É útil para governo da Espanha que existam grupos como ETA para justificar repressão, diz jornalista

O ETA foi um dos principais grupos independentistas da Europa nas décadas de 1960 e 1970, e marcou, para sempre, a história espanhola. Dez anos após a declaração de cessar-fogo, a Sputnik Brasil entrevistou jornalista para saber se ainda há chances para volta do grupo.
Sputnik
Há dez anos o ETA, sigla em basco que significa Pátria Basca e Liberdade, anunciou o fim da luta armada.
O grupo, que lutava pela independência do País Basco e contra a ditadura de Francisco Franco, durou 59 anos, e marcou a história espanhola, sendo impossível falar sobre a mesma sem se referir à organização que até hoje influencia a política do país.
Nesse "aniversário" do fim do grupo, a questão envolvendo prisioneiros ligados ao ETA que estão cumprindo penas em penitenciárias de diversas províncias espanholas, longe do País Basco, veio à tona, causando grande controvérsia na Espanha.
De acordo com o UOL, partidos de oposição ao presidente do governo, Pedro Sánchez, o acusam de fazer acordos com partidos pró-independência bascos relacionados a esses detentos em troca de apoio à aprovação do orçamento nacional para 2022.
A Sputnik Brasil entrevistou o jornalista Raphael Tsavkko Garcia, doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Deusto, na Espanha, para compreender o legado do grupo no país e como o governo espanhol lida com movimentos de oposição nos dias atuais.
Manifestantes erguem os punhos enquanto cantam a canção "Eusko Gudariak" ou Canção do Soldado Basco, enquanto marcham na cidade espanhola de Bilbao, norte da Espanha (foto de arquivo)
Tsavkko esclarece que em 20 outubro de 2011, há dez anos, o grupo declarou o fim da luta armada, após um longo processo de negociação que contou com a participação de vários atores, como ex-secretário da ONU Kofi Annan e presidente do Sinn Féin irlandês Gerry Adams, entre outros. No entanto, foi em 2018, sete anos depois, que o fim efetivo da organização aconteceu.
O jornalista conta que o ETA se formou na década de 1950, por jovens dissidentes do Partido Nacionalista Basco os quais, na época, acreditavam que o partido não estava fazendo muito pela independência do País Basco e "pelo fim da ditadura sanguinária de Francisco Franco".
"O País Basco foi uma das regiões mais afetadas em termos de violência e repressão durante a ditadura, a língua basca foi massacrada [...] a cultura foi perseguida e há muitos casos de assassinato e tortura relatados durante esse período", explicou o especialista.
Foi então, nesse contexto, que a ETA nasceu, cometendo os primeiros atentados na década de 1960, e tendo como primeira vítima um delegado de polícia que havia trabalhado como torturador para Gestapo.
Segundo Tsavkko, "as pessoas comemoraram a morte do delegado, e várias ações do grupo, durante as décadas de 1960 e 1970, eram largamente comemoradas pela população".
Entretanto, no fim dos anos 1970, quando começa o término da ditadura, o jornalista destaca que essa visão sobre o ETA começou a mudar, e iniciou um período conhecido como "Guerra Suja".
"O governo espanhol passou a financiar grupos fascistas de extrema direita para matar e torturar políticos bascos e assim, se iniciou uma escalada de violência. Durante esse período, é o momento que há mais mortes promovidas pelo ETA e por esses grupos, daí, a opinião pública mudou sua percepção e passou a querer processos de paz e democracia."
O especialista afirma que, aos olhos da população, o grupo teve três fases: "Primeiro o ETA não era considerado terrorista durante a ditadura, depois, a partir dos anos 1980, começa a mudar a percepção diante da violência e, depois passa a ser considerado terrorista e até nocivo para os interesses bascos".
Perguntado se o grupo pode voltar à ativa, Tsavkko diz que não, e que atualmente o que há "são alguns dissidentes que não concordam com o fim da luta armada [...], mas não existe temor pela volta porque não tem amplo apoio popular".
Apoiadores e familiares de prisioneiros bascos do ETA manifestam-se em Bilbao, no norte da Espanha (foto de arquivo)
No entanto, se pelo lado da população o grupo não tem tanto apoio, surpreendentemente há quem gostaria que a organização se reativasse: o governo espanhol.
"As autoridades espanholas torcem para que o ETA exista porque é do interesse da Espanha reprimir todo movimento nacionalista com a desculpa de que 'tudo é ETA' [...], logo, denomina o grupo como terrorista [...]."
O analista cita o fato do político espanhol, Alfredo Pérez Rubalcaba, ter, em 2011, "feito de tudo para tentar impedir o processo de negociação. Com perseguições, monitorações [...] a Espanha sempre lutou contra os processos de paz".
"Quando se trata de unidade da Espanha, de lutar contra um suposto terrorismo, os partidos de esquerda e direita são a mesma coisa [...] o Partido Socialista Operário Espanhol [PSOE] financiou grupos de extrema direita fascistas para assassinar bascos e o que a gente vê é que hoje isso continua, mas ao invés do País Basco, a questão é a Catalunha."
Para o jornalista, o governo espanhol "tenta criar um novo inimigo, hoje representado pelos Comitês de Defesa da República da Catalunha [CDR, na sigla em espanhol], os reconhecendo como terroristas para reprimir".
Ex-primeiro-ministro espanhol, Jose Luis Rodriguez Zapatero, discursa em cerimônia para marcar o 10º aniversário do cessar-fogo permanente pelos separatistas bascos armados ETA, ao lado do ex-primeiro-ministro basco Patxi Lopez e da secretária-geral do Partido Socialista Basco, Idoia Mendia, Espanha, 19 de outubro de 2021

Terrorismo na Europa

Sobre grupos terroristas na Europa, Tsavkko elucida que a região presenciou, durante as décadas de 1960 e 1970, violações de vários grupos armados de esquerda lutando por diversos motivos, como a libertação de uma região especifica ou por uma revolução.
"No caso do ETA, a organização se colocava como um grupo marxista, ainda que a lógica não seja de uma revolução comunista e sim de independência do País Basco. Mas utiliza, por exemplo, táticas de guerrilha aplicadas na América Latina, sempre houve um contato entre esses grupos [...] e na Espanha, o grupo marcou a história, não é possível falarmos sobre a história espanhola a partir de 1950 sem citar o ETA."
Segundo o jornalista, o debate sobre terrorismo na Europa hoje acontece por conta do terrorismo islâmico e do terrorismo da extrema direita, que "atinge em grande parte a Alemanha, a Bélgica [...], então existe sempre essa tentativa de compreender o que é o terrorismo de esquerda, de direita e islâmico, apesar de serem totalmente diferentes em termos de ideologia e objetivos, são formas de terrorismo".
Policiais revistam a cena de um carro-bomba que explodiu do lado de fora da sede do Socialista Basco na pequena cidade basca de La Pena, perto de Bilbao, no norte da Espanha (foto de arquivo)
Entretanto, os grupos "terroristas" de esquerda estariam com suas atividades bem mais enfraquecidas, quase nulas. "As ações de grupos parecidos com a ETA já quase não existem, grupos que buscam libertação nacional que tem um caráter de esquerda não são necessariamente mais um problema [...], a questão agora se centra nos grupos de extrema direita", pontuou Tsavkko.
"Alguns grupos de extrema direita estão ligados a militares, por exemplo a Bélgica, onde ocorreu a perseguição de um militar de extrema direita que roubou armas do quartel [...] o governo belga reconheceu que há infiltração de extrema direita no Exército belga, na Alemanha existem grupos fascistas e neonazistas ligados ao Exército, então é preciso ficar atento a isso e realizar ações contra essas tentativas."
Sobre o terrorismo islâmico, o jornalista pondera que é necessário haver "processos mais aprimorados de vigilância" e que a solução "não é só jogar as pessoas na cadeia, uma vez que há inúmeros casos de radicalização que aconteceram nas prisões, com indivíduos que não eram muçulmanos anteriormente ou eram muçulmanos 'brandos' e se tornaram radicais".
"Eu sou mais favorável ao modelo francês de defesa do laicismo, de tentar integrar ao máximo a população que venha de fora ao modo de vida local. [...] Há casos de sucesso e de insucesso, mas é importante sempre pregar pela tolerância e pelo respeito ao outro", afirmou o jornalista.
Pessoas passam por uma parede pintada com grafite com a logo do grupo separatista basco ETA em Hernani, norte da Espanha (foto de arquivo)
Apesar do ETA ter chegado ao fim e ter se desarmado, o jornalista salienta que ainda existe "um processo muito grande contra a esquerda basca, tanto por ex-membros do ETA – que participaram do processo, mas não receberam nenhum tipo de libertação, alguns ainda precisam ficar escondidos e fugidos – quanto pelo recurso pedido pela esquerda basca de anistia a presos políticos, há centenas de pessoas presas".
"Existe um processo pesado e radical de manter essas pessoas na cadeia. Por exemplo, manifestantes que queimaram uma lata de lixo ou quebraram alguma coisa durante um protesto são considerados terroristas", explicou Tsavkko.
Adicionalmente, o especialista destaca a Lei da Mordaça, em vigência no território espanhol desde 2015, que "facilita a prisão de pessoas por tweets e comentários sobre história nas redes sociais, músicos processados por cantar músicas que não são de interesse do governo, casos de pessoas que foram condenadas por queimar fotos do rei da Espanha".
"A Espanha ainda tem um problema muito grande com a democracia, é um país que não aprendeu o que é liberdade de expressão. [...] A ideia de que tudo que é contra o governo espanhol quer é terrorismo ainda é muito enraizada."
O jornalista relata que, em 2017, no referendo pela independência da Catalunha, "houve o envio de centenas de policiais de outras partes da Espanha para agredirem senhoras que estavam votando", ou seja, "a ideologia de repressão em cima de qualquer tipo oposição aos interesses majoritários da elite política espanhola ainda é muito grande".
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