Falando sobre a importância e intenções da China na região, Letícia Tancredi afirmou que, em termos gerais, é visível o ingresso em grande número de recursos chineses na América Latina nas últimas décadas, especialmente após a crise de 2008, contudo, em termos comparativos, a parcela que a região representa nos investimentos chineses, assim como o que a China representa no total de investimentos estrangeiros na região "não é tão intensa quanto as pessoas imaginam".
"Para se ter uma ideia, só 6,3% dos investimentos na região vêm da China. Outros países mais tradicionais, como os EUA ou a Espanha, ainda são mais relevantes [...]", explica.
Contudo, a especialista ressalta que "isso não exclui que a América Latina tenha uma importância cada vez mais estratégica para a China, por ser fornecedora de commodities energéticas e minerais, que são necessárias para manter a crescente globalização chinesa, além das commodities agrícolas, necessárias para manter a segurança alimentar da enorme população chinesa".
"É por isso que por aqui, a China investe principalmente nos setores de infraestrutura, energia e extração", apontou Letícia Tancredi, enfatizando que o país asiático precisa de recursos estratégicos para manter o crescimento acelerado.
Em relação à infraestrutura, a especialista observou que a infraestrutura e logística na região são extremamente precárias, e os países latino-americanos têm um investimento em infraestrutura muito abaixo do que seria necessário para reverter esta lacuna.
"Na perspectiva chinesa, assim como de outros países, isso encarece os custos de transporte e aumenta o tempo de entrega, então investir na infraestrutura latino-americana parte de uma visão de longo prazo, pois vai facilitar o transporte de bens e recursos, contribuindo por outro lado também para o desenvolvimento dos países receptores destes investimentos [...]", observou.
Com relação ao setor de energia, a especialista ressaltou que a China demanda cada vez mais recursos energéticos para manter "a roda girando" no ritmo acelerado, já que o país deixou de ser autossuficiente em petróleo na década de 90, e desde então, a grande maioria do que consome vem de importação. "Para não depender tanto do mercado do Oriente Médio, que sofre grande instabilidade, a China busca novos mercados que possam suprir essas necessidades energéticas", disse ela.
"Os investimentos na América Latina, além de outras regiões como a África e a própria Ásia entram nesse contexto", afirmou a especialista, ressaltando que este não é o único setor no qual o país asiático investe.
"Nós temos visto nos últimos anos, uma variação do destino dos investimentos chineses por aqui, passando desde enormes operações no setor elétrico até investimentos em empresas de tecnologia, como a Nubank e a 99, por exemplo, já que a região é um enorme mercado para a tecnologia chinesa, e onde não tem tantas barreiras, inclusive culturais e políticas para consolidar as tecnologias do país", citou.
Potência da China x potências regionais
Ao ser questionada sobre os possíveis atritos gerados pela presença chinesa na região com outras potências, como os EUA, a especialista explicou que a crescente presença chinesa está chamando cada vez mais a atenção dos EUA e, segundo ela, a pandemia acelerou esta preocupação por causa da intensa cooperação econômica e sanitária oferecida pela China aos países da região.
"Mas é importante ter em mente que hoje a região ainda não é o principal cenário de embate geopolítico entre as duas potências, isso ainda se concentra principalmente na Ásia, com as questões envolvendo Hong Kong, a ilha de Taiwan, além do mar do Sul da China, por exemplo", disse Letícia Tancredi.
Segundo ela, à medida que a China cresce em suas capacidades econômicas e militares, este embate fica mais acirrado. A importância de outras regiões nesse contexto também vai crescer, é o caso da América Latina.
Outro ponto ressaltado foi a pressão norte-americana sobre o Brasil e o Equador para bloquearem as empresas chinesas de infraestrutura relacionadas ao 5G, sendo esta uma "nova face" da disputa que vai ter na região.
"O caso do Equador é muito interessante, inclusive. Como se sabe, a China é o maior credor dos projetos de desenvolvimento na América Latina, e o Equador se tornou altamente dependente desses recursos. A dívida com a China passou a ter um peso enorme para o país e, com isso, no início deste ano, os EUA fecharam um empréstimo ao Equador para substituir boa parte da dívida externa equatoriana com a condição de que as empresas chinesas fossem excluídas do desenvolvimento de 5G no país. Então, a partir deste caso, vemos uma contraposição entre as duas potências em duas áreas bastante importante na atuação de ambas na região. A cooperação para o desenvolvimento e a dimensão tecnológica", exemplificou.
Além disso, ressaltou que isso pode ser um sinal do que pode ser usado como ferramenta nesta rivalidade no cenário latino-americano nos próximos anos, restando saber quais estratégias serão utilizadas pelos países da América Latina para navegar neste contexto, "se vai ser um não alinhamento automático a nenhum dos lados, aproveitando para barganhar de uma forma mais vantajosa aos seus interesses ou se vai ser uma colaboração explícita com algum dos dois lados desta corrida geopolítica".
Principais países receptores de investimentos chineses na região
O Brasil segue na liderança dos países que mais recebe investimentos chineses na região, seguido pelo Peru, México e Argentina.
No Brasil, o principal setor de investimentos é o de energia, enquanto no Peru é o de mineração. Na Argentina e no México é o de infraestrutura.
"Com certeza, e cada vez mais, a China mantém importantes relações bilaterais com os países na região. A China vem de anos de boas relações com o Peru, por exemplo, e de uma aproximação muito intensa com a Venezuela, em que é constante a assinatura de acordos de cooperação bilateral em vários setores", observou.
Contudo, as relações com a Argentina têm chamado muita atenção após a posse do presidente Fernández, com implicações inclusive econômicas para o Brasil, já que a China desbancou o país na posição de maior parceiro comercial da Argentina nos últimos dois anos, e vem aumentando a compra de soja e carne suína do país vizinho.
Letícia Tancredi ressalta que essa aproximação acontece em vários outros campos, desde político até a cooperação espacial e militar com os argentinos.
Investimentos em setores considerados estratégicos
Falando sobre as políticas adotadas por alguns países desenvolvidos de limitar ou concentrar seus investimentos estrangeiros em setores considerados estratégicos, a especialista ressalta que o termo "concentração" é forte, já que os chineses passaram a diversificar seus investimentos na região.
"Nos últimos anos, os chineses vêm assumindo uma maior variedade de investimentos na região, apostando em setores de serviços, de tecnologia ou automotivo, por exemplo, mas, de fato, há uma grande parcela de investimentos fluindo para setores considerados estratégicos. E como quase tudo em economia política internacional, não dá para assumir uma visão de certo ou errado. Existem pontos positivos e negativos nesse movimento", explicou.
Por um lado, estes aportes em setores-chave das economias suprem uma lacuna de recursos financeiros que não acontecem de maneira suficiente pelo governo dos países receptores, contribuindo de certa forma ao desenvolvimento desses países e à possibilidade de entregar melhores serviços à população local.
Por outro lado, do ponto de vista securitário e estratégico, existem riscos, pois você tem o capital estrangeiro dominando atividades que são fundamentais para o funcionamento da economia e da sociedade.
"É por isso que alguns países adotam essas limitações de capitais estrangeiros em setores estratégicos, e esse debate já vem chegando com força na região inclusive. Um exemplo é a polêmica que ascende no Chile desde 2020, a partir da compra da distribuidora de eletricidade chilena, a CGE, pela estatal chinesa State Grid, uma transação que levou a chinesa a assumir quase 60% do mercado de energia elétrica no Chile [...]", indicou.
Além disso, ela ressaltou que as barreiras que vão ser impostas a este tipo de transação vão depender da estrutura econômica e política, variando de país para país, mas que a transparência e a fiscalização pela sociedade civil quando uma transação dessas acontece são muito importantes.
Ao comentar o controle no processo de internacionalização de empresas, Letícia Tancredi apontou que o maior controle do governo chinês no processo de internacionalização de empresas tem sido aplicado, principalmente, em empresas privadas, enquanto a maior parte dos investimentos chineses na América Latina vem de empresas estatais.
De acordo com a especialista, 80% dos investimentos da China na região vêm de empresas estatais em setores de extração de minérios, infraestrutura, então, neste sentido, o impacto na região não deve ser tão intenso.
Perfil dos investimentos chineses
Atualmente, o perfil dos investimentos chineses se concentra em setores como energia e extração mineira, contudo o país asiático vem investindo em tecnologias da informação.
Para Letícia Tancredi, os novos setores provavelmente não substituirão os antigos setores de investimento chinês, mas terá, sim, uma maior variação de setores com aportes altos em serviços financeiros, aplicativos de tecnologia, como por exemplo, o próprio Nubank, no setor de máquinas e equipamentos, entre outros.
"Além disso, a América Latina é um mercado importante para a tecnologia chinesa, especialmente em contexto em que outros países fecham as portas em uma campanha contra essas tecnologias. Então, não será surpresa se houver um aumento expressivo dos investimentos em tecnologia aqui na região", declarou.
Outra questão importante ressaltada pela especialista, que pode contribuir para alterar o perfil de investimentos chineses, é a questão ambiental.
"Como os investimentos na América Latina são associados à infraestrutura, extração e energia, eles geram muitas críticas e cobrança quanto aos seus impactos socioambientais, e esse é um debate que assume cada vez mais protagonismo no cenário internacional. A China se preocupa com sua imagem no exterior e tem adotado mudanças de postura quanto à sustentabilidade. Então, isso pode gerar também mudanças nos seus investimentos externos", informou.
Um sinal dessas mudanças é o grande acordo de investimentos assinado recentemente entre a China e a União Europeia, depois de anos de negociação, que inclui um capítulo sobre sustentabilidade.
China pode recuperar nível de investimentos externos pré-pandemia?
Os investimentos externos chineses sofreram uma queda acentuada durante a pandemia, e a grande questão é se o país asiático será capaz de recuperar o seu nível pré-pandemia.
De acordo com Letícia Tancredi, o governo chinês está apostando no mercado doméstico, citando o plano quinquenal do período de 2021 a 2025 da China, onde consta que um dos quatro grandes pilares é o mercado doméstico.
Além disso, há um esforço para redirecionar a economia chinesa, saindo de um eixo de infraestrutura e manufatura para um de consumo interno e serviços. Contudo a especialista ressalta que é preciso considerar que o país asiático opera sob a perspectiva de um modelo de economia dual, que não dispensa a circulação internacional nos seus cálculos de crescimento.
"A queda dos investimentos chineses durante a pandemia dispensa explicações, porque é esperado tendo em vista a conjuntura, mas um ano é pouco para considerar isto um sinal de grandes alterações nos investimentos externos, ainda mais um ano atípico", ressalta.
Citando um relatório do China Investment Research, a especialista afirma que houve um aumento nos investimentos externos chineses entre 2020 e 2021, mas um declínio no valor agregado, comparando o segundo trimestre de 2021 com o primeiro.
"Isso acontece porque, depois da retomada acelerada da economia, à medida que a pandemia foi controlada por lá, agora a economia volta a normalizar o seu ritmo, e além disso, em setores em que a China investe bastante aqui na região, os investimentos aumentaram nesse período, a exemplo dos setores de energia e logística. Ainda que exista um redirecionamento no plano econômico chinês para os próximos anos, eu não acredito que afete tanto os investimentos do país na América Latina", explicou.
Esse redirecionamento pode ter maior impacto em outras regiões em que o perfil dos investimentos chineses é diferente, concluiu Letícia Tancredi.