Com 81,54% dos portugueses completamente imunizados, de acordo com dados do Our World in Data, da Universidade de Oxford, o país ultrapassou Malta, com 80,91%. No entanto, Gouveia e Melo, coordenador do plano nacional de vacinação, minimizou o ranking e preferiu destacar que Portugal já venceu o novo coronavírus, mesmo ainda não tendo atingido a meta que ele próprio definiu, de 85%.
"Pelo menos, a primeira batalha está ganha, e isso é um grande alívio para todos nós. O processo de vacinação venceu o vírus e, agora, temos de começar a aprender a reganhar a nossa liberdade e a nossa vida. É isso que temos de fazer, claro que com alguns cuidados", afirmou Gouveia e Melo à imprensa durante a cerimônia de abertura do ano letivo em uma escola onde estudou, em Viseu.
Já o presidente Marcelo Rebelo de Sousa comemorou o fato de Portugal ter assumido a liderança na imunização completa da vacinação após uma reunião, em Roma, com o Grupo de Arraiolos, que congrega 15 países da União Europeia sem poderes executivos.
"Houve chefes de Estado que, eles próprios, falaram das suas situações, dizendo que ficaram aquém daquilo que gostariam, e a nossa situação é invejável", disse Rebelo de Sousa, citado pela Agência Lusa.
Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, ao centro, condecora o vice-almirante Gouveia e Melo (esquerda)
© Foto / Miguel Figueiredo Lopes/Presidência da República
Na avaliação de médicos ouvidos pela Sputnik Brasil, está tudo dentro do script: o presidente exerce seu papel político, e o vice-almirante cumpre sua missão, com discrição e silêncio, mas competência. Gustavo Tato Borges, presidente em exercício da Associação de Médicos de Saúde Pública de Portugal (AMSP), diz que o militar foi a personagem chave e um dos mais importantes para o sucesso da vacinação em Portugal.
"A maneira como organizou, estruturou, solucionou os problemas e esteve concentrado e dedicado a esse trabalho da vacinação... As declarações públicas que prestou levaram a esse trabalho de vacinar nossa população o mais depressa possível e com o máximo de segurança. Acho que o país tem uma dívida de gratidão para com esse senhor", elogia.
Gouveia e Melo assumiu a coordenação da força-tarefa da vacinação no início de fevereiro, depois que seu antecessor, o médico Francisco Ramos, pediu demissão por detectar irregularidades no processo de seleção de profissionais de saúde para vacinação no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, do qual é presidente da comissão executiva.
Não se tratava de uma situação isolada. À época, o Ministério Público começou a investigar pelo menos nove outros casos de pessoas e grupos que furaram a fila da vacina. Em pouco tempo de comando, Gouveia e Melo, que já fora condecorado por Jair Bolsonaro com a medalha da Ordem do Mérito Naval, em 2020, conseguiu resgatar a credibilidade no processo de imunização.
Mentalidade militar ajuda na organização do plano de imunização
Comparando as duas gestões, Tato Borges lembra que, além de médico, Ramos é um político filiado no Partido Socialista (PS), que não soube separar as águas da defesa de seus ideais políticos de um trabalho técnico altamente qualificado, exigido pelo programa de vacinação.
"Passamos de uma gestão inicial muito política, orientada por aquilo que eram os trabalhos associados ao governo. Infelizmente, o coordenador anterior fez até declarações bastante desagradáveis para apoiantes de determinado partido político, o que de fato ficou mal na saída deste trabalho", avalia.
Acostumado a estar isolado em águas mais profundas, o militar com formação submarinista, que foi chefe da Esquadrilha de Submarinos, integrando-a entre 1985 e 1992, passou pela terceira e quarta ondas da pandemia de COVID-19 com serenidade, apesar dos solavancos.
Ele assumiu o cargo quando Portugal enfrentava o pior momento pandêmico, com o maior número de mortes e casos da doença por milhão de habitantes no mundo. Mas, para ele, uma antítese de Capitão Nascimento, "missão dada é missão cumprida", ainda que comprida. Tato Borges atribui o êxito à formação militar de Gouveia e Melo.
"Entrou o vice-almirante, com uma mentalidade militar de organização, cadeia de comando e procedimentos. De fato, foi um trabalho muito mais objetivo, estratificado e sério, que levou a que esse sucesso tenha sido aumentado. Isso deve-se, quase com exclusividade, à mentalidade do vice-almirante, fruto também da formação militar que tem no seu passado de trabalho e de serviço ao país", justifica.
Gustavo Tato Borges, atual presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública de Portugal
© Foto / Divulgação
Questionado pela Sputnik Brasil como os portugueses enxergam um militar no comando de um cargo civil, especialmente numa função de complexidade médica, o especialista em saúde pública diz que vê isso com naturalidade. Segundo ele, sua experiência nas Forças Armadas foi importante para a boa execução da tarefa.
"A ideia de tê-lo chamado para essa parte da organização foi exatamente trazer um pouco da sua mentalidade militar para este trabalho. Foi exatamente essa forma de estar que ele trouxe para essa coordenação e fez com que todo o sistema funcionasse, de uma forma muito mais arquitetada, integrada e que permitisse evitar qualquer tipo de erro", explica.
O presidente da AMSP destaca ainda a tranquilidade na forma como o vice-almirante se comunica com a imprensa e a população. Avesso a holofotes, mas assediado pelos órgãos de comunicação de Portugal, que já chegaram a ventilar até uma eventual candidatura à presidência, Gouveia e Melo afirma e reafirma que quer voltar ao anonimato e que seria um péssimo político.
'Se Pazuello fosse como o vice-almirante, teria sido uma maravilha'
No momento mais tenso, durante uma manifestação de negacionistas que protestavam em frente a um centro de vacinação, o militar chegou a ser empurrado e chamado de "assassino", paradoxalmente, por salvar vidas. Manteve o sangue-frio para evitar mais conflitos, mas passou a andar com a segurança reforçada para não macular a imagem das Forças Armadas caso fosse agredido.
"Sobretudo, o senhor vice-almirante teve uma postura de perfeita cordialidade, de facilidade de conversa que tinha em termos da comunicação social. Nunca teve nenhum tipo de manifestação política ou desconsideração por pessoas de determinado lado. Apenas foi uma pessoa muito frontal, honesta e vertical, o que permitiu que esse plano decorresse de uma maneira muito boa", assinala.
Em entrevista à Sputnik Brasil, o médico carioca Marcio Sister, que mora e trabalha em Vila Nova de Gaia, no norte de Portugal, considera o vice-almirante um exemplo para o que o general Eduardo Pazuello deveria ter sido à frente do Ministério da Saúde. Enquanto o português é louvado por seu êxito no processo de vacinação, o brasileiro é investigado pelo Senado na CPI da covid.
"Se Pazuello fosse como o vice-almirante, teria sido uma maravilha para o Brasil. Todos vamos nos lembrar de que ele foi escolhido para ser ministro da Saúde e tomar conta da vacinação no Brasil por ser um excelente homem de logística. Obviamente, isso não foi demonstrado. O que ficou claro é que ele não era nem um sujeito de logística, nem um político nem ministro da Saúde, nada. Passou só fazendo coisas erradas e que o deixaram marcado de uma forma ruim", compara Sister.
O médico carioca Marcio Sister mora em Vila Nova de Gaia, no Norte de Portugal
© Foto / Divulgação
Na opinião dele, Gouveia e Melo foi a pessoa certa, na hora certa e no lugar certo. De acordo com o médico carioca, o militar português focou, desde o primeiro dia em que assumiu o cargo, em apenas um objetivo: vacinar toda a população.
Diferentemente de Pazuello, que ficou famoso pela frase "um manda, o outro obedece" no episódio em que Bolsonaro o desautorizou a negociar vacinas da CoronaVac, numa briga política com o governador de São Paulo, João Doria, o vice-almirante foi duro, mas sem jamais perder a ternura, quando precisou.
"Ele teve que trilhar por caminhos complicados, de vez em quando, bater de frente com a ministra da Saúde, com a secretária da Direção-Geral de Saúde, até mesmo com o presidente e o primeiro-ministro. Mas, como estava extremamente focado nisso, ninguém tem nada a falar contra ele. É um sujeito sério, que merece o respeito e as honrarias a que ele fez jus", reconhece.
Sister ressalta que, assim como a maioria dos países, Portugal enfrentou problemas na vacinação, como a falta de imunizantes devido à distribuição, negacionistas e pessoas que não voltam para tomar a segunda dose. No entanto, Gouveia e Melo superou as adversidades, levando o país ao topo da imunização completa.
Indagado pela Sputnik se é melhor usar a farda em todas as aparições públicas, como faz o vice-almirante, e realizar um trabalho competente, do que Pazuello, que vestia terno e gravata, mas ameaçou colocar a farda para depor na CPI, o médico não titubeia.
"Com certeza, prefiro o fardado que cumpre sua função. Só porque temos tristes lembranças dos militares no poder no Brasil não significa que todo militar ou tudo o que é militar é ruim. Acabamos de constatar isso nesta brilhante missão do vice-almirante Gouveia e Melo", defende.