No sábado (2), milhares de pessoas saíram às ruas em várias cidades dos EUA em uma série de atos em defesa do direito ao aborto. As manifestações fazem parte da Marcha das Mulheres, evento realizado anualmente desde 2017, e que congrega cerca de 200 organizações da sociedade civil em mais de 650 localidades em todos os 50 estados do país.
Mas as manifestações não ocorreram apenas nos EUA. Milhares de mulheres participaram de atos em vários países da América Latina em ocasião do Dia Internacional do Aborto Seguro, celebrado em 28 de setembro.
Dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe: manifestante da Frente Feminista de Londrina, Paraná, em 28 de setembro de 2021
© Folhapress / Isaac Fontana/FramePhoto
Para entender melhor o cenário da descriminalização do aborto em diferentes países do globo, a Sputnik Brasil conversou com Laira Rocha Tenca, doutoranda em Ciência Política no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB) e coordenadora do grupo de pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas IRI-USP.
Lei do Texas
Entrou em vigor no estado norte-americano do Texas, no início de setembro, uma lei que proíbe o aborto após seis semanas de gestação, mesmo em casos de estupro ou incesto.
A lei estadual contradiz a jurisprudência do Supremo Tribunal dos EUA, que admitiu, em 1973, o direito das mulheres de abortar enquanto o feto não for viável, ou seja, por volta das 22 semanas de gestação. Portanto, a lei do Texas seria inconstitucional, mas a Suprema Corte deixou a lei entrar em vigor, citando "novas questões de procedimento".
Manifestantes participam da Marcha das Mulheres em Austin, Texas, em 2 de outubro de 2021
© AFP 2023 / SERGIO FLORES
Na prática, a lei do Texas deve banir quase a totalidade dos abortos no estado, já que de 85% a 90% das mulheres que passam pelo procedimento atualmente estão grávidas de mais de seis semanas, relata o jornal Folha de S. Paulo.
Laira Rocha Tenca acrescenta que qualquer pessoa pode processar uma clínica do estado que realizar um aborto depois desse período e que o denunciante pode receber pelo menos US$ 10 mil (aproximadamente R$ 54,5 mil) de indenização paga pelo réu.
"A lei é considerada inconstitucional porque o aborto é considerado um direito fundamental nos EUA desde 1973. Uma lei dessa está em vigor porque pela primeira vez a Suprema Corte tem seis juízes conservadores e três liberais", avalia a pesquisadora.
Decisão chinesa
No fim de setembro, o governo chinês anunciou que vai limitar os abortos que não tenham indicação médica. Atualmente, o aborto no país asiático pode ser feito de acordo com a vontade da mulher, com poucas restrições.
A doutoranda da UnB afirma que a China se encontra em uma queda de natalidade e as medidas recentes não surtiram efeito. Após décadas de política de filho único, Pequim promulgou a política de dois filhos em 2016 e, em seguida, a política de três filhos em agosto deste ano. Tudo para aumentar a taxa de fertilidade.
"Não tem surtido efeito porque a qualidade de vida na China tem subido e sabemos que há relação direta entre qualidade de vida e menos filhos", comenta.
Tenca ressalta que o governo chinês disse que a medida faz parte de um conjunto de iniciativas que conta com a educação sexual, medidas para evitar a gravidez indesejada, encorajamento os homens a partilhar a responsabilidade na sua prevenção e implementação de planejamento familiar.
"A medida chinesa vai em um sentido completamente diferente do sentido norte-americano. Porque essa restrição dos EUA tem origem moral: um determinado grupo de pessoas chega ao poder, consegue uma maioria na Suprema Corte e, por acreditar que o aborto não deveria ser legalizado, permitem que essa legislação passe [...]. A gente vê na narrativa do governo chinês uma restrição ao lado de um discurso progressista. No caso dos EUA é exatamente o contrário: aborto legal não. Aborto legal é um crime porque as mulheres estão assassinando bebês. Esse é o discurso do governo texano."
Contudo, a especialista sublinha que no país asiático os direitos das mulheres não foram ainda completamente reconhecidos como básicos e fundamentais: "Tanto que estão à mercê de interesses econômicos da nação [...] Nesse momento de crise fica evidenciado que o direito das mulheres é algo que é permitido se fazer uma concessão. Os direitos das mulheres estão longe de ser algo fundamental."
Avanços e retrocessos na América Latina
A Câmara dos Deputados do Chile aprovou em 28 de setembro um projeto de descriminalização do aborto até 14 semanas de gestação, uma iniciativa que será analisada agora no Senado do país.
Em dezembro, a Argentina aprovou a lei da interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana de gestação, após um debate histórico, tornando-se o maior país da América Latina onde o aborto é legalizado, depois de Cuba, Uruguai e Guiana. No México, o procedimento é permitido na Cidade do México e nos estados de Oaxaca, Hidalgo e Veracruz.
Reação de uma apoiadora à legalização do aborto na Argentina após votação do Senado em Buenos Aires em 30 de dezembro de 2020
© REUTERS . Flor Guzzetti
Mas essas localidades são ainda exceções na América Latina. Segundo o portal da RTP, na Colômbia, Chile, Brasil, Equador, Paraguai, Venezuela, República Dominicana, Guatemala, Bolívia e Peru, o aborto continua a ser ilegal exceto em três casos: estupro, deformação fetal ou risco para a vida da mãe. Já no Haiti, Nicarágua, El Salvador e Honduras, a interrupção da gravidez é totalmente ilegal, o que implica penas de prisão para a mulher que se submete ao procedimento e para quem realiza a intervenção.
Laira Tenca aponta alguns fatores para a América Latina ter, no geral, leis restritivas em relação ao aborto: a estrutura patriarcal que impacta a representação no Legislativo e no Judiciário, com baixa representação feminina; a colonização, que introjetou o pensamento cristão na base da educação e da ordem moral, deforma que todos os debates se dão em torno de questão religiosa; e, no caso, específico do Brasil, o subfinanciamento que o Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta e o descaso do governo federal em aplicar atendimentos.
A pesquisadora cita ainda dois exemplos de retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos que ocorreram no Brasil durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Um deles é a portaria 2.282, que em agosto de 2020 obriga médicos e profissionais da saúde a notificarem a polícia ao acolherem mulheres vítimas de estupro que procurem uma unidade de saúde pública para realizar um aborto. Além disso, as mulheres precisam assinar um termo de responsabilidade e consentimento, com declaração de estarem cientes dos crimes cometidos caso tenham mentido sobre o estupro e dos riscos e desconfortos possíveis decorrentes do procedimento.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante solenidade do Dia do Enfrentamento à Violência contra a Mulher, no Palácio do Planalto, em Brasília-DF.
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O outro é o caso de uma criança de dez anos que foi estuprada dentro de casa e a Damares Alves, ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, teria agido para impedir o aborto da menina, divulgando informações sigilosas sobre a criança, os médicos e o hospital onde o procedimento foi realizado.
"Dessa forma, o movimento conservador enviou militantes para frente do hospital onde ela realizaria o aborto [...]. Um direito garantido se tornou um objeto de disputa [...]. À luz desses exemplos, é claro que o Brasil vive um retrocesso", lamenta a especialista.
Ainda assim, a pesquisadora é otimista e afirma que as experiências argentina e mexicana indicam um caminho mais positivo para a América Latina no que tange a revisão de leis de aborto.
Mulher toca tambor durante o Dia Global de Ação pelo Acesso ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, em uma praça em Caracas, Venezuela, 28 de setembro de 2021
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"Acredito que haverá uma flexibilização da legalização e que é uma tendência regional [...]. A descriminalização e a legalização do aborto são caminhos inevitáveis não só porque o impedimento do procedimento viola por si só o direito básico de todas as mulheres [...] [mas] considerando a importância do discurso dos diretos humanos e a relevância que o gênero e os direitos sexuais e reprodutivos têm tomado na ONU [Organização das Nações Unidas], é inevitável esse avanço", avalia Laira Tenca.
A doutoranda da UnB conclui, contudo, frisando que ficou evidente nos últimos tempos que nenhum direito em estruturas democráticas é irrevogável e mesmo com movimentos organizados por mulheres, as sociedades estão passíveis de retrocessos: "Estamos passando por uma profunda instabilidade jurídica e política. O aborto ainda é um objeto de disputa".