A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) autorizou, a partir de quinta-feira (16), o início das operações comerciais da Usina Termelétrica Gás Natural do Açu I (GNA I), localizada no Porto do Açu, em São João da Barra, no norte do Rio de Janeiro.
Com capacidade instalada para 1.338,30 megawatts e movida a gás natural, a GNA I será a segunda maior termelétrica em operação no país. A maior termelétrica em operação no Brasil atualmente é a Porto de Sergipe I, com 1,5 mil megawatts de capacidade instalada.
"A entrada dessa usina será muito benéfica para o setor, especialmente na atual conjuntura. A energia será injetada no sistema na região sudeste, a mais castigada com a estiagem dos reservatórios, sendo suficiente para atender quatro milhões de habitantes", afirmou o diretor-geral da ANEEL, André Pepitone, em comunicado.
Para falar sobre o impacto da GNA I no combate à crise energética que o país enfrenta, a privatização da Eletrobras e a viabilidade da matriz energética brasileira, a Sputnik Brasil conversou com Paulo Cesar Cunha, consultor da FGV Energia, na Fundação Getulio Vargas.
Crise energética e GNA I
O Brasil vive a pior seca em 91 anos. Cinco usinas hidrelétricas estão com níveis de reservatórios considerados muito baixos, com menos de 10% da capacidade. Entre elas está a Ilha Solteira, a maior usina hidrelétrica de São Paulo, que tem neste momento -1,45% de água, ou seja, está operando no chamado "volume morto", reportou o jornal O Globo na quarta-feira (15).
Vista da hidrelétrica de Ilha Solteira, no rio Paraná, em Ilha Solteira, São Paulo. Foto de arquivo
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No começo do mês, o vice-presidente, general Hamilton Mourão (PRTB-RJ) admitiu "algum racionamento" de energia por causa da crise hídrica.
"O que eu tenho acompanhado é que o governo tomou as medidas necessárias, criou uma comissão para acompanhar e tomar as decisões a tempo e a hora no sentido de impedir que ocorra isso aí que você [repórter] colocou, que haja apagão. Agora, pode ser que tenha que ocorrer algum racionamento. O próprio ministro [de Minas e Energia] falou isso", declarou Mourão.
Na terça-feira (14), o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou que a situação piora a cada mês. Segundo ele, não há previsão de quando o cenário estará normalizado.
Em Brasília, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, participa de evento ao lado do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em 28 de setembro de 2020
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A usina GNA I acabou tendo seu lançamento antecipado para tentar contribuir para reverter a situação atual. Paulo Cesar Cunha considera que a contribuição da GNA I será muito importante para combater a conjuntura atual.
"Essa usina é de grande porte, estava sendo construída e o que aconteceu foi que em um primeiro instante ela sofreu atrasos [...]. O empreendedor disse que parte dos atrasos se deveu às dificuldades da própria pandemia do novo coronavírus, que ficou mais difícil tocar uma obra grande com muita gente em plena pandemia. O que percebi foi que quando perceberam a janela de oportunidade, anteciparam e entregaram a obra [...]. [A GNA I] talvez seja uma das coisas mais relevantes [...] para enfrentar a situação."
A GNA I faz parte do Complexo Termelétrico Gás Natural do Açu, que prevê ainda uma segunda usina, a GNA II, com potência de 1.672,6 megawatts, também movida a gás, e com inauguração prevista para 2024. O Complexo Termoelétrico GNA será o maior da América Latina quando as duas usinas estiverem em operação. A construção dos empreendimentos deve custar cerca de R$ 10 bilhões em investimentos.
Mas mesmo com o reforço da GNA I, o consultor da FGV Energia não acredita que o valor da conta de luz sofra alteração, pelo contrário: "vai continuar cara e é possível que encareça mais ainda, o que [GNA I] vai fazer é agregar mais energia para o sistema".
Conta de luz no Brasil ficou mais cara pela crise hídrica neste ano, São Paulo, 21 de julho de 2021
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Paulo Cesar Cunha explica que quanto mais tempo durar a atual crise hídrica, mais impacto terá na conta de luz.
"Estamos no fundo do poço, mas isso pode acabar rapidamente ou pode durar mais tempo. [...]. Como a saída vai depender de fatores que são mais ou menos incontroláveis, por exemplo, o advento de chuvas muito generosas agora no final de outubro até abril [...], mas ninguém pode garantir que essas chuvas venham. Há uma aleatoriedade muito grande e incerteza com relação aos efeitos climáticos [...]. Isso significa que podemos ter um alívio na situação energética sim, é possível, mas pode ser que ela persista. Em se persistindo, a carestia continua."
Acertos e erros do governo
Apesar da situação delicada, o governo federal, na generalidade, tomou medidas adequadas, avalia o especialista. Tentar facilitar os processos de licenciamento para antecipar empreendimentos, pressionar os empreendedores para entregar obras e contratar geração emergencial de energia foram algumas das iniciativas corretamente aplicadas pelo governo, elenca Paulo Cesar Cunha.
Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, com acordeão durante sua visita a obras de infraestrutura hídrica em Sertânia, no estado de Pernambuco, Brasil, 19 de fevereiro de 2021
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Por outro lado, muito poderia ter sido feito de modo mais eficiente: "Reconhecer de forma mais clara a gravidade do problema, explicitar de maneira mais nítida para a população essa necessidade e tornar as coisas mais consistentes, comunicar de forma adequada [...] e uma atitude que levasse a uma situação de redução da carga mais nítida", enumera.
Privatização da Eletrobras, energia nuclear e matriz energética
Visando a continuidade do plano de privatização da Eletrobras, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deu aval na segunda-feira (13) para criação da Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPAR), uma empresa pública organizada sob a forma de sociedade anônima e vinculada ao Ministério de Minas e Energia.
Bolsonaro sancionou, com vetos, a medida provisória que viabiliza a privatização da Eletrobras em 13 de julho. A estatal é a maior empresa de energia elétrica da América Latina e governo federal espera que a privatização reduza a conta de luz em até 7,36%.
A Lei da Eletrobras impôs a obrigação de o governo contratar termelétricas a gás natural, mesmo em locais onde não há reservas nem gasodutos, o que implica a construção de gasodutos e termelétricas. Paulo Cesar Cunha considera que esses jabutis (como são chamados elementos estranhos ao texto da lei, muitas vezes inseridos por parlamentares para assegurar vantagens a aliados) são um desastre.
Faixas e cartazes durante protesto em frente ao Senado Federal, em Brasília, sobre votação da Medida Provisória, que trata da privatização da Eletrobras, 16 de junho de 2021
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"O que aconteceu na Lei da Eletrobras, na verdade, foi uma situação espúria, foi uma intervenção inadequada no processo de planejamento, atribuindo a locação de térmicas sem que esse tipo de ponderação fosse avaliado. As térmicas foram colocadas deterministicamente em locais que não eram os mais adequados, então a Lei da Eletrobras [...] foi utilizada para, na minha visão, uma abordagem absolutamente inadequada e distorcida do mercado do gás. É uma coisa espúria e acredito que seja possível reverter aquele desastre."
O consultor da FGV Energia esclarece que as termelétricas são extremamente necessárias e adequadas, principalmente para facilitar e viabilizar a penetração da energia renovável, uma vez que a térmica não compete com as renováveis pelo volume de atendimento.
"Para que você consiga fazer uma penetração massiva de renováveis você tem que ter hidrelétricas com reservatórios e térmicas desse tipo, obviamente que na quantidade mínima necessária para viabilizar a entrada das outras, que são mais baratas. Agora, quando você faz uma intervenção como a que foi feita na Lei da Eletrobras, desprezando o passo adequado entre renováveis e térmicas para que essas entrem de forma sincrônica e você atribui deterministicamente a implantação da térmica, você distorce tudo. Inclusive, o papel virtuoso que a térmica teria."
O especialista acredita vai ocorrer uma mudança na matriz energética brasileira, assim como ocorreu há 30 anos, quando o país percebeu que não poderia depender apenas da energia hídrica, já que não era viável construir reservatórios novos, fosse pelo impacto ambiental e social grande, fosse porque alagava muito.
Imagem aérea da comunidade Bonete, vila isolada em Ilhabela (SP). Após anos de dificuldade com energia elétrica, os cerca de 200 moradores, por meio de recurso público, instalam placas solares que abastecem baterias (foto de arquivo)
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"Esse conjunto de dificuldades fez com que a gente abrisse mão de fazer reservatórios há 30 anos. Quando se percebeu que não se ia conseguir fazer reservatório se percebeu que era necessário mudar a matriz [...]. No final da década de 1990, mais de 90% da produção de energia do Brasil era de energia hidrelétrica. Hoje, aproximadamente 60% são de hidrelétrica. Houve uma transformação importante na matriz", comenta.
Mas essa diversificação é ainda muito vulnerável ao clima porque o nível de alteração climática acabou se revelando mais severo do que o projetado, de forma que o Brasil vai precisar diversificar mais ainda para ficar menos exposto.
Usina hidrelétrica de Itaipu é vista a partir do rio Paraná, na fronteira entre Brasil e Paraguai (foto de arquivo)
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"Mudar um pouco o papel da [energia] hidráulica no processo. Ela passa a funcionar como uma fonte de complementação. A base ao invés de ser hidráulica, a partir do momento em que você começa a colocar mais e mais renováveis, eólica e solar no sistema, e térmicas para compensar atributos de flexibilidade e potência dessas fontes, em uma quantidade suficiente para que elas funcionem, as hídricas passam a ser complementares. Com isso, consegue-se manter, ou até avançar, na questão da matriz limpa", avalia o analista.
Questionado sobre o papel da energia nuclear nessa equação da matriz energética brasileira, Paulo Cesar Cunha reconhece que a energia nuclear tecnicamente é uma solução importantíssima, mas ressalta dois problemas:
"Na minha visão tem dois problemas sérios. O primeiro problema é governança. A gestão de nuclear é uma questão do binômio governança-segurança. O segundo ponto é de custo de descomissionamento. Hoje você tem usinas que estão funcionando há muito tempo, com muita experiencia de nuclear no mundo todo, mas você tem pouca experiência de descomissionamento nuclear porque elas não são tão velhas assim. Então descomissionamento nuclear é um assunto que começa a ficar mais importante agora. São duas dificuldades, mas que na minha visão não demonizam a fonte", pondera.
Sobre o uso no Brasil, o consultor da FGV Energia avalia que o país possui uma situação favorável, de forma que os atributos trazidos pela energia nuclear já são atendidos por outras fontes utilizadas. "Não sei se a gente precisa se esforçar para resolver esses dois problemas, que são graves, dado que eu consigo atender de outra forma, sem ter que enfrentar essas dificuldades todas", conclui.