Após quase três anos no poder, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, somente agora abordou a América Latina, tendo anteriormente focado sobretudo em assuntos internos.
Em 24 de julho, em um discurso por ocasião do aniversário de Simón Bolívar, coincidindo com a reunião de chanceleres da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), ele sugeriu "construir algo semelhante à União Europeia, mas apegado à nossa história, à nossa realidade e às nossas identidades", cita suas palavras El País.
A esse respeito, a Sputnik Brasil entrevistou Thiago Rodrigues, professor adjunto no Departamento de Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, para perceber melhor o equilíbrio atual de forças na região e mais especificamente nas relações mexicano-brasileiras.
Jogos políticos internos
Para esclarecer a razão para mudança da estratégia do presidente do México, Thiago Rodrigues constata que López Obrador de fato tem uma trajetória política muito centrada em questões internas do México. Ao mesmo tempo, ao assumir finalmente a presidência, o chefe do Executivo mexicano assumiu um discurso contrário às iniciativas anteriores de alinhamento completo com os Estados Unidos, promovendo uma ideia de "que o México precisava voltar até a autonomia" em relação a Washington.
Além do mais, ele encontrou recentemente mais espaço para entrar na agenda da América Latina, em grande medida pela retirada do Brasil do espaço latino-americano com o governo Bolsonaro: "É um governo que se fechou, quer dizer, perdeu contato com América Latina, joga contra os processos de integração regional", que acabou com Unasul, não investe no Mercosul e nem participa da CELAC.
Assim, do ponto de vista do professor, o México viu a possibilidade de aumentar seu papel regional pelo recuo do Brasil. A outra razão dessa atividade mexicana na região, conforme ele, são as pretensões do chanceler do México de ganhar mais visibilidade para a próxima eleição presidencial, enquanto o próprio López Obrador não pode ser reeleito.
O especialista explica que a política externa do país foi tímida até o momento: "precisa ter um pouco mais de relevância de política externa do México para essa figura [chanceler Marcelo Luis Ebrard Casaubón] ficar mais conhecida".
Perspectivas de nova organização regional
Quanto às perspectivas dessa nova organização potencial, Thiago Rodrigues expressa seu ceticismo e relembra um provérbio da América Latina: "Quando uma organização dá errado, a gente inventa outra", ao invés de corrigir o que deu errado. Essa proposta do presidente é muito comum para a América Latina, cujos mandatários frequentemente propõem a criação de novas organizações.
No entanto, segundo ele, a formação dessa entidade é pouco provável por várias razões. Primeiramente, porque López Obrador teria que se enfrentar com outras organizações já existentes na região – como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a CELAC, particularmente.
"Na verdade, não teria sócio para associação", aponta ele, porque nem Brasil, nem Argentina, nem Colômbia, muito alinhada com os Estados Unidos, talvez não tivessem muito interesse em uma nova instituição. Por isso, há pouca probabilidade que uma nova organização criada a partir de uma iniciativa apenas do México tivesse sucesso.
Mais do que isso, o professor considera "muito pretencioso criar algo parecido à União Europeia", já que nenhuma organização conseguiu avançar em um sentido parecido ao dela.
O especialista reiterou mais uma vez que a ideia é mais uma parte do discurso político dele para chamar atenção para as relações exteriores de seu público doméstico. "É uma briga mais interna do que propriamente uma ideia que possa acontecer mesmo de verdade", concluiu.
OEA precisa de 'revisão de papel de peso dos países'
O professor opina que a existente OEA deveria ser reformada, devido ao fato que foi criada no distante ano de 1948, no começo da Guerra Fria, e é vinculada a um momento histórico diferente. Ele relembra que originalmente o projeto foi criado como uma união de países liderada pelos EUA contra a União Soviética.
"É algo que não tem mais sentido, e desde então os países da região mudaram muito", aponta. Adicionalmente, dentro da OEA existem desequilíbrios políticos, mas os EUA exercem nela um papel dominante. Por isso, muitos Estados-membros dela têm evitado a OEA e preferido outras formas e organizações para se relacionar, "mais dinâmicas e atualizadas".
No entanto, não existe possibilidade da reformação no curto prazo, já que o processo dependeria de certas mudanças gerais. Por um lado, da posição da estrutura global e da presença de outros países na região. Principalmente, trata-se do avanço da China, que continua aumentando sua maior presença econômica e parcialmente política na região.
O especialista faz uma ressalva que o país asiático não tem muita preocupação com aproximações políticas e culturais na região, se focando nos laços econômicos, ao contrário dos EUA. Mesmo por isso, o principal parceiro comercial do Brasil e da Argentina é a China e não os Estados Unidos, o que tornou o Brasil muito mais sensível à China do que antes.
No entanto, o avanço da China na região interessa-nos muito porque talvez uma maior presença chinesa fosse um estímulo para que os EUA procurassem renovar a OEA para resistir à presença chinesa.
Por outro lado, do ponto de vista doméstico, a reforma da OEA dependeria do papel brasileiro. Agora, com governo Bolsonaro, o país "praticamente zerou" sua presença na América Latina, inclusive nas organizações de integração. Mas, na opinião de Thiago Rodrigues, "um Brasil pós-Bolsonaro" pode voltar a ter maior presença na região e talvez mobilize os Estados Unidos a serem também mais ativos.
"No atual momento, os Estados Unidos não têm muito porquê para se mexer porque os países da região estão fragmentados com interesses diferentes. Isso é bom para os EUA."
Por agora, segundo a opinião do especialista, a Unasul e o Mercosul seriam os melhores investimentos para o Brasil, e não inventar outras instituições ou mesmo mexer muito na OEA. A primeira é basicamente um projeto político, a segunda é principalmente comercial, e juntas elas são complementares. No entanto, esse modelo agora está parado.
Disputa Brasil-México por liderança regional
O professor ressalta que o Brasil e o México, sendo economias competitivas, sempre tiveram dificuldades nas relações comerciais, já que têm projetos de desenvolvimento muito parecidos: projetos de industrialização, de nacionalização do petróleo, de autonomia econômica e de desenvolvimento, bem como de atração de capital estrangeiro para indústrias nacionais.
Havia um interesse nos últimos anos de aumentar essa colaboração com acordos de facilitação de comércio para indústria automotora, mas agora no Brasil há um processo de desindustrialização e observa-se um enfraquecimento nas relações de ambos os lados.
Adicionalmente, os Estados historicamente têm disputado a liderança regional. Existia uma divisão em que o México tinha muita influência na América Central e no Caribe e o Brasil na América do Sul – cada um tinha seu espaço, sem interferência na área de interesse de cada país.
"E o primeiro que quis furar isso foi o Brasil", segundo o analista: a partir dos anos 2000, o país se apresenta como mediador nas negociações para pôr fim nas guerras civis na América Central, começando assim um pouco a entrar na "área tradicionalmente mexicana". Embora agora com o governo Bolsonaro o Brasil tenha recuado, "estando muito fechado em si mesmo", o México nunca avançou na América do Sul.
Em setembro decorrerá a reunião dos chefes de Estado da CELAC, uma comunidade que teve intenção de ser um movimento de aproximação da América Latina e do Caribe excluindo os Estados Unidos e o Canadá, os países mais ricos do Norte, esclarece o especialista.
No entanto, do ponto de vista dele, essa reunião será principalmente "uma plataforma política para o México se apresentar como um ator mais relevante". O professor não espera muito desse encontro, principalmente por causa da ausência do Estado brasileiro:
"A ausência do Brasil praticamente inviabiliza a Celac ou qualquer outra iniciativa no continente porque é a maior economia da América Latina e tem um peso histórico muito grande na região. Então, com Brasil ignorando a região, a CELAC fica frágil, fica esvaziada", concluiu.