Panorama internacional

Dificuldade de ser incumbente explicaria insucesso de líderes da América Latina 'mais que ideologia'

Tendo em conta as recentes viagens de Lula à Europa, que renderam exposição positiva ao petista visando as eleições de 2022, a Sputnik Brasil discutiu com um cientista político sobre quem está em vantagem agora na América Latina: a direita ou a esquerda?
Sputnik
Tivemos nesta semana a volta da esquerda ao poder em Honduras. No Chile, Gabriel Boric da Frente Ampla de Esquerda, lidera nas pesquisas do segundo turno (que será em 19 de dezembro). Será que existe a tendência a haver uma guinada à esquerda na América Latina ou a corrente da direita extremista ainda segue firme? Tendo em conta o contexto de Honduras, do Chile e de um possível retorno da esquerda ao poder no Brasil, será que o movimento da direita autoritária pode estar entrando em decadência na América Latina?
Fabio Lacerda, cientista político e professor de filosofia política e análise política e social do Ibmec-SP, falou com a Sputnik Brasil sobre o assunto e explicou o que, na opinião dele, é o mais difícil no âmbito político latino-americano.

Ondas de democratização e autocratização

Se olharmos para a história democrática da América Latina nas últimas décadas, vamos ver uma história marcada por rupturas, pequenas ou maiores. Entre os casos mais recentes é a vitória do peronismo nas últimas eleições presidenciais e a tão falada ascensão de uma direita autoritária e populista na América Latina.
Do ponto de vista de Fabio Lacerda, essa ascensão não deve ser temida no longo prazo e ele explica o porquê. A fim de entender as tendências que a região, e o mundo em geral, está vivendo hoje, ele apresenta um modelo existente na ciência política sobre o avanço da democracia: as chamadas "ondas de democratização".
Presidente da Argentina, Alberto Fernández, apela aos apoiadores em Buenos Aires, Argentina, 17 de novembro de 2021
Estudando o fenômeno da democracia, nós estamos pensando em dois aspectos: por um lado, tudo aquilo que aumenta a participação política e, por outro lado, tudo que limite a competição eleitoral e prejudica a democracia, aponta o especialista. A democracia em termos mundiais se expande por meio de ondas, começando com os países de economia mais avançada, como EUA, Reino Unido e tal, e frequentemente são acompanhadas por conflitos, já que ela implica a elite aceitar fazer concessões, expandindo o direito do voto para uma fatia maior da população.
Mas, o que nós observamos é que essas ondas de democratização são sempre seguidas por uma onda reversa, uma "onda de autocratização", ressalta o professor. E existe um certo consenso entre os pesquisadores e especialistas em democracia de que "nós vivemos hoje no mundo um momento de recessão democrática com uma terceira onda [...] de autocratização", que atinge países com perfis muito distintos como, por exemplo, Brasil, Polônia e Estados Unidos. Evidentemente, a América Latina também é atingida por esse processo e talvez até mais atingida do que outros países.
Levando em consideração o modelo de ondas, portanto, "o período que nós estamos vivendo, pelo menos ao meu ver, não deve nos fazer temer, houve outras [ondas]. Claro que elas podem gerar consequências desagradáveis ou até perigosas, mas isso não implica uma trajetória de autocratização de longo prazo", tranquiliza o analista.

'Ser um político incumbente na América Latina é muito difícil'

"Não sei se dá para afirmar que a gente vai ter uma onda de esquerda ou um fortalecimento de candidatos da esquerda no ano que vem" na América Latina, afirma o professor, mas ele reconhece que essa ascensão deve ser acompanhada de perto.
No caso do Chile, de acordo com uma pesquisa referida pelo cientista político, o candidato de centro-esquerda tem uma vantagem no segundo turno, mas parece cedo para cravar que sua vitória seja assegurada. Porém, é um cenário que gera ainda alguma preocupação nesse sentido.
Por outro lado, podemos lembrar também o recente caso do Peru, com a vitória do candidato de esquerda, Pedro Castillo. É um candidato que "não desperta muita tranquilidade em termos de sua adesão a certos componentes importantes de uma democracia liberal", pelas palavras do analista. Assim como o caso do Chile, o caso peruano foi marcado pela competição difusa e muito fragmentada. E o Chile tem ainda a agravante de ter vivido um período muito perturbado de manifestações sociais.
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Se olharmos a aprovação dos presidentes latino-americanos hoje, temos muitos presidentes com aprovação muito baixa, e essa aprovação não é limitada a um espectro político apenas, perpassa tudo o contínuo ideológico, enfatiza Fabio Lacerda.
Referindo-se a uma tese articulada pelos cientistas brasileiros Daniela Campello e Cezar Zucco, o professor sugere que a popularidade dos presidentes latino-americanos é muito sensível a choques econômicos externos, e isso pode explicar bastante a situação atual nessa região.
Pegando os maiores países latino-americanos, na impressão do especialista, os presidentes que gozam de maior popularidade são López Obrador, do México, Luis Lacalle Pou, do Uruguai e Nayib Bukele, de El Salvador. Por outro lado, nós temos muitos presidentes, tanto de esquerda quanto de direita, com índices de aprovação muito baixos, que são os casos, por exemplo, de Alberto Fernández na Argentina, de nosso presidente Jair Bolsonaro, do presidente colombiano Iván Duque e do presidente chileno Piñera. Esses quatro mencionados têm hoje níveis de aprovação inferiores a 30%, vacilando entre pouco mais de 20% e 15%.
"A dificuldade de ser incumbente hoje me parece uma explicação para insucesso de muitos dos líderes latino-americanos, mais do que a sua orientação política."
Ser um político incumbente na América Latina é muito difícil, na visão do analista. A probabilidade maior é que esse político incumbente esteja passando por uma crise em termos de opinião pública. "A situação não parece se definir por uma questão ideológica, mas mais se define por uma questão da incumbência, quer dizer, quem está no governo hoje na América Latina sofre mais", reiterou Fabio Lacerda.

Isolamento de Bolsonaro e simpatia por Lula dos líderes mundiais

O atual presidente da República compareceu à cúpula do G20, no fim de outubro, e deu sinais de que está isolado dos principais líderes mundiais. O ex-presidente Lula, pelo contrário, recentemente regressou de uma viagem à Europa que rendeu exposição positiva, se reunindo, entre outros, com o presidente da França Emmanuel Macron, e parece ainda ter a intenção de fortalecer suas relações na América Latina.
Presidente Jair Bolsonaro entre outros líderes mundiais na cúpula do G20 no Japão, 29 de junho de 2019
Nos próximos dias, segundo apuração do Poder 360, Lula deve se encontrar com o atual presidente da Argentina, Alberto Fernández. Nesse contexto, a questão atual é como essa situação potencialmente pode se refletir na corrida presidencial de 2022.
O professor admite esse isolamento que enfrenta Bolsonaro na cena política internacional hoje, em parte porque possui "um perfil populista de inclinação autoritária" e em muitos aspectos se aproxima de líderes ou ex-líderes como Trump nos EUA, Erdogan na Turquia ou Modi na Índia. Ao mesmo tempo, na opinião dele, isso não constitui um problema para o presidente brasileiro.
"As relações bilaterais são muito mais pragmáticas, por isso, qualquer que seja o desgosto ou antipatia que líderes como Biden ou Merkel tenham para Bolsonaro, isso só vai impactar as relações comerciais desses países de modo muito contido e limitado."
Quanto a seu potencial rival na eleição presidencial no ano que vem, Lula, nos últimos tempos podemos observar a afinidade e o respeito maior que Lula goza em ambientes políticos muito diferentes ao redor do mundo, mostrando um apreço de líderes mundiais pela figura de Lula, muito diferente do que têm pela figura de Bolsonaro.
Essa estratégia de Lula pode ter algum efeito para setores da população brasileira pensando nas eleições presidenciais de 2022, afirma Fabio Lacerda.
Mesmo assim, o professor permanece cético em termos do quanto isso pode afetar de fato as eleições. Ele duvida que a aceitação acolhedora do ex-presidente Lula pelos líderes europeus vá necessariamente garantir mais votos para ele. A eleição de 2022 vai ser definida pelas questões que impactam o brasileiro de forma mais forte e direta, como inflação, desemprego, crescimento da economia ou a condução da crise da pandemia pelo governo, acredita.
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