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Pichação em Padrão dos Descobrimentos: fruto de interpretação simplista da História, diz historiador

O Padrão dos Descobrimentos, um dos principais pontos turísticos de Portugal, amanheceu pichado neste domingo (8) com uma frase em inglês contra a colonização. A prefeitura de Lisboa removeu a pichação, mas o vandalismo reacendeu um recente debate. Em entrevista à Sputnik, historiador condena o ato.
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Até a manhã desta segunda-feira (9), em uma das laterais do monumento, podia-se ler a inscrição, com erros de ortografia em inglês, "Blindly sailing for monney, humanity is drowning in a scarllet sea lia", em livre tradução para o português: "Velejando cegamente por dinheiro, a humanidade afunda-se em um mar escarlate". 

À Sputnik Brasil, a assessoria de comunicação do Padrão dos Descobrimentos informou que a divisão científica da Polícia Judiciária (PJ) esteve no local para recolher pigmentos da tinta usada na pichação de cerca de 20 metros de extensão. Como não há câmeras de vigilância ao redor, a investigação sobre a autoria do ato de vandalismo torna-se mais difícil. A Câmara Municipal de Lisboa usou sua conta de Twitter para condenar o episódio.

​Em entrevista à Sputnik Brasil, António Lázaro, doutor em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa pela Universidade do Minho, onde leciona, também condena a vandalização não apenas deste monumento, como de outros, que tem acontecido em diversas partes do mundo. Recentemente, a estátua de Borba Gato foi incendiada em São Paulo.

"É completamente despropositado danificar o patrimônio desse modo para afirmar as suas crenças. É importante que haja uma reflexão sobre esse assunto, mas não creio que passe por andar a escrever mensagens desse tipo nos mais diversos monumentos. Foi no Padrão dos Descobrimentos, talvez porque tenha alguma visibilidade ultimamente, mas poderia ter sido em uma outra coisa qualquer", afirma Lázaro.

Ao interpretar o conteúdo da pichação, ele refere que a mensagem relaciona genericamente os descobrimentos portugueses com a busca de dinheiro, tendo como resultado um mar de sangue. O historiador considera a análise simplista, baseada em dois equívocos: a falta de consciência histórica e a falsa vinculação de certos grupos de homens a um determinado território.

No primeiro aspecto, Lázaro aponta uma interpretação maniqueísta da História.

"Tem implícito uma série de perspectivas que incluem, de algum modo, a ideia de que a História é uma coisa bonita e de que há bons e maus nos seus respectivos cantinhos. E não é assim. O homem, por natureza, incorpora essas duas dimensões. A História da Humanidade foi feita de tudo isso", explica.

Em segundo lugar, ele destaca que a História sempre foi feita de movimento, confronto e diálogo. Por isso, o especialista defende que é equivocada a ideia de que o território é inteiramente, por direito, de quem nasceu nele ou seja descendente daqueles que nasceram.

"Poucos são aqueles nesse planeta que podem dizer que estão na sua terra. Todos nós somos estranhos na terra onde vivemos. Todos somos, de algum modo também, fruto desses múltiplos diálogos e confrontos", completa.

Petição on-line propôs a demolição da Torre de Belém

Fato é que o ato de vandalismo reacendeu um debate recente em Portugal, não só sobre o Padrão dos Descobrimentos, mas sobre outros monumentos que remetem ao período da colonização portuguesa, como a Torre de Belém. Em junho do ano passado, uma petição on-line chegou a propor a demolição das duas obras, sob a justificativa de que ambas exaltam o racismo colonial. Naturalmente, a ideia não vingou.

"Acho completamente absurdo. Se começasse por aí, nada sobraria. A civilização humana teria que ser demolida. Implicitamente, muitos desses edifícios incluem essa dimensão da exploração. Agora, não creio que apagar isso vá beneficiar a vida", opina.
Pichação em Padrão dos Descobrimentos: fruto de interpretação simplista da História, diz historiador

Lázaro explica que o Padrão dos Descobrimentos foi um monumento erguido pelo Estado Novo, na década de 1940, glorificando o período das grandes navegações portuguesas. Sobre a Torre de Belém, ele assinala que foi construída para defender a entrada do rio Tejo, mas não vê relação com o tráfico de escravos, apesar de os autores da petição alegarem que servia como "torre de vigia da entrada do mercado de escravos".

O historiador enfatiza que o fato de estudar o tema não significa que ele concorde com a glorificação desses feitos. Pelo contrário. O professor ressalta que é importante, sim, debater a interpretação de acontecimentos históricos. No entanto, ele acredita ser mais importante que o Padrão dos Descobrimentos permaneça onde está e que, do ponto de vista museológico, possa ser enquadrado por um discurso que permita uma releitura.

"Hoje em dia, nenhum historiador em seu perfeito juízo lê à letra o Padrão dos Descobrimentos e reproduz um discurso de glorificação como aconteceu na década de 40. Agora, é um testemunho desse tempo e de um entendimento da História e daquilo que era a identidade do país. É importante preservar, discutir e enquadrar", propõe.

Estátuas de Cabral e Padre António Vieira também já foram pichadas

O Padrão dos Descobrimentos não é o primeiro monumento histórico a ser vandalizado em Lisboa. Em junho de 2020, a estátua do Padre António Vieira foi pichada com a palavra "Descoloniza" em tinta vermelha. Nas crianças indígenas que compõem a obra, foram pintados corações. Um ano antes, o mesmo monumento já havia sido alvo de pichação com a inscrição "Fuck colonialism" acompanhada de um símbolo anarquista.

Além de ser um dos principais expoentes da literatura barroca com seus sermões e epístolas, o jesuíta português foi missionário no Brasil no século XVII e também ficou conhecido por uma controversa catequização dos indígenas, apesar de ser contra a escravidão deles e dos africanos. Mesmo reconhecendo que a representação artística dedicada ao padre seja anacrônica, Lázaro lamenta as pichações.

"Pessoalmente, também acho que a estátua do Padre António Vieira, do ponto de vista da mensagem passada com aquelas figuras parece um bocadinho desajustada e fora do tempo. Independentemente de a ideia ser antiquada, o fato de terem maltratado a estátua é lamentável", critica.

Outra estátua portuguesa que já foi alvo de vandalismo, em junho de 2019, foi a de Pedro Álvares Cabral, em Santarém, a 85 quilômetros de Lisboa. Na ocasião, ela foi pichada com a frase "colonialismo é fascismo". O monumento ao descobridor do Brasil, como era apresentado nos livros e aulas de História brasileiros, foi apenas mais uma das "representações de figuras estereotipadas maltratadas", nas palavras de Lázaro.

Segundo o historiador, em alguns assuntos da História, a maldade ficou mais presente do que em outros. Ele considera que poderá ser necessário um balanço sobre isso, mas não está certo de que haja um movimento global de revisionismo histórico a respeito de figuras como Cristóvão Colombo, cuja estátua foi derrubada e jogada em um lago nos Estados Unidos.

O professor assinala que Estados Unidos e Portugal vivem realidades completamente diferentes e, por isso, a importação dessas manifestações, fruto das redes sociais, parece desajustada. De acordo com ele, em muitas delas estão em causa leituras simplistas da História, que identificam a escravidão como um movimento introduzido pelos europeus a partir do século XV. 

"Isso é falso. A escravatura é um fenômeno que existe pelo menos desde a Antiguidade", resume.

Ele considera que é fundamental discutir e pensar sobre o assunto. Mas, mais importante do que fazer juízo de valor sobre o passado e condenar monumentos à destruição, seria tentar mudar o mundo de hoje para melhor. Para o historiador, isso não será conseguido ao se tentar apagar o passado, mas ao olhá-lo de forma crítica para evitar que se repitam essas situações. 

"A escravatura é completamente inconcebível. O que podemos fazer hoje como cidadãos do mundo é evitar que isso se repita a todo custo e que situações similares possam acontecer, como acontecem. Não só sob a forma de escravatura, mas do trabalho, da exploração do homem pelo homem de formas atenuadas", compara.

Questionado pela Sputnik sobre uma ideia que foi levantada no Brasil de remover, do espaço público, monumentos considerados controversos, realocando-os em museus, o especialista diz que cada caso é um caso. Ele cita o exemplo de Maputo, capital de Moçambique, em cuja fortaleza foram depositados vários bustos e estátuas de figuras coloniais.

No entanto, ele contrapõe com outros países africanos, como no Senegal, onde isso não aconteceu e se optou por tentar conservar a visibilidade da herança colonial. No caso de Portugal, ele sugere seguir o exemplo senegalês.

"Acho que talvez optasse por manter as coisas como estão, promover o diálogo sobre o assunto e fazer o esforço de enquadramento e contextualização daquilo que essas obras significam e podem significar", conclui.
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