A Suprema Corte dos Estados Unidos é o mais alto tribunal federal dos Estados Unidos, ou seja, possui autoridade jurídica suprema dentro do país para interpretar e decidir questões relacionadas às leis federais, incluindo a Constituição.
Entretanto, a Corte vem passando por alguns obstáculos, como a polarização entre democratas e republicanos dentro da instituição, assim como o distanciamento e a descrença por parte da sociedade estadunidense diante de suas decisões.
Hoje, a configuração estabelecida entre a Corte e o Executivo conta com a maioria dos juízes sendo de perfil republicano, enquanto na presidência governa um democrata.
Essa diferença de ideologias impacta o andamento dos trabalhos e pode operar diretamente nos dois assuntos mais importantes tramitando na Suprema Corte atualmente: a legalização do aborto e o controle de armas.
A Sputnik Brasil entrevistou Denilde Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM/SP e especialista em Políticas das Américas do Norte, Central e Sul para saber o que esperar do futuro da Corte e os desafios enfrentados pelo governo Biden diante da instituição.
Holzhacker elucida que a Suprema Corte dos EUA tem uma influência política importante na sociedade norte-americana a partir do momento que atua diretamente nas mudanças e processos vividos pela mesma.
"Quando em um sistema presidencialista o juiz da Suprema Corte é indicado pelo presidente e é sabatinado e aprovado pelo Senado, essa é uma lógica política", ressalta a especialista.
Com isso, em um processo cada vez mais evidenciado a partir de 2010, a professora explica que as indicações refletem o partido de quem senta na cadeira da presidência. Se é um mandatário do Partido Democrata a Suprema Corte ganha uma conotação mais liberal, se é do Partido Republicano, o viés seguido é mais conservador.
"É possível observar uma influência partidária muito forte nas indicações [...] e essa politização reflete uma partidarização do processo judicial que promove implicações cada vez mais marcantes de posicionamento dentro da Suprema Corte."
No entanto, mesmo com uma forte influência, segundo pesquisa realizada em setembro deste ano pela Universidade Quinnipiac, o índice de aprovação do trabalho da Corte atingiu seu nível mais baixo em 2021. Apenas 37% dos eleitores registrados aprovam as atividades da instituição, enquanto 50% desaprovam e 13% não têm opinião formada.
Holzhacker explica que há uma descrença geral em todo sistema político norte-americano por parte da sociedade, mas que ao mesmo tempo, algumas decisões tomadas pela Corte impactaram diretamente o âmbito social.
Entre elas, a especialista cita a questão dos sindicatos, que, em junho deste ano, tiveram derrubado pela Suprema Corte o direito de representantes sindicalistas visitarem trabalhadores rurais dentro das fazendas, por exemplo. Outro ponto mencionado é a demora na decisão sobre o programa de saúde Obamacare.
Imagens de pessoas que foram ajudadas pelo Obamacare ocupam cadeiras de senadores democratas boicotando uma reunião de negócios do Comitê Judiciário do Senado sobre a nomeação da juíza Amy Coney Barrett para ser juíza associada da Suprema Corte, 22 de outubro de 2020
© AP Photo / Caroline Brehman
"A discussão sobre sindicatos tem um efeito muito grande podendo gerar um peso maior ou menor na defesa dos trabalhadores. [...] Outra questão que pesou foi a demora sobre a decisão do Obamacare, o direito de garantia do acesso à Saúde. Essas são decisões que estão no dia a dia das pessoas e a demora, o processo legal envolvido, podem ser interpretados como um empecilho de acesso que gera distanciamento da sociedade."
Além desses fatores, Holzhacker considera que "a própria lógica polarizada da sociedade norte-americana na qual todas as instituições têm passado impulsiona uma queda de credibilidade e não seria diferente com a Suprema Corte".
Falecimento de Ginsburg e aceleração da partidarização
Em 2020, a juíza Ruth Bader Ginsburg faleceu aos 87 anos em Washington. Nomeada pelo ex-presidente Bill Clinton em 1993, Ginsburg ficou conhecida como uma autêntica lenda da justiça norte-americana e um ícone do feminismo na Suprema Corte.
Antes de morrer, Ginsburg declarou que "meu desejo mais fervoroso é o de que eu não seja substituída até que um novo presidente seja eleito", e alguns meses antes afirmou que não se aposentaria enquanto Donald Trump fosse presidente, de acordo com o site Consultor Jurídico.
Entretanto, logo após seu falecimento, o ex-presidente "correu" para substituir sua cadeira. Segundo Holzhacker, Trump e os republicanos viram em sua saída a chance de ter mais representatividade na Corte.
"A intenção era ter maioria republicana e conservadora na instituição. [...] Esse momento foi, de fato, caracterizado pela aceleração da lógica de partidarização. Trump indicou três nomes, todos eles conservadores, pois acreditava que conseguiria bloquear as agendas mais liberais e progressistas e assim avançar com políticas mais conservadoras a partir da Suprema Corte."
Caricatura da falecida juíza Ruth Bader Ginsburg, um dos símbolos do feminismo na Corte, na Marcha das Mulheres realizada após o estado do Texas lançar proibição quase total de procedimentos de aborto, Nova York, EUA, 2 de outubro de 2021
© REUTERS / Caitlin Ochs
Um dos nomes indicados por Trump foi o da juíza Amy Coney Barret, que após ser aprovada pelo Senado, tomou posse em outubro de 2020. A especialista conta que após essa definição a instituição ficou dividida entre três juízes com perfil mais liberal e outros seis com diretrizes mais conservadoras.
"Dentro desses seis juízes com perfis mais conservadores, há três deles mais moderados que têm equilibrado decisões e assumido posições mais próximas dos liberais [...]. Apesar da modelação mais conservadora observada a partir do governo Trump, é preciso entender que dentro do conservadorismo existe um grau e uma capacidade de aproximação de alguns temas liberais", esclareceu Holzhacker.
A especialista ainda destaca a expectativa que, diante da maioria com perfil republicano, era esperado "um rolo compressor" na instituição da agenda conservadora, mas que na verdade depende do tema e das questões que estão envolvidas.
O ex-presidente Donald Trump e Amy Coney Barrett (à esquerda) depois que o juiz da Suprema Corte administrou o juramento constitucional a ela no gramado sul da Casa Branca em Washington, 26 de outubro de 2020
© Alex Brandon
Governo Biden e Suprema Corte
Holzhacker cita que um dos tópicos mais complexos para o presidente Joe Biden em relação a assuntos que tramitam na Suprema Corte é o Obamacare.
Obamacare é um programa criado pelo ex-presidente Barack Obama que consiste em um composto de regras federais que pretendem tornar os planos de saúde mais baratos. Nos EUA, não há um sistema universal de Saúde, aos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil por exemplo, o atendimento é feito de forma particular.
A professora conta que a garantia do Obamacare se manteve, o que mostra, mais uma vez, que dependendo da agenda colocada há uma proximidade com a agenda de quem está na presidência, e sendo um democrata, envolve questões mais sociais e de acesso dos grupos mais vulneráveis.
No entanto, Holzhacker diz que há uma pressão do lado democrata para que Biden promova uma reforma na Suprema Corte.
Joe Biden cumprimenta o juiz da Suprema Corte, John Roberts, antes de se dirigir a uma sessão conjunta do Congresso na Câmara do Capitólio, Washington, EUA, 21 de abril de 2021
© REUTERS / Chip Somodevilla
"Biden já criou um comitê para discutir essa reforma na qual algumas das modificações desejadas é a alteração do número de juízes e o tempo que eles poderiam ficar no cargo antes de se aposentarem. Ou seja, há uma série de discussões para que haja uma mudança na estrutura e assim conseguir um maior equilíbrio entre as ideologias presentes para que se consiga refletir a sociedade como um todo."
Contudo, essa reforma não é bem-vinda pelo lado republicano, o qual acredita que sua aprovação, principalmente no que diz respeito a alteração no número de magistrados, pode beneficiar os democratas. Além disso, "a chance dessa reforma avançar ainda é bastante pequena dado todos os empecilhos que hoje existem nos EUA, como questão econômica e a pandemia, assuntos que ganham mais relevância nesse momento", segundo a especialista.
Há um outro futuro tópico em destaque, o qual Holzhacker diz ser "uma agenda cara para os democratas" que é a questão do controle de armas, agenda que entrará em pauta a partir de 2022.
Pessoas esperam em uma fila para entrar em uma loja de armas em Culver City, Califórnia (foto de arquivo)
© AP Photo / Ringo H.W. Chiu
Novos temas de trabalho
Em 4 de outubro, a Suprema Corte iniciou uma nova temporada de trabalho. Na visão da especialista, a instituição pode sofrer transformações, uma vez que "em um momento mais liberal e progressista impulsionou uma série de mudanças, mas agora pode ser que haja retrocessos e a volta de um amplo conservadorismo".
Os principais desafios futuros da Corte seriam a questão do aborto e, como citado anteriormente, o controle de armas.
"A discussão sobre o aborto já entrou na pauta, se ele vai ser legalizado ou não [...]. É preciso entender que a capacidade de mobilização da sociedade diante dessas questões também é muito ampla, não é só um jogo político, mas também está no âmbito da discussão social e de grupos organizados, portanto, o aborto é uma temática bastante relevante."
Milhares marcham do lado da da Suprema Corte dos EUA durante a Marcha das Mulheres a favor do aborto em Washington, 2 de outubro de 2021
© AP Photo / Jose Luis Magana
A segunda agenda mais pertinente nesse momento seria sobre o controle de armas, "que atinge diretamente a Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos que é tema central para os republicanos". Para Holzhacker, esses dois tópicos podem gerar "disputas e ainda maior polarização na sociedade norte-americana".
"Acredito que há esses dois grandes desafios, além deles, há também a agenda econômica que depende de uma posição definida e que pode bloquear políticas e ações do próprio Biden."