O número de inquéritos abertos pela Polícia Federal (PF) para investigar casos de apologia ao nazismo passou de 20 em 2018 para 110 ano passado, mostram dados obtidos pelo jornal O Globo por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Já um monitoramento feito pela antropóloga Adriana Dias revelou que, de 2015 a maio de 2021, células neonazistas saltaram de 75 para 530 no país, reporta o jornal Folha de S. Paulo. O jornal paulista também informa que um levantamento da plataforma Safernet Brasil contabilizou um crescimento de mais de 600% de denúncias sobre conteúdo de apologia ao nazismo na Internet: de 1.282 casos em 2015 para 9.004 em 2020.
Essa multiplicação de casos provoca algumas questões: há mais neonazistas no Brasil hoje? Grupos neonazistas estão se articulando? Existe a possibilidade de em breve termos um partido com ideologia nazista?
A Sputnik Brasil explica esse florescimento recente de grupos neonazistas no Brasil e contextualiza o passado e o presente da história dessa ideologia no país.
Partido Nazista e o integralismo brasileiro
Nas décadas de 1920 e 1930, o Partido Nazista possuía filiais em várias partes do mundo. No Brasil, o partido teve presença em 17 estados e chegou a ter quase 3.000 membros, afirma a historiadora Ana Maria Dietrich, professora associada da Universidade Federal do ABC, citada pela Folha de S. Paulo.
O Partido Nazista no Brasil era restrito aos alemães que imigraram para o Brasil, excluindo assim os filhos de nacionais da Alemanha nascidos no Brasil, o que restringiu muito o alcance da agremiação.
Nesse sentido, a Ação Integralista Brasileira, criada em 1932 como um movimento fascista clássico, foi muito mais astuta, como explica à Sputnik Brasil Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenador do Observatório de Extrema Direita e coautor, juntamente com Leandro Pereira Gonçalves, do livro "O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo":
"Uma ideologia expressamente racista não consegue se adaptar à multiplicidade étnica da própria formação da identidade nacional. Então como fazer essa relação entre um discurso racista e uma sociedade multiétnica? Isso foi um fator de muita preocupação na história da extrema direita brasileira. O integralismo brasileiro soube manejar de uma forma bastante hábil essa questão. Incluía negros e negras nas suas fileiras, claro em posições mais subalternas, mas incluía. Ao mesmo tempo que fazia uma reverberação do ideal antissemita, tão comum aos fascismos."
O integralismo foi o principal movimento fascista fora da Europa. Mas tanto a Ação Integralista Brasileira quanto a filia brasileira do Partido Nazista, assim como todos os partidos do país, foram extintos com a instauração do Estado Novo por Getúlio Vargas em 1937.
Partidos neonazistas e legislação brasileira
A recondução do Brasil ao estado democrático de direito, em 1985, após 21 anos de ditadura militar, permitiu que grupos extremistas se articulassem e tentassem criar um partido neonazista. O oficial da Marinha Mercante Armando Zanine Júnior fundou, em 1988 o Partido Nacional Socialista Brasileiro (PNSB), que segundo Odilon Caldeira Neto trazia referências nítidas ao nazismo.
O PNSB teve vida curta e nunca foi oficializado na Justiça Eleitoral. Armando Zanine Júnior ainda tentou mudar o nome do partido, criando a sigla Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro (PNRB). "Um efetivo grupelho [que] tinha algumas dezenas de militantes", como skinheads (cabeças raspadas) e ajudou na criação no Brasil da vertente white power (poder branco), comenta o professor de história contemporânea da UFJF.
Existem algumas razões para os dois partidos não terem prosperado. A principal é que a lei federal antirracismo (Lei 7.716, de 1989) afirma que é crime "veicular símbolos" do nazismo "para fins de divulgação" e em caso de condenação, a pena é de multa e prisão de dois a cinco anos. Além disso, em 2003, o plenário do Supremo Tribunal Federal declarou que discriminação contra judeus é uma forma de racismo social. Ou seja, o antissemitismo e a negação do Holocausto, bandeiras da ideologia nazista, são crimes no Brasil.
Mas o próprio movimento neonazista no Brasil é fragmentado e diversificado, o que dificulta um alicerce estruturante, um ponto de vista programático, afirma Odilon Caldeira Neto. O especialista explica que o que há são pequenos grupos e gangues, que atuam em sites, fóruns, aplicativos de mensagens e operam mais em uma esfera de violência que, normalmente, não tende a ser apenas uma violência física, mas também em diversas roupagens.
"O que me parece importante é que essa grande pluralidade não condiz necessariamente com um grande número de militantes. Não existe nenhuma movimentação mais institucionalizada no âmbito do neonazismo no Brasil [...]. Por mais variadas que sejam as estratégias, as formas de atuação, de arregimentação, de discursos variados, não me parece que exista um eixo aglutinante desses tipos de organização. Isso não é menos preocupante [...] afinal é a reverberação de um discurso abertamente antissemita, racista, homofóbico, xenófobo, assim por diante", assinala o coordenador do Observatório de Extrema Direita.
Acenos do bolsonarismo
Embora o neonazismo não tenha muita possibilidade de atuação no campo político institucional, pelo menos enquanto uma agremiação política, e embora o ônus político da associação ao nazismo seja muito grande, há um aumento na agitação dos grupos neonazistas no Brasil, como mostram os dados que abrem essa reportagem.
Isso pode ser explicado em parte pela utilização pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de uma certa "simbologia, verborragia, figuras de linguagem, mitologias políticas" que remetem ao nazismo, afirma Odilon Caldeira Neto.
Em janeiro de 2020, Roberto Alvim foi exonerado da Secretaria Especial de Cultura após citar o ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, em um pronunciamento. Outros casos ocorreram desde então e mês passado foi divulgado que uma carta do então deputado federal Jair Bolsonaro publicada em 2004 estava em um site neonazista, como noticiou o portal The Intercept Brasil.
O professor de história contemporânea frisa que nos últimos anos ocorreu uma naturalização do discurso da extrema direita na esfera pública. "Um discurso de extrema direita projetado pelo bolsonarismo institucional acabou naturalizando outras expressões da extrema direita brasileira, nesse sentido é um canto de legitimidade."
O especialista recorda que nas eleições de 1994, Zanine, o fundador dos partidos neonazistas PNSB e PNRB, declarou apoio a Éneas Carneiro, do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), que rechaçou o apoio, algo que o bolsonarismo ainda não fez.
"Não direi que o bolsonarismo é igual neonazismo, mas os acenos que são colocados são muito bem quistos pelas posições do neonazismo no Brasil".
Por fim, esse processo de amplificação do discurso neonazista é também uma resposta da preocupação de entidades e movimentos antifascistas brasileiros que buscam mapear, denunciar e combater o neonazismo. Segundo o coordenador do Observatório de Extrema Direita, o antifascismo, que é muito plural no Brasil, está mais vigilante, mais atuante e mais apreensivo.
"E essa preocupação me parece absolutamente legítima porque não é um mero detalhe que figuras do staff [quadro] do governo Bolsonaro fizeram elogios abertos a representações, discursos e valores advindos do nazismo."