Ultimamente, o mundo tem observado a ascensão global do entretenimento coreano. Vemos um crescente número de influencers nas redes sociais como TikTok e ídolos da cultura sul-coreana como os K-popers. Recentemente, a Netflix lançou um sangrento drama sul-coreano, o "Round 6", que ganhou grande popularidade globalmente.
Porém, apesar desse grande sucesso internacional, nos últimos anos várias celebridades coreanas tiraram as próprias vidas por motivos de depressão, vergonha, ciberbullying, enquanto na Coreia do Sul o suicídio permanece a causa número um da morte de jovens desde o ano de 2007.
No contexto desse problema grave de saúde mental da juventude sul-coreana, a Sputnik Brasil teve uma conversa com José Niemeyer, coordenador de Relações Internacionais no Ibmec-RJ, dr. em Ciências Políticas pela USP, que tenta explicar esse paradoxo que é um jovem sul-coreano hoje gozar de todas as liberdades e, ao mesmo tempo, ficar deprimido com esse excesso de liberdade.
Coletivo vs. indivíduo
Antes de mais nada, ressalta o professor, é importante entender a estrutura social na qual vive o jovem sul-coreano. Ao longo da História, têm existido dois modelos antagônicos de organização social: sociedades mais voltadas ao coletivo e projetos mais voltados para o indivíduo.
Os projetos mais voltados ao coletivo são os de uma certa imposição de ordem pelo Estado, são geralmente aqueles regimes mais fechados: foi o nazismo na Alemanha, o estalinismo na União Soviética, o governo de Mao Tse-Tung na China. São sociedades onde o coletivo é preponderante em relação ao indivíduo, explica.
Por outro lado, há modelos que tendem a uma maior liberdade, talvez uma liberdade excessiva, do indivíduo. São as democracias liberais de modelo norte-americano que existem também em vários países europeus.
"Agora, a demarcação entre as duas Coreias é muito clara: a Coreia do Norte, com prevalência do coletivo, e a Coreia do Sul com prevalência da vida focada no indivíduo", aponta o especialista.
Porém, a sociedade do individualismo "é uma via de mão dupla", considera o analista: um jovem quer muita liberdade, o que explica a aproximação dele às redes sociais, porque é importante para a identidade dele aparecer como indivíduo, mas, ao mesmo tempo, ele fica sozinho com "a vaidade e o hedonismo dele, com excesso de consumo que ele pratica.
Chega uma hora da vida quando ele começa a perceber que isso não leva a nada. Se tudo é tão fácil, segue o professor, é só apertar o botão e a gente aparece nas redes sociais, é só um apertão do teclado e a gente consegue todo o alimento, todo o conforto que necessita em casa, chega uma hora em que você começa a perder o sentido da própria existência de como viver em um grupo onde o sistema é individualizado demais.
Meninas disfarçadas de personagens do drama sul-coreano "Round 6" durante o Halloween em Hong Kong, 20 de outubro de 2021
© AP Photo / Kin Cheung
Falando da Coreia do Sul, isso é muito forte porque o jovem sul-coreano tem uma origem bem complicada, de uma vida pouco confortável do ponto de vista de bens econômicos, de liberdade política e liberdade cultural. Até há pouco tempo, a Coreia do Sul era um país rural muito fechado, e só começa a se desenvolver depois da Segunda Guerra Mundial. Ali, o plano Colombo para restauração do Sudeste Asiático deu o início à chegada do mundo de hábitos e costumes ocidentais naquela região.
Controle das redes sociais no Sul e no Norte
Quanto ao assunto das redes sociais, sem as quais já não podemos imaginar nosso dia a dia, especialmente os jovens, a diferença entre as Coreias fica ainda mais óbvia: a Coreia do Sul é um país democrático, que certamente tem algum controle sobre as redes sociais, mas não tanto quanto o seu vizinho do Norte.
"A Coreia do Norte vive 24 horas por dia em função de um coletivo. [...] O jovem norte-coreano vive sempre para o coletivo, ligado à Pátria e aos interesses nacionais norte-coreanos", explica José Niemeyer. A Coreia do Sul, pelo contrário, até por essa influência ocidental pós-guerra e por manter o equilíbrio com aquilo que tende mais ao modelo chinês, tem uma sociedade mais aberta, mais ligada ao indivíduo.
"Então, na Coreia do Sul, o jovem é muito voltado para uma agenda dele, ele é o universo de si próprio."
Além disso, por ser um país que investiu muito em tecnologia, o jovem sul-coreano é muito voltado às questões ligadas ao mundo moderno da tecnologia, das liberdades de escolha e do consumo. Assim, a Coreia do Sul hoje é fornecedora de tecnologia para os EUA, inclusive para o setor militar norte-americano.
"Tudo isso cria um dia a dia em que parece que não existe amanhã, onde o jovem acha que pode tudo, porque ele aparece na mídia, ele é empresário de si próprio", aponta. "[Os sul-coreanos] receberam 'um porre', uma bebedeira do way of life ocidental norte-americano", com alguma influência japonesa e livre iniciativa chinesa, esclarece o especialista.
Falta de satisfação consigo próprio
A crescente popularidade da cultura sul-coreana no mundo pode estar relacionada ao ambiente econômico e social: o professor diz que costuma falar uma frase: "O capitalismo é o regime dos espelhos", quer dizer, que no capitalismo sempre tem que ter o espelho "para olhar se tudo é bonito e está tudo bem, isso faz parte da lógica consumista e narcisista".
Em comparação, na Coreia do Norte, como uma sociedade coletiva, não pode ter espelho, lá não pode ter nem fotografia porque você não pode ser percebido como um indivíduo. Após ter "escalado a montanha" dos últimos 50 anos, o jovem sul-coreano chegou a uma "planície maravilhosa" de consumo, de prazer e da mídia, nas palavras do analista.
Atores do drama sul-coreano "Round 6" no tapete vermelho em Los Angeles, 8 de novembro de 2021
© AP Photo / Jordan Strauss
Mas, como eles viveram períodos de muita escassez (como os brasileiros, aliás) e até invasões externas, e de repente uma nova geração tem acesso a tudo, isso custa a pensar na cabeça dos jovens. Aí vem uma falta de satisfação consigo próprio, até a doença psíquica e suicídio.
O jovem sul-coreano, voltado para si próprio, quase não sai do quarto e prefere a solidão, fica com ele próprio em casa na Internet, nas mídias e até tem o acesso a uma alimentação que não é a melhor, a drogas etc. Na sequência de tudo isso, muitos deles deprimem, e a taxa de suicídio é alta. Mas não é uma situação exclusiva da Coreia do Sul, isso também é verdadeiro para o jovem holandês, sueco, com um problema de autoestima, de insegurança estrutural, de desamor.
'Brasil é um país para jovens'
Recentemente, o jornal Foreign Policy publicou um artigo que relaciona esses altos índices de doenças e suicídios na Coreia do Sul com o seriado Round 6, cuja manchete diz que a Coreia do Sul não é um país para jovens.
Na opinião do professor, é uma frase muito forte. Mesmo assim, a situação é que o jovem sul-coreano é um jovem que tem essa especificidade de ter passado de muita escassez a viver um presente de muita riqueza, de muita oferta de prazer. E isso para ele é complicado. Isso, junto com as tecnologias e com as mídias, faz com que muitas vezes ele ache que, no final do dia, ele não conseguiu aquilo que ele queria, que é ser amado pela sua família, respeitado pelos colegas, pelos amigos, ter uma vida mais saudável.
"Não estou aqui a dizer que, para a gente valorizar a vida, a gente deve ter sofrimento, não é isso, mas a gente deve sempre primeiro perceber o outro, ter uma ideia de coletivo muito clara", manifesta ele.
Falta, talvez, uma educação de base mais humana que treine mais empatia, aquilo que nós vemos em algumas escolas brasileiras, ainda que se pratique mais a convivência no coletivo, disse. Nesse contexto, se destaca essa questão do meio ambiente porque "a convivência no meio ambiente faz nos achar menos super-homens".
Na opinião do analista, o jovem da Amazônia é um jovem muito voltado ao mundo natural, e isso dá uma força muito grande a esse jovem que valoriza fruto, natureza, esporte coletivo.
"Se a Coreia do Sul não é um país para jovens [...], eu garanto a você que o Brasil é um país para jovens."
Saúde mental vs. redes sociais: existe uma solução?
Em vista da discussão sobre a necessidade da regulação das redes sociais, o controle excessivo como na China não é uma solução para o problema, na opinião do professor. Nós não podemos ficar nem no excesso do coletivo, nem no excesso do individualismo. Temos que buscar um meio-termo.
Essa coisa da mídia social nós não vamos conseguir controlar. Porém, para o analista, os jovens são os grandes agentes desse processo. Ante uma formação desde o ensino fundamental em uma escola mais humana e empática, de repente, vamos ter uma geração de jovens que vão criar projetos de empreendedorismo nas mídias sociais, projetos de voluntariado, projetos de acesso à informação, de acesso à música de qualidade.
"Mas, se ele utilizar as tecnologias só para seu prazer, vamos ter problemas. E o resultado será mais infantilização do jovem, mais depressão, tristeza e até suicídios", resumiu.