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'Ausência de real vontade política internacional contribui para situação no Sudão', diz pesquisadora

O Sudão vive, desde sua independência, sucessivas tentativas de golpes de Estado. Ontem (25), forças militares realizaram susposto novo golpe. A Sputnik Brasil ouviu analista para saber o que esperar de mais um choque contra a democracia que ainda engatinha no país.
Sputnik
Na madrugada de ontem (25), forças militares não identificadas invadiram a casa do primeiro-ministro do Sudão, Abdalla Hamdok. Além de Hamdok, quatro ministros e um representante civil do Conselho Soberano também foram presos, conforme noticiado.
Mais tarde, o chefe do conselho no poder do Sudão, Abdel Fattah al-Burhan, anunciou estado de emergência em todo o país e dissolveu o Conselho Soberano transitório e o governo sudanês.
Certas provisões da atual declaração constitucional, que tem estado em vigor a partir de 2019, também foram encerradas.
Em reação ao anúncio do general al-Burhan, o Ministério da Informação do país disse que ele efetivamente encenou um "golpe militar", segundo a Reuters. A mídia também relatou que, durante os protestos contra o golpe, sete pessoas foram mortas e 140 ficaram feridas.
A Sputnik Brasil entrevistou Daniela Nascimento, especialista em estudos do Sudão, professora de Relações Internacionais e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra para entender o que se passa no país africano famoso pela produção de petróleo.
Segundo Nascimento, a situação em que o Sudão se encontra precisa ser enquadrada em uma trajetória histórica bastante turbulenta e de profunda instabilidade política, com muita violência. Desde 1956, o país vive, ciclicamente, tentaivas de golpe de Estado.
Portanto, o suposto golpe militar de agora seria um "acúmulo" dessa instabilidade e também resultado da reorganização que o país viveu após a independência do Sudão do Sul.
"A independência do Sudão do Sul fragilizou bastante o governo sudanês, que na época era governado pelo ditador de longa data Omar al-Bashir. Ele saiu bastante enfraquecido desse processo que culminou no seu afastamento e na sua prisão em 2019, sendo substituído por um governo de transição que incluía forças militares", explicou a especialista.
A expectativa para o governo de transição era que ele se formasse com base em um processo democrático, com eleições livres planejadas para 2023, "mas nos últimos meses isso se tornou difícil diante das divergências dentro do próprio movimento da sociedade civil, e isso, de alguma forma, foi apropriado e aproveitado pelo lado militar, ao reforçar seu papel e seu espaço nesse processo".
"Existe uma particularidade sudanesa, diferente do que se pensa geralmente, que é o fato dos movimentos cívicos no país serem bastante ativos, sempre houve muitas manifestações, são reprimidas, mas são ativas."
Uma manifestante pró-democracia faz o sinal da vitória enquanto milhares vão às ruas para condenar uma tomada de poder por oficiais militares, em Cartum, Sudão, 25 de outubro de 2021
Entretanto, a pesquisadora salienta que, até hoje, há forças que ainda são a favor de al-Bashir, e que essas forças "se posicionam de uma forma que também prejudica a dinâmica interna do governo de transição".
"O Conselho Soberano e o governo e transição não têm sido capazes de gerir as tensões e as divergências, não só entre militares e civis, mas também dentro de cada um desses blocos as próprias distinções internas", elucidou.
"Todo esse contexto faz com que as eleições democráticas de 2023 fiquem cada vez mais distantes, uma vez que, provavelmente nas próximas semanas, será perdido muito dos poucos avanços que aconteceram ao longo desse tempo […] é possível observarmos um retrocesso."
Nascimento complementa explicando que ainda não se sabe muito bem o que está por detrás do suposto atual golpe, mas que definitivamente "os fantasmas dos governos militares no Sudão voltaram a pairar".
O presidente deposto do Sudão, Omar al-Bashir, à direita, está sentado durante seu julgamento em um tribunal em Cartum, Sudão, 24 de agosto de 2021

Apoio internacional

A pesquisadora conta que o Sudão tem uma particularidade em relação aos EUA, pois já esteve em "vários tabuleiros da política externa norte-americana, uma vez que já sofreu embargos, sanções, constava na lista de países terroristas, mas historicamente, muito do impulso para o processo de paz do conflito entre o norte e o sul do país foi dado pelos EUA".
"Criou-se uma expectativa, tanto por parte dos Estados Unidos, da União Europeia [UE] e da comunidade internacional que o acordo geral de paz entre o norte e o sul resolveria os problemas do Sudão, o que foi um pouco ingênuo, já que o pacto não abordava de forma aprofundada muitos dos problemas estruturais do país."
Nascimento diz que a condenação por parte do governo Biden sobre o golpe foi natural, uma vez "que os EUA investiram bastante no processo de paz na região".
"Terá de acontecer um compromisso e um envolvimento mais efetivo dos atores internacionais, principalmente de Washington, que tem essa tendência para alocar representantes especiais para o Sudão […] para tentar apaziguar essa situação tão instável."
"É fundamental que essas comunidades invistam politicamente na resolução duradora da instabilidade no território sudanês. […] Além de todas as questões, é estrategicamente importante que isso aconteça, afinal é um país com forte produção de petróleo e tem uma localização importante no continente africano", ponderou a pesquisadora.
"As últimas décadas têm sido marcadas por essa 'esquizofrenia', condenam-se situações que são, da perspectiva humana, inaceitáveis, crises humanitárias muito óbvias, mas daí dar o passo no sentido de resolver, de responder como deve ser, varia de acordo com a localização onde essas crises ocorrem."
O apoio norte-americano ao país africano é antigo. Na foto, o então secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, gesticula enquanto então ministro das Relações Exteriores do Sudão, Mustafa Osman Ismail, observa em uma coletiva de imprensa em Cartum (foto de arquivo)
Além dos EUA, Nascimento chama atenção para outro ator estrangeiro importante na história do país africano que é a China, pela "proximidade que existia entre os governos de forma econômica e política".
"Apesar das várias tentativas, nomeadamente por parte dos EUA, de forçar uma intervenção militar para pôr fim ao genocídio que estava em curso, alimentado pela chefia de al-Bashir, a China foi quem evitou sempre toda e qualquer possibilidade de intervenção internacional para pôr fim ao genocídio, exatamente por seus interesses econômicos no território sudanês", relatou a especialista.
Sobre o petróleo, uma das principais atividades econômicas do país, após a independência, "no recorte da fronteira entre o norte e o sul, o Sudão do Sul continuou, do ponto de vista geográfico, a ser o local onde está concentrada a maior parte das reservas petrolíferas".
No entanto, Nascimento ressalta que existem protocolos não muito bem-definidos referentes ao controle do óleo em regiões particulares na fronteira entre os dois países, já que por decisão de al-Bashir, "independentemente de onde estivessem as reservas, elas seriam controladas pelo Sudão".
Além disso, a pesquisadora relembra que Cartum, diferentemente de Juba, tem saída para o mar, e esse teria sido um problema, pois o "Sudão do Sul tinha o petróleo, mas não tinha por onde o escoar", ao mesmo tempo, nessa época, a China manteve a relação com Sudão, mas começou a apoiar o sul por interesse em relação ao petróleo.
Um caminhão espera do lado de fora de um posto de gasolina da Nile Petroleum Corporation em Juba, no Sudão do Sul, o país tem a terceira maior reserva de petróleo da África (foto de arquivo)
Na visão da pesquisadora, a situação no Sudão pode ser comparada à Primavera Árabe, movimento que abarcou países do Oriente Médio e do Norte da África em meados de 2010, "principalmente as mobilizações que ocorreram em Cartum em 2019, por parte do entusiasmo da sociedade civil, de tentar uma transição política real".
"Se pensarmos em escala global, nas últimas décadas, são sempre os mesmos países que estão no topo do Índice de Estados Falidos. São os países africanos, o Afeganistão, alguns países da América Latina – como Colômbia e El Salvador –, e estamos falando, em todos esses casos de países que, em algum momento da sua história pós-colonial, foram intervencionados pela comunidade internacional", destacou a pesquisadora.
Nascimento afirma que "é importante fazer uma reflexão do porquê que essas nações se mantêm nesse status e qual papel da comunidade internacional na responsabilidade do subdesenvolvimento desses países".
"Contrariamente às visões muito otimistas que dominaram [a opinião internacional] desde a assinatura do acordo geral em 2009, eu sempre fui muito pessimista, porque foi um acordo quase forçado e que não tratava profundamente as causas estruturais de um conflito que durou quatro décadas. De repente, se esperou que tudo mudaria."
Pessoas esperam em frente a uma padaria, em Cartum, em meio à escassez de alimentos, Sudão, 6 de outubro de 2021
A pesquisadora contextualiza que "o Sudão do Sul se tornou independente em 2011 e em 2013 estava imerso em uma guerra brutal que se mantém até hoje, ou seja, o mais jovem país do mundo se tornou rapidamente mais um exemplo de violência significativa".
"Quando falamos de questão de paz e segurança no mais alto nível, tem a ver com as Nações Unidas, com o Conselho de Segurança da ONU e com a ausência de uma vontade política de resolver essas questões de forma mais estrutural. Nada do que acontece hoje no Sudão é novidade, nada é imprevisível, infelizmente."
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