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Crime contra humanidade e genocídio: Bolsonaro não será julgado pelo TPI, avalia professor

A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas sobre o papel do Tribunal Penal Internacional, os desafios do novo procurador-geral da instituição e as denúncias contra o presidente da República.
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O Tribunal Penal Internacional (TPI), localizado em Haia, nos Países Baixos, anunciou na segunda-feira (27) que vai concentrar as investigações no Afeganistão sobre as denúncias de crimes cometidos pelo Talibã (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países) e pelo Estado Islâmico-Khorasan (EI-K), um ramo do Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países).
Dessa forma, ficam de fora os possíveis crimes cometidos por tropas e agentes de inteligência dos EUA no país desde 2002. O procurador-geral do TPI, Karim Khan, explicou que a sua organização não pode "esperar investigações locais genuínas e eficazes" no Afeganistão após a tomada de poder pelos talibãs.
"Os recentes desenvolvimentos políticos no Afeganistão e a mudança de regime do país tiveram profundas repercussões [...]. Depois de uma análise cuidadosa, concluí que, dadas as circunstâncias atuais, a possibilidade de ver as autoridades nacionais realizarem investigações efetivas [...] tinha desaparecido", disse Khan em comunicado.
O procurador-geral acrescentou que, devido aos "recursos limitados" decidiu concentrar as investigações "nos crimes alegadamente cometidos pelos talibãs e pelo EI-K, em detrimento de outros processos".
A decisão de excluir as forças dos EUA da investigação gerou críticas, com alguns chamando a medida de uma tentativa de "justiça seletiva". O TPI havia passado 15 anos analisando as alegações de crimes de guerra no Afeganistão antes de abrir um inquérito formal no ano passado.
Parente de Zemari Ahmadi inspeciona os destroços do veículo atingido por ataque de drone dos EUA em Cabul, em 18 de setembro de 2021
No Brasil, o TPI virou tema recorrente. Em 2019, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e a Comissão Arns apresentaram ao TPI indícios de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas praticados por Bolsonaro.
Em agosto deste ano, foi a vez da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) apresentar uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro por genocídio e ecocídio no TPI pela responsabilidade do presidente na morte de 1162 pessoas de 163 comunidades indígenas devido à sua gestão da pandemia. E, em breve, a CPI da Covid deve encaminhar o relatório final ao tribunal denunciando Bolsonaro por crime contra a humanidade.
Índios da etnia Guajajara em uma estrada entre duas aldeias no Maranhão
A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas sobre o papel do TPI, os desafios do procurador-geral e as denúncias contra o presidente da República: Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI) e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), e Ivana David, desembargadora integrante da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e professora de Direito Processual Penal do MeuCurso e de Direito Digital do Insper.

Tribunal para todos os povos

O Tribunal Penal Internacional promove o inquérito e o julgamento de pessoas por genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. O Brasil aprovou e subscreveu o Estatuto de Roma, que deu vida a TPI, em 18 de julho de 1998, e o Congresso brasileiro ratificou o ato.
O atual procurador-geral, Karim Khan, é advogado britânico e assumiu o cargo em junho deste ano. Ele terá um mandato de nove anos e um dos principais desafios será mudar a imagem de que o TPI se concentra apenas em casos de políticos africanos. O tribunal também é censurado pela lentidão dos casos e salários altos dos juízes. Wagner Menezes enumera outros desafios do novo procurador-geral:
"O grande desafio do TIP hoje é provar para o mundo que ele não é um tribunal feito exclusivamente para países africanos. Acredito também que um grande desafio será aperfeiçoar os mecanismos de jurisdição a serem exercidos sobre os Estados. Acho que o TPI, assim como outros tribunais, tem o seu reconhecimento, validade e importância pautados substancialmente pela qualidade das decisões e sentenças e dos processos que são implementados no quadro de suas competências. Nesse sentido, o novo procurador terá essa função de conduzir o tribunal de forma sólida, organizada, com a finalidade justamente de demonstrar definitivamente para o mundo que o TPI é um tribunal para todos os povos e todos os Estados indistintamente."
O procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan. Foto de arquivo
Uma ausência notória é a dos EUA, que em 2020, durante a administração de Donald Trump, denunciaram TPI como um "tribunal desautorizado" e impuseram tanto sanções financeiras quanto uma proibição de visto à sua principal procuradora, Fatou Bensoud, depois que ela deu início a uma investigação sobre possíveis crimes de guerra cometidos por militares norte-americanos no Afeganistão.
​Em abril deste ano, o atual presidente dos EUA, Joe Biden, suspendeu as sanções, mas o país segue sem fazer parte do Estatuto de Roma.
"Causa perplexidade essa oposição insistente dos EUA em relação à sua adesão [...]. É, sem dúvida nenhuma, uma posição bastante hegemônica de um país central no Conselho de Segurança [das Nações Unidas], que inclusive pode pedir a suspensão de um determinado processo. Chega a ser paradoxal", lamenta o presidente da ABDI.
Wagner Menezes acredita que com o amadurecimento da própria jurisdição do TPI, os EUA podem rever a sua posição e aderir ao TPI. Mas, enquanto isso não acontece, ele reforça que é fundamental que a nova administração siga se esforçando para conseguir a adesão de novos Estados que reconheçam a jurisdição do TPI, e que o tribunal se fortaleça institucionalmente.
"Faz parte do esforço de construção de um mundo pautado por outros valores, que foi edificado em 1945 e que agora, mais do que nunca, busca novos caminhos no reconhecimento e na proteção de direitos para a humanidade", conclui.
Sede do Tribunal Penal Internacional, em Haia, nos Países Baixos. Foto de arquivo

Caso Bolsonaro

A denúncia apresentada pela APIB ao TPI argumenta que estão em curso no Brasil "atos que se configuram como crimes contra a humanidade, genocídio e ecocídio" e que "dada a incapacidade do atual sistema de justiça no Brasil de investigar, processar e julgar essas condutas, denunciamos esses atos junto à comunidade internacional, mobilizando o Tribunal Penal Internacional", afirma Eloy Terena, coordenador jurídico da APIB.
Segundo o relatório de 148 páginas apresentado pela APIB, os povos mais afetados pelas políticas do governo Bolsonaro foram: munduruku, yanomami, guarani-mbya, Kaigang, guarani-kaiowá, tikuna, guajajara e terena.
Pessoas queimam efígie representando o presidente do Brasil Jair Bolsonaro durante a segunda marcha das mulheres indígenas, Brasília, 10 de setembro de 2021
Ivana David explica que as ações do APIB, do CADHu e da Comissão Arns contra o presidente Jair Bolsonaro ao TPI apresentam indícios de crime contra a humanidade e incitação de genocídio contra os índios e, por isso, "a denúncia efetivada agora vai ser investigada e, dependendo do teor dessas investigações", elas vão amparar uma denúncia e, posteriormente, um possível processo contra o presidente Bolsonaro.
"É importante pontuar que o TPI investiga e processa pessoas [...]. Se o presidente não for reeleito, essas investigações vão se encerrar depois que ele deixar o cargo [...]. Se for reconduzido, [Bolsonaro] ainda estará no cargo quando essa investigação se encerrar", destaca a desembargadora.
Com relação ao relatório da CPI da Covid, que está sendo elaborado pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL), a comissão confirmou que vai encaminhar uma cópia do documento ao TPI logo que a CPI acabe. De acordo com Calheiros, a denúncia se sustentará em dois pontos: a crise com o desabastecimento de oxigênio em Manaus e a falta de políticas de proteção para os povos indígenas durante a pandemia.
​Ivana David comenta que o relatório final da CPI da Covid será primeiro submetido à votação dentro do Senado e, se essa votação atingir o quórum, o documento será remetido para o procurador-geral da República, Augusto Aras, que tem a atribuição de denunciar o presidente da República.
"É ele que eventualmente, vislumbrando ali [no relatório] uma conduta criminosa, vai denunciá-lo ao Supremo Tribunal Federal [...]. Mas, independentemente disso, esse relatório pode ser levado também ao TPI, até como prova documental das circunstâncias que foram levantadas durante essa CPI. Tem documentos, relatórios, depoimentos, é como se a CPI fosse já um inquérito e ele é apresentado ao procurador do TPI. O procurador pode usar toda essa documentação para amparar já uma denúncia contra o presidente da República e até outras autoridades que forem identificadas", esclarece a professora do Insper.
Ivana David sublinha ainda que o trecho do relatório da CPI que foca na falta de políticas de proteção para os povos indígenas durante a pandemia do novo coronavírus poderá servir para embasar e aprofundar as denúncias já realizadas pelas organizações não governamentais (ONGs) ao TPI.
Wagner Menezes observa, contudo, que Bolsonaro não foi ainda denunciado no TPI. "Na realidade, as ONGs levaram denúncias ao procurador, que vai examinar o caso e decidir se apresenta esse caso ou não. Ele [Bolsonaro] não foi denunciado".
E o professor da USP não acredita que o presidente será denunciado no TPI, uma vez que só são admitidos casos que ainda não foram julgados localmente.
"É muito difícil o procurador admitir esse caso porque o Brasil tem instituições, porque o Judiciário funciona e porque esse foi um governo eleito democraticamente. E esses casos ainda estão sendo discutidos perante o sistema judicial nacional [...]. Com as instituições que o Brasil tem, parece-me pouco factível que o procurador possa admitir tecnicamente isso", avalia.
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