasília). Desde então, uma fronteira alfandegária foi criada no mar da Irlanda, separando o Reino Unido da Irlanda do Norte. 

Entretanto, o protocolo sobre a fronteira acabou gerando uma situação peculiar, na qual o território irlandês ficou mais próximo da União Europeia do que do Reino Unido. Unionistas da Irlanda do Norte criticaram veementemente a criação da nova fronteira. Por isso, o Reino Unido planeja revisar unilateralmente algumas cláusulas do acordo sobre a fronteira e sobre o Brexit. 

Na semana passada, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, negou ao primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, uma primeira proposta de revisão do status da fronteira.

"A União Europeia continuará a ser criativa e flexível dentro da estrutura do protocolo. Mas não vamos renegociar", disse von der Leyen citada pelo The Guardian.

Para entender melhor como anda a comunicação entre o bloco europeu e Londres, a reação dos irlandeses do norte diante da questão e quais medidas poderiam ser adotadas para resolução do impasse, a Sputnik Brasil conversou com Kira Godovanyuk, pesquisadora-chefe do centro de estudos britânicos do Instituto Europeu da Academia Russa de Ciências (RAN, na sigla em russo).

Brexit ainda não foi solucionado, diz analista ante questão da Irlanda do Norte entre UE-Reino Unido

Protocolo da Irlanda Norte

Godovanyuk conta que o Protocolo da Irlanda do Norte é uma parte intrínseca dos acordos sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, e regula o status da fronteira entre a parte norte e sul da Irlanda.

Entretanto, a pesquisadora afirma que o principal problema durante as negociações do Brexit foi garantir a transparência dessa fronteira e ao mesmo tempo garantir o próprio Brexit, que propunha justamente a reimposição das fronteiras entre a UE e o Reino Unido.

"Essa tarefa é por si mesma paradoxal e seus objetivos se contradizem mutuamente, então, desde o início, ficou bastante claro que uma solução ideal para esse problema não existe", disse Godovanyuk.

Mesmo com esse impasse, a especialista ressalta que parte do problema foi resolvido pelo governo do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que aceitou em larga escala as condições propostas pela União Europeia desde o início, sendo uma delas a restauração da fronteira aduaneira ao longo do mar da Irlanda.

"Isto significa que a fronteira se manteve porosa entre a Irlanda, como parte da União Europeia, e a Irlanda do Norte, como parte do Reino Unido, mas restaurar uma fronteira aduaneira entre a Irlanda do Norte e o restante do Reino Unido com certeza cria uma situação dual e complexa", completou.

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Solicitação de revisão do protocolo pelo Reino Unido

Diante do entrave, Londres fez algumas propostas a Bruxelas para revisar o protocolo. Para a pesquisadora, para se compreender o movimento do governo britânico nessa direção, é preciso entender que o protocolo é parte dos acordos do Brexit e, logo, parte do acordo de parceria na esfera comercial formando a nova base legal que vai regular as novas relações entre a UE e o Reino Unido.

Segundo Godovanyuk, a necessidade de assinar esse protocolo de fronteira advém da própria lógica do Brexit, e Boris Johnson "sem dúvida teve muita pressa em assiná-lo, para cumprir as promessas que tinha feito aos defensores do Brexit de que concluiria formalmente o processo", salientando que, mesmo com a urgência, o governo britânico não tinha "uma visão clara de como implementar o acordo".

"Nem todos concordam com as condições desse protocolo, inclusive os próprios irlandeses do norte, mas o governo se guiou pela lógica do próprio Brexit e pela necessidade de assinar esse tratado. A questão de como implementar de fato essa medida foi secundária naquele contexto, então, não podemos dizer que o governo de Johnson tinha uma visão clara de como aplicar esse acordo complexo e contraditório", afirmou a pesquisadora.

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No entanto, mesmo com a solicitação de revisão britânica, a especialista diz que o primeiro pedido originou da própria União Europeia, que em janeiro deste ano, decidiu adotar o artigo 16 do protocolo, que prevê a restauração da fronteira aduaneira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, isto é, de reversão das condições desse acordo, em caso de necessidade econômica. Porém, o bloco europeu estaria mirando "mais em questões políticas" naquele período.

"Nesse caso a decisão europeia foi de cunho político, pela necessidade de garantir o fornecimento das vacinas [contra a COVID-19] da farmacêutica AstraZeneca. Naquele contexto, a Comissão Europeia decidiu proibir o fornecimento de vacinas produzidas em seu território a países terceiros, inclusive para a Irlanda do Norte, isso então significou a invocação do artigo 16", contou Godovanyuk.

Foi através desse pedido da UE que o Reino Unido teria percebido que "o protocolo é passível de revisão e que decisões podem ser revertidas, mesmo depois de terem sido acordadas e assinadas".

"Esse tipo de medida radical só poderia levar o Reino Unido a tomar contramedidas radicais. Então a União Europeia reviu sua visão e deu um passo atrás, mas o precedente já estava dado."

Repercussão pública

Indagada sobre como foi a reação sobre o protocolo de status da fronteira por irlandeses do norte que defendem a manutenção de um espaço unificado entre o Reino Unido e a Irlanda do Norte, Godovanyuk afirma que não foi das melhores.

Segundo a pesquisadora, ataques à infraestrutura, necessária para restaurar a fronteira alfandegária como portos que estavam sendo construídos para conduzir as checagens no futuro, aconteceram por parte dos extremistas do movimento unionista.

"Eles foram contra o protocolo, atacaram portos, ameaçaram inspetores, e isso com certeza enrijeceu a situação. Por isso, o governo britânico começou a considerar, primeiramente, a possibilidade de estender o período de carência, posteriormente, apresentou a proposta de revisão do protocolo sobre a fronteira, inclusive em função da pressão dos unionistas", explicou a especialista.

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Criação da fronteira alfandegária Reino Unido-UE

Mas afinal, quais seriam as consequências da criação de uma fronteira alfandegária para a Irlanda do Norte e para o Reino Unido no momento?

Godovanyuk explica que as implicações da reinstauração dessas fronteiras ainda não foram totalmente sentidas pelos moradores da Irlanda do Norte, uma vez que o protocolo ainda está no período de carência, e que foi adotado justamente para que os produtores possam se adaptar técnica, juridica e até psicologicamente às novas regras.

Contudo, a pesquisadora elucida que todas as mercadorias provenientes do Reino Unido rumo à Irlanda do Norte deverão passar por uma fronteira aduaneira especial, cumprir requisitos de uma declaração aduaneira específica e produtos agrícolas serão regulamentados de forma rígida para atender aos padrões e normas vigentes da União Europeia.

Sendo assim, o cenário que se aponta neste momento é a geração de "dificuldades para os produtores e diminuição do incentivo para exportar para a Irlanda do Norte" e aponta que "o risco de confronto, do aumento da insatisfação e o perigo de uma piora na situação entre os republicanos e unionistas é alto".

"Os produtores provavelmente buscarão outros destinos e rotas para seus produtos. Para as empresas será sem dúvida uma grande dificuldade, para os moradores da região a sensação é de que eles estão sendo separados do restante do Reino Unido. Os unionistas fazem lobby para que essas condições adicionais sejam revistas, a fim de manter um espaço aduaneiro único com Londres. [...] Se a gente ainda considerar a complexidade religiosa e confessional da região, então o nível de tensão deste conflito pode aumentar ainda mais."

Adicionalmente, a especialista enfatiza que a proposta do Reino Unido sobre revisão do protocolo não prevê a retirada da fronteira aduaneira, "uma vez que isso seria demasiado audacioso por parte dos britânicos e eles sabem que isso é impossível", entretanto, "eles estão propondo algumas alterações substantivas ao acordo, e não somente alterações técnicas ou correções pontuais", contou Godovanyuk.

Brexit ainda não foi solucionado, diz analista ante questão da Irlanda do Norte entre UE-Reino Unido

"O Reino Unido propõe suspender a necessidade de checagem aduaneira para os produtos cujo destino final é a Irlanda do Norte. Caso o produtor declare na fronteira que o seu produto tem como destino final a região, ele poderá evitar passar por todas as checagens sanitárias e fitossanitárias, não precisará pagar impostos alfandegários. Claro que para o bloco europeu isso é um risco, uma vez que mercadorias que não cumprem as normas e padrões europeus para chegar ao seu mercado", ponderou.

Na visão da especialista isso é um risco para a UE, e está claro que ela não deve aceitar esse tipo de proposta, pois para a Europa seria cruzar "uma linha vermelha".

Negociações em aberto

Apesar de parecer que as negociações entre UE-Brexit estavam solucionadas, a especialista acredita que ainda há uma longa caminhada a ser percorrida, a partir do momento que "o Brexit, em si, não foi concluído com a assinatura dos acordos de saída do Reino Unido, ou com o fim do período de transição ou com a assinatura do acordo de parceria comercial.

Ao mesmo tempo, Godovanyuk destaca que os diálogos devem continuar porque "ainda existem muitos pontos contenciosos, assuntos nos quais não houve acordo final e que não se resumem ao protocolo da Irlanda do Norte".

"A saída do Reino Unido do acordo do Brexit significaria seu cancelamento automático, e isso levaria à volta de Londres à União Europeia, o que seria um cenário absolutamente irrealista. Por isso acredito que as negociações vão continuar, e devem continuar por mais tempo do que esperávamos. O Brexit ainda não é uma questão solucionada", disse a pesquisadora.

Como provável solução, Godovanyuk considera que seja necessária a criação de um referendo, e que para realizar tal ato é preciso uma fundamentação e um motivo muito sérios, os quais deverão ser aprovados pelo centro. Como exemplo, a especialista cita a Escócia.

"Se olharmos o que acontece agora na Escócia, podemos propor alguns paralelos. [...] O primeiro referendo sobre a independência do país foi realizado com a sanção de Londres, e o segundo referendo, que é requisitado pelos nacionalistas escoceses, também demanda autorização da capital britânica, mas Londres já disse que é contra, por isso não acredito que a questão do referendo será colocada na agenda. Ao mesmo tempo, a atenção para a questão da unificação da Irlanda e a tensão na região podem aumentar."

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Perspectivas de reunificação das 'Irlandas' do Norte e do Sul

Sobre uma possível perspectiva de reunificação das "Irlandas", a especialista considera que, caso a maioria da população da região seja a favor, um referendo também deve ser convocado, no entanto, "não há nenhum indicativo de que a maioria da população apoie um referendo desse tipo".

Porém, caso isso ocorra, a pesquisadora afirma que união transformaria o país automaticamente em um membro da União Europeia, "o que aliás defende a maioria da população da Irlanda do Norte, que votou majoritariamente pela manutenção do Reino Unido no bloco europeu no referendo sobre o Brexit", explicou.

"Tanto a Escócia, quanto a Irlanda do Norte votaram para que o Reino Unido ficasse no bloco europeu. Por isso, caso a população decida por um referendo, Londres terá dificuldade de negá-lo, e será um problema muito grande em função das pressões do referendo na Escócia. Por outro lado, no contexto da pandemia, do Brexit e de grande imprevisibilidade global, é difícil prever como os cidadãos vão se comportar e como votariam", explicou Godovanyuk.

Na concepção da especialista, o governo britânico precisará de flexibilidade para fazer muitas concessões afim de manter a união entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido no intuito de garantir a normalização da região.

"Com certeza o protocolo sobre a fronteira da Irlanda do Norte será um problema persistente para a região e para Londres."

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