Há apenas dois milhões de anos que o homem se tornou completamente bípede, separando hominídeos de macacos, mas o caminho até este ponto foi longo. Apesar de os registros fósseis nos contarem fragmentos desta história, as respostas não são definitivas e muito há que encontrar, pesquisar e compreender.
O novo estudo, publicado na eLife e realizado com análises dos restos de um australopiteco fêmea, que os pesquisadores apelidaram de Issa, encontrou outra peça deste quebra-cabeças.
"Issa caminhava de modo semelhante a um humano, mas podia escalar como um macaco", disse Lee Berger, paleoantropólogo da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, em artigo publicado pela Universidade de Nova Iorque.
A postura ereta que conhecemos hoje, para ser alcançada, só foi possível através de uma reorientação do sistema esquelético dos primatas, ou seja, uma mudança dos pés, articulações dos joelhos e da coluna vertebral.
Silhueta do Australopithecus sediba mostrando as vértebras recém-encontradas junto com outros restos de esqueletos da espécie. O detalhe ampliado (uma fotografia dos fósseis em articulação à esquerda; modelos de microtomografia computadorizada à direita) mostra os fósseis recém-descobertos, em cores à direita, entre elementos previamente conhecidos, em cinza
© Foto / NYU & Wits University
Nos homens, ao contrário dos macacos e outros símios, a parte inferior da coluna vertebral é curvada para dentro e chamada de lordose. Em parte, é graças a essa curvatura que nossos corpos conseguem suportar o peso da parte superior.
Em 2008, foram encontrados fósseis de uma fêmea adulta Australopithecus sediba, de 2 milhões de anos, em Malapa, África do Sul. As peças faltantes não deixam claro se ela apresentava uma coluna reta, ancestral, ou se havia uma curvatura moderna em sua coluna.
"As séries associadas de vértebras lombares são extraordinariamente raras no registro fóssil de hominídeos, com apenas três espinhas inferiores comparáveis sendo conhecidas de todo o registro africano inicial", explica o morfologista evolucionário Scott Williams da Universidade de Nova York.
A estrutura óssea dos dedos de Issa é que sugeriu para os pesquisadores que ela estava bem preparada para uma vida nas árvores, tal como orangotangos (que partilham traços com Issa), com articulações dos pés altamente flexíveis que facilitavam escaladas verticais.
Análises dentárias sugeriram que a alimentação de Issa foi majoritariamente baseada em frutas e folhas, como a dos chipanzés da savana, o que sugere novamente uma vida arbórea. O fato surpreendente está no ângulo em que seu fêmur se conectava ao joelho, possibilitando que Issa pudesse ficar de pé.
Silhueta mostrando as vértebras recém-encontradas junto com outros restos de esqueletos da espécie
© Foto / NYU & Wits University
Foi quando, em 2015, fósseis de duas vertebras da parte inferior da coluna foram encontradas. As peças, que se encaixaram perfeitamente no esquema esquelético de Issa, passaram por reconstruções a partir de varreduras de microtomografia computadorizada, que confirmaram que sua espécie realmente tinha a parte inferior da coluna curvada, a evidência definitiva de que ela era, pelo menos em parte, bípede.
A descoberta não foi isolada. Outras vértebras fossilizadas foram encontradas e revelam uma espécie intermediária entre os humanos mais modernos e os grandes macacos. A presença desta curvatura na base lombar também revela vértebras capazes de reter longos processos costais – espaço de fixação muscular para auxiliar em escaladas poderosas.
Os pesquisadores afirmaram que este desenho de coluna implica que Issa "era capaz de escalar usando seus membros superiores, tal como muitos macacos, mas também mostra que ela podia andar sobre duas pernas extremamente bem".
Análises anteriores nas mãos de Issa já demonstravam que ela pertencia a uma espécie intermediária entre macacos e homens.
Diante da descoberta, qual será a posição do Australopithecus sediba em nossa árvore genealógica? A espécie foi apenas um beco sem saída ou algum ancestral direto dos seres humanos? O debate ainda não está resolvido, mas os cientistas afirmam que a existência de Issa e sua espécie já ajudam bastante a compreender nossa própria fisiologia.