Com pretexto de combater terrorismo, França legitima presença na África por interesse, diz analista
19:11, 2 de dezembro 2021
Recentes manifestações em Burkina Faso e no Níger contra a presença francesa na região demonstram que a França não é mais tão bem-vinda no continente africano. A Sputnik Brasil entrevistou pesquisador para entender o porquê da progressiva rejeição africana.
SputnikNo final do mês de novembro, em Burkina Faso, foi possível testemunhar locais revoltados com a presença francesa no território. Construindo barricadas, manifestantes tentaram bloquear um comboio de soldados
que fazia parte da Operação Barkhane.
O comboio composto por 90 caminhões e mais de 100 soldados deixou a Costa do Marfim e tinha como destino final o Mali. No entanto, chegando a Ouagadougou, os soldados franceses foram bloqueados por centenas de manifestantes que exigiam a saída das tropas francesas do Sahel,
segundo o Le Journal de l'Afrique.
Os manifestantes são, em sua maioria, jovens burquinenses de todo o país, os quais mostram através das manifestações, que a França não é mais tão bem-vinda em terras africanas.
A Sputnik Brasil entrevistou Guilherme Ziebell, pesquisador do continente africano e professor de Relações Internacionais na Federal do Rio Grande e de Estudos Estratégicos Internacionais na pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para entender o que motiva a rejeição crescente dos africanos perante a França, nação que possuí longa e histórica relação com o continente.
Ziebell diz que a atual resistência africana em relação às operações é proveniente de um "descontentamento crescente" acerca da "longa influência francesa" no território.
"Essa presença ainda é uma manifestação de uma
política neocolonial francesa estruturada no processo de descolonização que tem sido mantida desde então."
O especialista ressalta que, dentro deste contexto ao longo dos anos, principalmente na década de 1990, políticos franceses verbalizaram a intensão de "acabar com a relação neocolonial", porém, desde então, a mesma política se manteve, "houve algumas pequenas reformas, mas essa é uma política estrutural".
Paris então teria dois objetivos na manutenção dessa dinâmica em países africanos: o primeiro é a projeção internacional para demonstração de poder e o segundo o acesso a recursos energéticos, "seja o acesso ao petróleo ou, sobretudo, ao urânio".
"A França tem uma matriz energética que conta com usinas nucleares e tem o aporte africano de urânio, sobretudo oriundo do Níger."
Entretanto, essa histórica e intensa relação estaria sendo abalada não só pelo descontentamento mencionado anteriormente, mas também pela progressiva interação africana com outros países que desenvolvem uma relação mais "horizontal" com o continente.
"A presença crescente de atores emergentes [...],
especialmente a China, tem desestabilizado as relações muito estáveis com as potências tradicionais, porque as potências emergentes se apresentam a partir de um padrão de relação muito mais horizontal e muito diferente do modelo ocidental, modelo esse baseado em ajuda e não em parceria."
Diante deste entrosamento, Ziebell afirma que a reação dos países ocidentais "se deu por um viés securitário que foi viabilizado após o 11 de setembro de 2001 [...], como se fosse um processo de 'securitização do terrorismo', pelo qual se trata o terrorismo como um elemento de segurança".
"A abordagem ocidental após o 11 de setembro a respeito do continente africano se dá pela lente de segurança, então, vemos uma série de iniciativas que são legitimadas pela ideia de combate ao terrorismo, mas que no final das contas tem como principal intenção a legitimação da presença física desses atores na região, principalmente da França, que busca reforçar e manter essa influência."
No entanto, o analista também pontua que existe um questionamento sobre até que ponto grupos indicados como terroristas na região do Sahel, tanto pelo lado francês quanto pelo africano, realmente são terroristas: "Muitos atores africanos também usam do rótulo do terrorismo para combater grupos adversários, sejam grupos políticos ou econômicos".
Combate ao terrorismo de formas distintas
Desde o ataque terrorista de 13 de novembro de 2015 o alerta francês em relação a atentados ficou fortemente acionado, entretanto, o país continua a gastar farto orçamento para combater o terrorismo na África.
Ziebell explica que a leitura ocidental do continente africano considera que o terrorismo também ameaça a França, mesmo com a distância entre as regiões, entretanto, a atuação francesa na
execução do combate ao terrorismo, em ambos os países, é distinta.
"A manifestação da população francesa em relação a descontentamentos é muito forte no Estado francês, se Paris agir como age na África, geraria uma instabilidade interna muito grande. No entanto, matar africanos não gera muita comoção, especialmente se colocarmos o rótulo de terrorista", afirma o analista.
Rejeição africana à influência francesa
No final de novembro, um comboio militar francês foi barrado por três dias por cidadãos de Burkina Faso. Finalmente quando conseguiu passar, o comboio teve que enfrentar um grupo de pessoas do Níger. O episódio deixou 16 pessoas feridas e duas mortas.
Indagado do porquê desse progressivo confronto entre franceses e africanos, Ziebell reforça o fato dos
países emergentes terem mostrado aos africanos que um tipo de relação mais igualitária é possível e que, mesmo com o passar dos anos, "o racismo estrutural não acabou", ou seja, "a missão civilizatória que foi usada para validar a colonização se mantém, maquiada, mas está ali".
"Portanto, as populações africanas em geral não percebem mais muitos benefícios para continuarem a se comunicar tanto com a França. Por exemplo, Paris gasta rios de dinheiro para combater o terrorismo na África, mas os africanos seguem sem vacina contra a COVID-19", contrasta o analista.
Caso o governo francês decida reverter essa rejeição, Ziebell diz que a abordagem precisa mudar, e a palavra "ajuda" não deve mais estar presente no vocabulário e nas transações entre o continente africano e o Estado Francês.
"Se cria uma ideia histórica de que a África precisa de ajuda, que o continente é menos, não consegue se sustentar por via própria e necessita de alguém com mais capacidade. Mas o que é preciso é parceria, uma relação mais horizontal como a que os países emergentes apresentam."
No entanto, Ziebell relembra que o vínculo África-França é estrutural, e para realmente acontecer uma mudança, é necessária uma ruptura, "algo revolucionário e não de reforma ou de pequenos ajustes, contudo, não me
parece que vá acontecer pelo lado francês".
"Essas manifestações recentes parecem ser muito mais um sintoma do que uma eventual causa de transformações. Como eu havia citado, a comunicação com países emergentes e a percepção de outros padrões de interação vão dando aos atores africanos também mais espaço de barganha."
25 de fevereiro 2021, 11:39
Adicionalmente, Ziebell contextualiza que há dez anos a França mantém uma operação militar regular na região, contudo, até agora, não conseguiu resolver de fato a problemática com grupos terroristas, e que os próprios africanos têm essa leitura, a de que "a solução não vai vir através das armas".
"O próprio continente africano, no final da década de 1990, adotou uma resolução na qual terrorismo é definido como um fenômeno associado a muitos fatores [...], e, portanto, para ser tratado ele precisa ser abordado em todas as dimensões. Porém, a abordagem ocidental, como a francesa, não pressupõe isso, ela vai pressupor o uso da violência, que não tem se mostrado eficaz", complementa.