Angelo Segrillo é professor de História na USP, com formação pelo Instituto Pushkin de Moscou, e autor de vários livros sobre a Rússia. Ele relembra, em entrevista à Sputnik Brasil, que o evento, agora comemorado em 7 de novembro, aconteceu, pelo antigo calendário da Rússia, em 25 de outubro de 1917, por isso se chama Revolução de Outubro.
Nesse dia, o poder na Rússia foi tomado pelos bolcheviques, o que marcou uma nova fase da Revolução Russa, que tinha se iniciado em fevereiro do mesmo ano com a chamada Revolução de Fevereiro.
Em fevereiro caiu o tsarismo e entrou em vigor uma democracia multipartidária, com partidos de todo o espectro – de direita, de esquerda e do centro. Em outubro houve a chamada etapa socialista, quando os bolcheviques tentaram terminar com o capitalismo e inauguraram o regime socialista, detalha Angelo Segrillo.
"Foi um marco muito importante. Para bem ou para mal, foi um pulo para além das revoluções anteriores, tentativa de se estabelecer uma sociedade socialista", resumiu o historiador a essência da Revolução de Outubro.
Nesse contexto, o especialista aponta a uma grande radicalização da Revolução Russa, provocando imediatamente reações contraditórias em todo o mundo. A notícia se espalhou rapidamente, mas enquanto a Revolução de Fevereiro ainda era aceita em muitos países como uma tentativa normal para sair do regime absolutista para uma democracia republicana, a Revolução de Outubro era uma coisa mais radicalizada.
"Os bolcheviques tomaram medidas radicais de nacionalização, estatizaram as empresas estrangeiras sem indenização, e isso causou uma reação muito grande", afirmou.
Lenin e Stalin: continuidade ou divergência ideológica?
Historiadores apontam a morte de Lenin e a chegada ao poder de Stalin como um ponto de inflexão relevante na história da Revolução Russa. Verdadeiramente, revela o professor, as diferenças ideológicas entre Lenin e Stalin são uma grande discussão historiográfica.
Apoiadores do Partido Comunista da Rússia com retratos de Lenin e Stalin perto do Mausoléu no Kremlin, Moscou
© Sputnik / Ramil Sitdikov
Alguns autores, mais para a direita, dizem que Stalin é uma mera continuação de Lenin. "Em Lenin já estava em germe Stalin", resume essa posição Angelo Segrillo, já que Lenin elogiava os jacobinos da Revolução Francesa e muitas vezes dizia que os bolcheviques eram os jacobinos da nova revolução.
Mas o historiador está entre os autores que enfatizam a diferença entre os dois políticos, especialmente nos anos 1920. "Ambos foram muito radicais, houve uma grande repressão, mas na época de Lenin ainda havia um certo pluralismo dentro do partido dos bolcheviques", considera ele.
Depois da Guerra Civil, em 1921 começou a chamada Nova Política Econômica (NEP, na sigla em russo), que foi um recuo para alguns mecanismos de economia de mercado para sobrevivência do novo sistema. Nessa época da NEP, relembra ele, apesar de haver uma repressão contra outros partidos opositores, dentro do partido bolchevique conviviam e debatiam entre si diversas correntes, inclusive os grupos de Trotsky ou de Stalin.
Com Stalin houve um fechamento total, inclusive dentro do partido, e houve uma linha única de cima do partido. Essa é uma diferença fundamental para Angelo.
Ainda assim, ele reconhece que a época inicial com Lenin foi uma das mais difíceis, o período mais radical, em que os bolcheviques tiveram que tomar medidas duríssimas, como requisição de grãos dos campineiros. Obviamente, o socialismo não chegou logo depois de 25 de outubro.
"O que aconteceu foi uma guerra civil de três anos, entre 1918 e 1921, que rachou a Rússia em brancos e vermelhos, que eram contra e a favor da Revolução, uma guerra violentíssima em que as cidades eram destruídas, algumas pessoas apelaram até ao canibalismo para evitar a fome", sublinhou ele.
Época de experimentos
Os revolucionários soviéticos pregavam a criação de um novo mundo, com valores distintos aos que acreditavam serem da burguesia. Na década de 1920 surgiu na União Soviética o movimento Abaixo a Vergonha, no qual mulheres e homens começaram a andar sem roupa ou seminus, principalmente em Moscou. O movimento também pregava uma revolução sexual marcada por relações sexuais fora do casamento tradicional. Porém, com o passar do tempo o movimento foi criticado, e a União Soviética não extirpou o entendimento da família tradicional.
Sessão solene no Palácio do Kremlin em homenagem do 66º aniversário da Revolução de Outubro
© Sputnik / Vyacheslav Runov
O historiador acentua que foi uma revolução pioneira, introduzindo várias coisas que eram novas. Já que não tinha uma receita a seguir, houve muitos experimentos em diversos campos, não só econômico e político, mas também no campo cultural, inclusive nessa questão de sexualidade.
Na questão da família, também houve muitos experimentos: foram formadas muitas comunas, tentando simplesmente fugir da família nuclear e instaurar outros tipos de relações familiares.
Mas com a chegada de Stalin ao poder aconteceu uma espécie de consolidação do sistema, bem conservadora, na visão do especialista, que podemos observar como um certo retrocesso. Por exemplo, nos anos 1920, o divórcio tinha sido tornado muito fácil de ser realizado – com um pedido através dos correios. Mas isso criou certos problemas com a guarda dos filhos. Stalin resolveu isso mais pelo lado do conservadorismo.
"Eu vejo Stalin mais como Napoleão, na verdade, que mais ou menos assentou o sistema nas suas bases econômicas e políticas, mas de uma maneira conservadora", continua o especialista os paralelos com a história da França.
Além do mais, o professor concorda que a esquerda na Rússia é uma sociedade conservadora em geral, ainda mais conservadora do que a sociedade brasileira, especialmente na parte dos costumes.
Experimento com planejamento central
A Revolução Russa sugeriu, sobretudo, um novo modelo de gestão econômica, baseado no planejamento central. Sendo uma ideia muito forte entre os comunistas e socialistas "herdeiros de Marx", conforme as palavras do historiador, o planejamento central foi pregado por eles para evitar a chamada anarquia do mercado, em que cada comprador e vendedor debatem entre si.
"A experiência soviética, para bem ou para mal, provou que uma economia podia funcionar nessas bases na prática", comenta ele.
Mas, afirma, essa ideia é uma grande ironia na história: os planos quinquenais, que iniciaram um planejamento central na União Soviética, foram introduzidos por Stalin a partir de 1928. Simultaneamente, no mundo veio a crise de 1929, em que o capitalismo estava seguindo as previsões de Marx que a anarquia do mercado capitalista levaria a uma grande crise geral.
E a União Soviética, crescendo a um nível muito rápido nos anos 1930, parecia ser a onda do futuro. Depois, isso mudou: o capitalismo estabilizou através da Segunda Guerra Mundial, mas a ideia do planejamento central ou da intervenção do Estado influenciou o mundo, inclusive o mundo capitalista. Os países começaram a adotar cada vez mais os elementos do planejamento estatal neles, não só Estados como a Alemanha e a Itália fascistas, mas mesmo os países do capitalismo democrático.
Fim das ideias socialistas?
Com a queda da União Soviética não podemos ainda dizer que o socialismo "morreu", acredita o historiador. Para ele, o socialismo vai existir sempre, pelo menos como ideal, como uma alternativa, mas ele também tem desenvolvimentos práticos.
Presidente chinês Xi Jinping com outros funcionários altos prestam juramentos ante o Partido Comunista da China em seu centenário, Pequim, 28 de junho de 2021
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A ironia do nosso tempo, na opinião dele nesse sentido, é que "o cerne da economia mundial", o país com economia mais dinâmica no mundo, é um país socialista, a China, que denomina seu sistema como socialismo de mercado.
"Se a China se tornar realmente o grande centro hegemônico mundial, como parece vai ser, ela vai ter uma influência na economia do mundo assim como os Estados Unidos influenciaram a economia mundial no século XX. E como será essa influência da China? [...] O jogo ainda está aberto."
Quanto às revoluções, o professor admite que, como historiador, elas são parte da História. "A revolução não é divertida", mas vai continuar sendo essa parte inevitável do processo histórico.
"Existem certos momentos muito ligados exatamente a quem detém os meios de produção, as fábricas, as terras. E nesse momento o nó górdio da História tradicionalmente é portado através das revoluções."