'Entrada dos EUA no Afeganistão nem deveria ter acontecido', diz analista brasileiro

Na semana passada, em um movimento que pasmou o mundo, o Talibã tomou a capital Cabul em uma ação rápida e assertiva. Diante dessa forte demonstração de poder, a Sputnik Brasil ouviu especialista para saber como ficará a situação no Afeganistão.
Sputnik

No domingo (15), o Talibã (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países) começou a entrar na capital afegã por todos os lados, disse o Ministério do Interior do Afeganistão, conforme noticiado.

O grupo tomou a capital em uma rapidez surpreendente, não só para o governo local como para todo o mundo que acompanhou imagens de afegãos desesperados tentando deixar a capital se pendurando em um avião norte-americano que partia do país.

Hoje (18), após assumir o poder, o grupo se apoderou de um importante arsenal militar dos EUA, como helicópteros militares, caças e equipamentos de Defesa, gerando preocupação internacional.

Mas como ficará a situação no país da Ásia Central após a total tomada de poder pelo Talibã? Quais serão as consequências da queda de Cabul para a geopolítica regional? A Sputnik Brasil entrevistou Tufy Kairuz, historiador, professor, PhD em História pela Universidade York no Canadá e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro para entender melhor todo o atual contexto no Afeganistão.

'Entrada dos EUA no Afeganistão nem deveria ter acontecido', diz analista brasileiro

Kairuz reafirma o fato de que a tomada da capital realmente surpreendeu a todos pela velocidade como aconteceu, pois as previsões apontavam que o Talibã ocuparia várias áreas, mas não de forma tão repentina e assertiva.

Entretanto, o especialista ressalta a localização estratégica do Afeganistão, e que após a saída das tropas norte-americanas, nações que fazem fronteira com país, como a Rússia, China e Paquistão "ganharam muito com isso".

"Ao meu ver, os interesses dos países em geral prevaleceram e vão ser beneficiados em função da saída dos EUA", disse Kairuz.

Retirada das tropas norte-americanas

Ao ser indagado se os Estados Unidos agiram certo ao retirarem suas tropas do país, Kairuz afirma que primeiro é preciso questionar se a "chegada" norte-americana foi certa.

"Primeiro precisamos perguntar se [valeu a pena], sobre essa alegação de uma chamada 'guerra ao terror', ter acontecido tudo que ocorreu durante essa década brutal para o povo afegão com bombardeios, ataques de mísseis, tapetes de bombas, drones e outras violências que foram feitas ali", elucidou o especialista.

Para Kairuz a saída dos EUA foi benéfica para todos na região, e enfatiza que, na verdade, "a entrada dos norte-americanos no Afeganistão nem deveria ter acontecido".

O especialista reforça que, agora, o país está sendo governado por afegãos, já que "os militantes Talibãs não vieram de Marte ou de outro planeta, eles representam certamente uma boa parte dos anseios do povo afegão".

"O Afeganistão tem que ser governado por afegãos, isso é um princípio básico das coisas. Não pode ser governado por um regime completamente dominador e corrupto até suas fundações, como foi o regime que os EUA colocaram no país, e o Ocidente achou uma maravilha porque estava atendendo aos seus interesses."

'Entrada dos EUA no Afeganistão nem deveria ter acontecido', diz analista brasileiro

Operação dos EUA no Afeganistão

Após 20 anos de presença no país, os objetivos da operação norte-americana foram mudando ao longo dos anos.

Kairuz conta que os EUA entraram na região a partir da década de 1990 com "imensos interesses geopolíticos e no potencial energético do território", principalmente depois do "vácuo" deixado pela União Soviética em alguns lugares, e observa que a "guerra ao terror", nesse sentido, "apareceu como uma circunstância proveitosa".

"Com a desculpa de estar protegendo seus interesses e segurança, e também de estar protegendo o mundo de um eixo terrorista que teria origem ali."

Entretanto, hoje, segundo o especialista, os EUA vão percebendo a importância econômica e estratégica da região também pela ascensão da China e pela recuperação da Rússia após a União Soviética, fatos que o governo norte-americano em um primeiro momento "subestimou". Porém, neste momento, Washington começa a direcionar seu olhar para o território de forma diferente.

"O Afeganistão foi uma derrota estratégica para os EUA, mas eu acho que eles não desistiram de tentar influenciar e de ter um certo domínio daquela área com os novos desdobramentos."

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Reconstrução do país com ajuda internacional

Após a saída dos EUA, vem a percepção da necessidade de reconstrução do país, e uma das primeiras observações a serem feitas é se a comunidade internacional vai ajudar nessa reestruturação.

Na visão do especialista, o que precisa acontecer "é a comunidade internacional dar um crédito de confiança ao novo regime no Afeganistão e os ajudar ao invés de boicotar".

"A gente já sabe como funciona, [com o novo governo] começa as sanções selvagens, principalmente da parte dos EUA e de seus aliados no Ocidente contra países que contrariam seus interesses, e com isso os povos desses países sofrem bastante."

Em um panorama inicial, Kairuz considera que a Rússia e a China poderiam ser os primeiros países a darem créditos ao Talibã e também amenizariam o sofrimento do povo afegão, assim como outras potências menores regionais, como o Paquistão e o Irã.

"China e Rússia têm um papel preponderante nesse processo de pacificação e podem fazer com que a região cresça, ajudando a alavancar o desenvolvimento econômico e o bem-estar dos povos dessa localidade", disse o especialista.

Se os países citados acima poderiam fazer uso geopolítico da situação em relação aos EUA, o historiador diz que não, e que na verdade é preciso clarificar que o interesse dessas nações acontece uma vez que eles fazem fronteira direta com o país.

"A Rússia e a China têm toda uma trajetória histórica na região, e todos os países têm, inclusive, direito de terem seus interesses geopolíticos respeitados, e isso não é necessariamente uma questão de expansão, dominação, exploração. Pode haver a cooperação sim", destacou.

Na interpretação do historiador, a presença de Moscou e Pequim nesse contexto, pelo tamanho de suas economias e pelo poder que detêm, "é até necessária, desde que se respeite certos princípios de autodeterminação dos povos e que se elabore um projeto de colaboração".

Contudo, Kairuz chama mais atenção para a "normalização" do papel dos Estados Unidos em "qualquer parte do planeta" uma vez que "se colocam como uma potência de exceção desde o século XIX quando começaram com a política do 'excepcionalismo' norte-americano".

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Reestruturação econômica

O especialista se diz otimista diante da reestruturação econômica do Afeganistão, mas ao mesmo tempo pondera que "está tudo muito recente" para poder apresentar um cenário assertivo.

"O Afeganistão tem reservas minerais, uma série de riquezas a serem exploradas [...] e também uma posição estratégica invejável de rotas comerciais que passam obrigatoriamente pelo país, especialmente as da China, além do gás natural, petróleo, que abastecem a Europa", disse o especialista.

Com essa relevância, a recuperação econômica de Cabul não só é importante para a própria população como para os países da Eurásia.

Ao falarmos de atividades comerciais na região, vale lembrar que o país afegão é um dos maiores produtores de papoula do mundo. Mas seria essa produtividade um risco para as nações vizinhas?

Kairuz diz que a papoula é uma questão difícil a ser tratada porque ela faz parte de uma "cultura", no sentido da agricultura, muita antiga no local, e salienta que o próprio Talibã no passado tentou erradicar o cultivo da planta em algumas áreas.

"Para solucionar essa problemática é preciso rever uma série de questões que estão colocadas há muito tempo sobre como se abordar drogas ilícitas, e para manter a posição da repressão só é possível com a cooperação de vários países, porque implica em financiamento de outras atividades agrícolas para substituir esse produto, já que a população que faz esse cultivo depende do plantio para gerar renda."

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Papel de organizações na estabilidade regional

O historiador afirma que órgãos como a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) e a Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) poderiam ter um papel relevante na estabilidade regional, principalmente para "inibir aventuras militaristas de países fora da região naquela área".

"Esses acordos, feitos há alguns anos, são extremamente importantes justamente para tentar evitar que outras intervenções aconteçam. Os acordos ainda não conseguiram ser implementados de forma prática porque a localidade passou por uma série de problemas nas últimas décadas [...] mas é extremamente significativo no plano econômico e político que esses países se unam em torno desses tipos de pacto."

Kairuz também sublinha que esses acordos fazem com que haja "uma espécie de pressão em regimes, como o do Talibã agora, para que eles tenham uma maior flexibilidade e entendam a importância da cooperação com outros países".

'Entrada dos EUA no Afeganistão nem deveria ter acontecido', diz analista brasileiro

Na visão do especialista, todas as pessoas "que têm algum tipo de boa vontade" no sentido de resolver o problema, esperam que o governo do Talibã se comporte de uma maneira "diferente" dessa vez.

"Eu acho que essa mensagem foi entendida pelo grupo atualmente, porque muitos dos militantes do Talibã de agora não são os do passado, são gerações mais novas que cresceram e ganharam liderança durante a ocupação dos EUA. A ideia de que eles são primitivos e despreparados é uma ideia equivocada, essa nova geração está consciente de todos os riscos que envolvem um governo irresponsável", explicou o historiador.

Por sua perspectiva, Kairuz espera que o grupo tenha passado de uma "facção, uma milícia que pertence a uma certa vertente religiosa" para uma organização que opere em prol do Afeganistão como Estado-nação.

O especialista enfatiza que esse "novo" modelo do Talibã também pode ser reforçado pelos diálogos que vêm acontecendo entre o grupo e países como Rússia e China, diálogos esses que acabam criando uma concepção na qual "não dá mais para tolerar um regime completamente enlouquecido".

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