A "aula magna", que seria presencial para alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), foi transformada em formato virtual de última hora, após a repercussão negativa e a convocação de protestos pelo Coletivo Andorinha - Frente Democrática Brasileira em Lisboa.
Na madrugada desta terça-feira (26), a instituição comunicou, em seu site, a mudança, mas, apenas durante a manhã, poucas horas antes da palestra, informou aos jornalistas que eles não poderiam cobrir o evento.
"A conferência passou a ser fechada pelo que só se poderá assistir on-line", escreveu um assessor de imprensa por e-mail, direcionando para um link que conteria mais informações, mas foi retirado do ar.
No mesmo dia em que a Comissão Parlamentar de Inquérito da COVID-19 votava seu relatório final, que inclui o pedido de indiciamento de Queiroga por prevaricação e epidemia culposa com resultado morte, o ministro chegou mais cedo à Universidade de Lisboa, entrou e saiu pelos fundos do Hospital Santa Maria, para driblar manifestantes e jornalistas.
Embaixada nega que proibição foi orientação diplomática
Segundo a imprensa portuguesa, o veto à cobertura do evento teria partido de uma orientação da Embaixada do Brasil em Lisboa. Questionada pela Sputnik Brasil, a representação diplomática negou a informação.
"A Embaixada não participou do processo decisório sobre o evento, tendo apenas sido informada pela assessoria do ministro de que o formato do evento havia sido alterado de presencial para on-line pela universidade", lê-se em um trecho da nota.
A Embaixada sugeriu contato com o Ministério da Saúde. Sputnik Brasil questionou a pasta por que a imprensa foi proibida de cobrir o evento hoje para o qual houve credenciamento prévio; por que Queiroga viajou para Lisboa para um evento on-line; quem financiou a viagem; quantas e quais pessoas compõem a comitiva. Até o fechamento desta reportagem, não houve respostas.
Doutora em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra e integrante do Coletivo Andorinha, a luso-brasileira Débora Dias conta que, quando surgiu a notícia de que Queiroga fora convidado para dar uma palestra na FMUL, o coletivo até duvidou da veracidade da informação.
"As pessoas do Coletivo pensavam que era fake news, uma piada, não parecia verdade. Num contexto em que a CPI votava seu relatório final, depois de muito debate em torno da lista de acusados para indiciamento, ele estar sendo convidado para dar lição sobre enfrentamento da COVID-19 num curso de medicina para os estudantes, patrocinado pelo diretor da faculdade, parecia muito insólita a informação", explica Débora.
Cartazes e faixas em protesto contra Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, durante palestra na Universidade de Lisboa
© Foto / Camile Salles
Depois de a viagem ser autorizada pelo presidente Jair Bolsonaro e publicada no Diário Oficial da União (DOU), o Coletivo Andorinha enviou uma carta pedindo que a FMUL esclarecesse o convite, uma vez que no DOU constava o nome da Universidade Nova de Lisboa. Não houve respostas.
Em comunicado publicado no site FMUL, posteriormente retirado do ar, Fausto Pinto, diretor da instituição, que é amigo de Queiroga, justificava o convite ao ministro da Saúde, ignorando o seu cargo e o relatório da CPI, que pedia o seu indiciamento.
"Vem visitar a nossa faculdade, pelo que foi convidado, como acadêmico, a proferir uma conferência, tendo escolhido o tema que entendeu. A universidade será sempre um espaço aberto, sem tabus ou preconceitos", lia-se no comunicado.
Sputnik Brasil questionou a FMUL por que manteve o convite ao ministro mesmo após ele figurar como indiciado no relatório final da CPI da COVID-19 e por que a imprensa foi barrada no evento apesar do credenciamento prévio, mas não houve respostas até o fechamento da reportagem.
Natural de Fortaleza e morando em Lisboa há 10 anos, Débora diz que o que motivou a convocatória para a manifestação foi o questionamento sobre o que Queiroga teria a ensinar a Portugal sobre o enfrentamento da COVID-19. Ela lembra que o país é hoje um dos com maiores coberturas vacinais completas no mundo (86,8% da população), além de ter adotado medidas como o lockdown e o certificado sanitário, criticadas por Bolsonaro.
"Ficamos indignados porque ele esteve e está a seguir todas as más práticas, na contramão de tudo que foi preconizado para conter a pandemia. Até hoje ele se diz contra o uso [obrigatório] de máscaras e atrapalha a vacinação, como no episódio dos adolescentes no Brasil", exemplifica.
Ministro minimiza sucesso de Portugal na vacinação
Em sua palestra, Queiroga acusou a imprensa de "disseminar narrativas", discurso que tem sido usado pelo governo para atacar meios de comunicação e oposicionistas. Ironicamente, o ministro minimizou o sucesso de Portugal na vacinação contra COVID-19.
"O esforço para vacinar 10 milhões não é o mesmo esforço para vacinar 180 milhões", comparou Queiroga.
Se o clima na porta da FMUL era pacífico, apesar da emoção e da indignação das dezenas de pessoas que participaram do ato, no chat do canal do YouTube da faculdade, onde foi transmitida a palestra, Queiroga foi duramente hostilizado. Muitos internautas pediram que os espectadores denunciassem o vídeo por informações duvidosas.
Apesar de ter sido transmitido ao vivo, o vídeo da palestra no canal da FMUL foi indexado como não listado, o que dificulta a sua busca. Além disso, não constam mais os comentários feitos durante a transmissão. O último vídeo público data de 18 de outubro.
Nesta segunda-feira (25), o YouTube anunciou o bloqueio da conta de Jair Bolsonaro por uma semana por disseminar fake news, após retirar do ar um vídeo em que ele insinuou que pessoas vacinadas contra COVID-19 contrairiam AIDS com maior facilidade, informação sem validade científica.
O presidente Jair Bolsonaro também foi alvo do protesto organizado pelo Coletivo Andorinha, em Lisboa
© Foto / Camile Salles
Na opinião da historiadora cearense, a palestra de Queiroga foi um desrespeito com as sociedades brasileira e portuguesa.
"Um desrespeito imenso contra a sociedade brasileira, os mortos e as vítimas de COVID-19, as pessoas que estão com sequelas, que perderam familiares e amigos. Mas, também, um escracho contra a sociedade portuguesa trazer uma pessoa que fez tudo o que a sua sociedade não defende", justifica.
O protesto também foi apoiado e divulgado pela Casa do Brasil de Lisboa e pela Coletiva Maria Felipa, um grupo feminista anticolonialista. A designer Isabella Guillen, integrante da segunda entidade, explica o que fez com que apoiassem a manifestação.
"Por todos os crimes que vêm sendo clarificados pela CPI da Covid, por todas as mentiras deslavadas e pelo claro apoio ao governo Bolsonaro que obviamente somos contra. Achamos [a palestra] um descaso muito grande com todas as mais de 605 mil vítimas [fatais da doença] no Brasil", defende Isabella.
Horas depois do protesto, em entrevista exclusiva aos jornalistas portugueses Ana Tomás Ribeiro e Paulo Agostinho, da Agência Lusa, Queiroga disse que Bolsonaro foi mal interpretado ao distorcer informações e estabelecer uma relação inexistente entre os vírus SARS-CoV-2 e HIV, atribuindo a "narrativas como o presidente é contra a vacina".
'Estarei sempre disponível para todas as instâncias de investigação'
O ministro da Saúde também disse não estar preocupado com o relatório final da CPI e se mostrou disponível para responder as acusações na Justiça.
"Quem vai nos julgar, em primeiro lugar, é a História e, em segundo, os poderes do Brasil. O Brasil é um país democrático e eu não tenho receio nenhum e estarei sempre disponível para todas as instâncias de investigação. Isso é uma questão de natureza política", afirmou à Lusa.
A Preven Senior também foi lembrada à frente de cruzes, no ato contra Queiroga
© Foto / Camile Salles
Queiroga justificou sua visita a Lisboa pelo convite que recebeu da universidade, mas disse que a viagem não se restringe à palestra. Segundo ele, há vários objetivos, entre os quais, a doação de 400 mil unidades da vacina AstraZeneca ao Brasil pelo governo português e a discussão de possibilidades de cooperação futuras entre os dois países no transplante de órgãos.
Ele criticou os protestos em frente à Universidade de Lisboa, apesar de não ter encontrado com os manifestantes.
"As pessoas podem manifestar-se livremente, [mas] criticar a minha vinda a Portugal é absolutamente sem fundamento. Eu já vim aqui a Portugal várias vezes e, hoje, venho como representante do governo federal, como ministro de estado da Saúde de um país que tem uma relação que transcende essas manifestações", acrescentou.