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Gestão do trânsito no Brasil ainda é focada no carro e não no cidadão ou ciclista, diz ativista

Na última década, mais de 8,5 mil ciclistas morreram em incidentes de trânsito no Brasil. Durante a pandemia, o número de sinistros aumentou em grande porcentagem. A Spuntik Brasil entrevistou ativista para entender o que gera esses trágicos dados no trânsito brasileiro.
Sputnik
Segundo dados da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), os incidentes com bicicleta no Brasil subiram 30% nos cinco primeiros meses de 2021. A pesquisa mostra uma grande fragilidade, falta de estrutura e consciência no trânsito brasileiro, de acordo com o Auto Esporte.
A pesquisa foi dividida por regiões, estados e municípios. Em alguns lugares, o crescimento do número de acidentes foi bastante alto, como em Goiás – que registrou aumento de 240% neste ano em relação a 2020 –, Rondônia (+113%) e Sergipe (+100%), que também se destacaram na incidência de sinistros graves.
"Esses dados demonstram a importância de termos atenção e iniciativas focadas nesse público. O uso da bicicleta cresceu no Brasil e exige uma abordagem de prevenção ao sinistro", afirmou Antonio Meira Júnior, presidente da Abramet, citado pela mídia.
Ainda de acordo com Meira Júnior, "comparada a alguém que se desloca em um automóvel, uma pessoa que circula em uma bicicleta tem uma probabilidade de óbito oito vezes maior".
A Sputnik Brasil entrevistou Renata Falzoni, arquiteta, jornalista e cicloativista em São Paulo, diretora do canal Bike é Legal, com quase 300 mil seguidores no YouTube e 134 mil no TikTok para entender por que o Brasil ainda está tão atrasado nas políticas de trânsito para ciclistas, na estruturação de ciclovias e indo na contramão do mundo que cada vez mais utiliza a "magrela" como transporte. 
Ciclista pedala na ciclovia da Avenida Paulista, região central de São Paulo (foto de arquivo)
Muitas vezes, quando é noticiado problemas de trânsito envolvendo automóveis e ciclistas, é utilizada a palavra "acidente" para caracterizar o ocorrido. Entretanto, Falzoni alerta que essa não é a palavra adequada para tal, a partir do momento que esses episódios acontecem pelo falho sistema brasileiro ligado à mobilidade.
"A ABNT [Associação Brasileira de Normas Técnicas] recomenda que não se use esse termo mais, já que mais de 90% dos incidentes, sinistros, que são as palavras corretas a serem usadas, eles não acontecem por 'acidente' e sim por um sistema de gerenciamento da nossa mobilidade que provoca esses incidentes onde tudo é muito previsível e regado a falhas humanas", explicou a jornalista.
Ainda segundo Falzoni, "o Brasil tem uma deficiência muito grande para entender o que deve ser feito para gestão do trânsito" e cita a Suécia como um país modelo pelo desenvolvimento da proposta "Visão Zero", na qual "nenhuma morte ou lesão no trânsito é aceitável".
"A Suécia está ensinando o mundo a evitar mortes, lesões, através de uma responsabilidade de todo o sistema, que começa nos gestores, passa por quem fabrica os automóveis e bicicletas e principalmente por quem projeta os espaços públicos."
A jornalista destaca o fato que, desde 1950, o Brasil segue uma diretriz na qual a indústria automobilística é quem move a economia, e que todo o desenho das cidades é feito para fluidez dos carros sem pensar no pedestre.
"A gente está em uma situação muito difícil na qual é complicado convencer os gestores a mudarem esse foco do carro para o motorista, para o pedestre e o ciclista. Portanto, podemos dizer que todo conceito de gerenciamento de trânsito no Brasil ainda é focado no automóvel e não no cidadão, seja ele pedestre ou ciclista."
Com a falta de planejamento, ciclovias são construídas em lugares de passagem de pedestre colocando em risco o cidadão que anda na rua e o próprio ciclista (foto de arquivo)
Além desse não olhar para o elemento humano no trânsito, de acordo com Falzoni, "até hoje, em cidades brasileiras, são aceitas velocidades de 60/70 km por hora no ambiente urbano, e mais uma vez, isso não é um 'acidente', é uma tragédia anunciada".
"Na cidade de São Paulo, de cada 100 pessoas que morrem vítimas do trânsito, 88 estavam fora de automóveis [...] isso mostra a fragilidade no gerenciamento da questão. [...] Sempre se culpa o pedestre, mas é preciso perguntar: como é que morrem tantos animais nas nossas estradas? É por que eles estão errados ou por que o desenho das estradas brasileiras está incorreto?", questionou.

Pandemia e alta dos incidentes

Em relação ao aumento de sinistros envolvendo ciclistas e trânsito durante o período da pandemia, a jornalista diz que isso ocorreu porque "foi reduzido o nosso posicionamento nas ruas [de ciclistas] e a fluidez dos automóveis se elevou, sendo assim, a mortandade de pedestres e ciclistas também amplia porque aumenta a velocidade média dos carros".
Na visão de Falzoni, a crise provocada pela pandemia pode ser atenuada através da mobilidade ativa, na qual menos carros e mais bicicletas transitam nas ruas, gerando menos poluição e também ajudando no bolso do cidadão brasileiro que tem um custo infinitamente menor usando a "magrela" como meio de transporte.
A jornalista cita Janette Sadik-Khan, ex-secretária de Transporte de Nova York que, durante a pandemia, auxiliou cidades na Europa a implantarem estruturas cicloviárias provisórias.
"A Sadik-Khan declarou que as cidades que investirem ao longo da pandemia em mobilidade ativa, especialmente em bicicletas, elas não vão apenas se recuperar no pós-pandemia, elas vão prosperar, uma vez que estarão 'sequestrando' todo custo que se gasta em carros [...]. Essa declaração é muito importante para gente interiorizar. O Brasil não interiorizou, a Europa sim."
Pessoas andam de bicicleta calmamente em Paris, França, 5 de junho de 2021

Flexibilização das leis de trânsito

Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro, enviou o projeto de lei nº 3.267/2019 que posteriormente foi aprovado pelo Congresso e começou a valer em abril deste ano. O projeto flexibiliza algumas leis de trânsito, como a elevação no limite de pontos para suspender o direito do condutor de dirigir.
Indagada se as medidas prejudicaram os ciclistas, Falzoni afirma que "de tudo que os ciclistas pleitearam, pouca coisa entrou" e afirma que as revisões "impulsionaram a impunidade".
"O que é mais preocupante é que agora, para perder a carteira, não são necessários mais 20 pontos, e sim 30. [...]. Flexibilizou muito a forma como o condutor vai ser penalizado [...], principalmente para motoristas profissionais, que podem acumular 40 pontos independente da gravidade da multa, ou seja, eles estão estimulados sim a cometer infrações gravíssimas contra pedestres e ciclistas sem temer a perca pelo direito de exercer a profissão."
A jornalista também ressalta que, diferentemente de outros países, os exames toxicológicos realizados no Brasil em condutores profissionais têm dia e hora marcados, e "não acontecem aleatoriamente", o que faz com que o condutor saiba exatamente o "período que precisa estar limpo", ou seja, ele pode fazer uso de substâncias para se manter acordado no volante e ao mesmo tempo não ser apontado o uso nos resultados.
"Independente dessas reformas terem sido feitas, o simples fato do Executivo falar que é contra radares, contra velocidade máxima e que adora dirigir em alta velocidade e o faz conduzindo motocicletas, só com isso, mesmo que tenha mudado algumas leis, ele estimula a população brasileira a se portar de forma bastante contrária aquela que se deseja para salvar vidas."
O presidente Jair Bolsonaro e o prefeito de Chapecó João Rodrigues, durante Motociata com apoiadores na cidade de Chapecó, SC, 26 de junho de 2021
Falzoni também salienta outro problema grave que é o fato de "não existir dolo nos crimes de trânsito", ou seja, se uma pessoa drogada ou embriagada dirige um automóvel e mata outra pessoa, ela vai a julgamento como "culposo", sem intenção de matar, "mesmo que ele tivesse assumido para si o dolo".
"O nosso Judiciário deveria pensar e refletir porque qualquer juiz já perdeu algum amigo ou parente em algum sinistro de trânsito, e as pessoas que protagonizaram esse incidente estão soltas. No meu entender elas deveriam trabalhar em um hospital de trauma, e não só pagar cesta básica ou fazer trabalho voluntário, ficando livre no trânsito novamente."
Romeiros de bicicletas se dirigem pela via Dutra BR116, com destino a Aparecida, onde é comemorado no dia 12 o dia nacional da Padroeira do Brasil. Diversos acidentes aconteceram nos últimos dias na rodovia, 9 de outubro de 2021

Políticas de mobilidade no Brasil

Na Europa, se opta cada vez mais por usar bicicletas como meio de transporte, principalmente para se deslocar ao trabalho.
Questionada se no Brasil é possível pensar em políticas de mobilidade que incluam a "magrela" para locomoção, a jornalista afirma que sim, mas que para isso algumas barreiras têm que ser quebradas, como a pressão da indústria automobilística e o custo de vida nos centros das cidades.
"Existe uma enorme pressão da indústria automobilística. Se colocarmos todos os carros que tem no mundo, um na frente do outro, vai dar 134 voltas no planeta. [...] É possível sim [ter bicicletas como meio de transporte], desde que a gente consiga fazer com que a população volte a morar perto dos seus empregos e crie empregos aonde elas estão morando, principalmente nas periferias, ao longo dos eixos estruturados de transporte."
Falzoni enfatiza que "para solucionarmos a mobilidade nas cidades, é preciso combinar mobilidade ativa com transporte público", além dessa combinação, é necessário "promover uma intermodalidade mais eficiente nas grandes cidades como bicicletários, boas condições para se chegar a um lugar pedalando e poder carregar a bicicleta no transporte público quando vai para o trabalho".
"Outra política que precisa ser implementada, que dói muito aos gestores, é a restrição do uso de automóveis [...] e essa restrição seria para pessoas que usam o carro para andar três, quatro quilômetros, a pessoa que tem ponto de ônibus na porta, aquela que usa o carro para buscar um pão", explicou a especialista.
"Para promovermos a mobilidade ativa é preciso pensar no plano diretor, na restrição dos automóveis, acalmar o trânsito, redesenhar as vias [...] e é fundamental que essas políticas comecem a acontecer em cidades com 100, 200 mil habitantes, as quais ainda não estão pressionadas pelo uso de automóveis, porque assim é possível mais rapidamente implantar essas políticas."
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