Ciência e sociedade

O que Saramago tem a ver com os especiais de Natal do Porta dos Fundos? Porchat explica à Sputnik

Fabio Porchat com Pilar del Río no gabinete de José Saramago, na fundação homônima, em Lisboa
Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, Fabio Porchat fala da série que está gravando em homenagem ao centenário de José Saramago e da influência do escritor para os especiais de Natal do Porta dos Fundos. Pela primeira vez, ele também se manifesta sobre Eduardo Fauzi e o atentado à bomba à produtora.
Sputnik
Depois do lançamento da série documental para o canal de TV português RTP, este correspondente da Sputnik Brasil em Lisboa participou de uma visita guiada à Fundação Saramago e de um almoço com Porchat, sua avó Maria Alice, sua empresária Yara Souza, o também humorista Antonio Tabet (Kibe Loco) e o produtor português Hugo Nóbrega.
No restaurante em que se degustou um arroz de lavagante, Porchat e Tabet foram tietados pela equipe de funcionários, que pediram para tirar uma foto ao final da refeição. Nas ruas lisboetas não foi diferente. Durante mais de meia hora de entrevista a caminho do hotel, Porchat foi parado algumas vezes com pedidos de selfies por fãs brasileiros e portugueses.
Funcionários de tradicional restaurante de Lisboa pedem para tirar foto com Porchat e Antonio Tabet
O sucesso do Porta dos Fundos em Portugal, assim como o êxito mais recente do programa "Que história é essa, Porchat?" em terras lusitanas, ajudam a explicar por que o produtor e realizador (diretor) português Ivan Dias escolheu um brasileiro para refazer os passos de Saramago no livro "Viagem a Portugal", 40 anos depois, em formato de documentário de seis capítulos de uma hora, cada. A escolha foi chancelada pela escritora espanhola Pilar del Río, viúva do autor e presidente da Fundação Saramago.
Fabio Porchat com Pilar del Río durante o lançamento da série portuguesa inspirada em "Viagem a Portugal", de Saramago
Durante 20 dias, Porchat percorreu mais de 40 cidades, povoados e aldeias citados na obra do único Prêmio Nobel da Literatura em língua portuguesa. Nesta primeira metade da viagem, desceu do Norte até Coimbra. Em fevereiro, passará mais 25 dias, continuando a saga até o Algarve, no Sul de Portugal.
Já o contato com a matriarca da família de Porchat, no dia do lançamento da série, foi importante para perceber as origens do gosto pela literatura e pelas viagens. Dona Maria Alice também carrega no DNA a espontaneidade e o humor hereditários.
A longa entrevista com Porchat acabou se encaminhando para a política, uma vez que Saramago era também um ator político do Partido Comunista de Portugal (PCP), que, naquele sábado nublado, participava de um protesto pelo aumento salarial dos trabalhadores e pela redução da carga horária. O tempo fechou na Avenida da Liberdade, começou a chover no Centro de Lisboa e, inevitavelmente, a conversa rumou para a crise política no Brasil.

"Aposto que a manchete vai ser sobre [Jair] Bolsonaro e não vai sair nada sobre Saramago", brincou Porchat, provocando este correspondente da Sputnik.

Aposta perdida. Saramago é prioridade, mas não se pode ignorar a política em meio ao atentado a bomba à produtora Porta dos Fundos, prestes a completar três anos, no Natal, com apenas um dos cinco envolvidos identificado e preso.
"Lembrando que quem era o ministro da Justiça na época [das investigações] era o [Sergio] Moro, que não falou nada, até hoje não se pronunciou sobre o primeiro ataque terrorista contra a cultura desde o Pasquim durante a ditadura. Acho que isso é muito emblemático", pontua.
Devido à riqueza das histórias, a entrevista será publicada em duas partes.
Leia a primeira parte a seguir, e a segunda, amanhã:
Sputnik: Como surgiu o convite para fazer a série?
Fabio Porchat: O Ivan Dias entrou em contato comigo, oferecendo o projeto e dizendo que já tinha essa vontade há muito tempo e queria fazer essa "Viagem a Portugal". Eu imediatamente falei com ele: "Mas por que que você não chama um português?". E ele disse que queria um olhar de fora: "Eu quero um olhar fresco, quero um olhar que se surpreenda com Portugal e, talvez, um brasileiro que goste tanto de Portugal tenha ainda esse frescor no olhar, tudo seja novidade para ele". Então, aceitei. Falei que entendi o ponto de vista e achei que fazia sentido, não só porque tem uma ligação com Portugal e gosto muito daqui, como também tem uma ligação com o Saramago, por ser um dos meus escritores preferidos. Sempre disse isso, não porque agora estou fazendo esse documentário. Sempre o li muito, sempre me tocou muito, então era unir o útil ao agradável: vir a Portugal, descobrir o país e, ainda por cima, seguir os passos de Saramago.
S: Faz 20 anos que o Ivan tem esse projeto na cabeça?
FP: Ele tem essa ideia há 20 anos. Ele entrou em contato com o Saramago e chegou a falar com ele. E aí ficou esperando isso acontecer, não sei exatamente quais foram os percalços, mas sei que ele então entrou em contato com a Pilar [del Rio], e ela endossou o projeto, topou, fez a coisa acontecer, aprovou meu nome e, aí sim, o sonho dele está acontecendo.
Bastidores das gravações da série da RTP, inspirada no livro "Viagem a Portugal", de Saramago
S: A sua avó Maria Alice estava me contando que é fascinada por leitura e que tanto a sua mãe, quanto você leem desde pequenos. Lembra qual foi o primeiro livro de Saramago que leu?
FP: "O Evangelho segundo Jesus Cristo" foi o primeiro que li, [quando] eu tinha 22 anos e fiquei muito impressionado com a ideia de você poder ter uma visão não sagrada de uma história tida como sacra. E isso que abriu muito os olhos e a mente inclusive para poder escrever os especiais [de Natal] do Porta dos Fundos.
S: Foi um livro que foi indicado ao Prêmio de Literatura Europeu, mas que causou uma grande polêmica na época ao ser censurado da lista pelo governo português. Há uma relação da reação ao Especial de Natal do Porta dos Fundos?
FP: Foi uma grande polêmica e foi por isso que ele [Saramago] acabou indo para a Espanha, porque o livro foi proibido aqui de concorrer e de participar de concursos e ele, então, foi-se embora para Espanha, porque ele não aceitava viver em um lugar que tivesse esse tipo de atitude. E é interessante ver como isso ainda perdura. Ainda hoje as pessoas têm opiniões semelhantes, acham que não se pode falar de um assunto que seja sagrado. O problema é que, para cada um, sagrado é diferente, para mim é um, para você outro... Então, se todos nós não pudermos falar sobre o sagrado de ninguém, a gente não pode falar sobre nada.
S: Você é um ateu, graças a Deus, né?
FP: Sou ateu, assim como Saramago, e me interesso muito por religiões e pela História da religião.
S: O que pode falar sobre o Especial de Natal do Porta dos Fundos desse ano?
FP: Vai ser muito simpático. Pela primeira vez, vai ser uma animação de 30 minutos. É um especial sobre Jesus e a adolescência dele, Jesus na escola. A gente não tem isso na Bíblia, como foi a adolescência de Jesus e a gente resolveu fazer um Jesus highschool. [Veja o teaser]
S: Estamos aqui do lado do Antonio Tabet, que virou notícia em Portugal dizendo que ele acreditava na volta de Jesus. Você acredita na volta de Jesus?
FP: Jesus já voltou, mas ele foi assassinado. Toda vez que ele volta, ele é assassinado. No Brasil, se Jesus voltasse hoje, ele seria morto imediatamente. A não ser que ele volte um homem branco hétero cis, de classe alta, ele vai ser assassinado, como a gente tem uma série de Jesuses assassinados todos os anos no Brasil.
S: Mas você acredita na figura Histórica de Jesus?
FP: Lógico! Acredito em pessoas que viveram naquela época, tal qual esse homem Jesus, que foi relatado em alguns livros. O que eu não acredito é na figura mitológica de Jesus agora.
S: Voltando a falar de Saramago, foram 20 dias de viagem por Portugal?
FP: Vinte dias, começando em Miranda do Douro e terminando em Coimbra nesse primeiro momento. E aí, em fevereiro, eu volto e fico mais 25 dias viajando de Coimbra até o Algarve.
S: Nesses primeiros 20 dias, foram quantas cidades, povoados ou aldeias?
FP: Quarenta com certeza, mas não sei precisar quantos porque a gente fazia muitos lugares por dia. A gente se baseou em alguns lugares e fazia as cidades ao redor, algumas a gente visitava muito rapidamente, assim como Saramago visitou, algumas a gente ficava mais tempo, como Coimbra, Porto, Bragança e Amarante.
S: Eu vi um trecho exibido no lançamento e não entendi quase nada do que os portugueses falavam. Você entendia tudo sempre?
FP: [risos] Eu entendia sempre. Já estou com o ouvido acostumado, porque eu estava no Norte, nas aldeias, conversando com os idosos, com a população local, e inserido no assunto que estava acontecendo ali. Mas entendo que é difícil, em alguns momentos, sim. Mas não custa nada perguntar: "Desculpa, não entendi". Assim como muitas vezes eu fazia perguntas que eles não entendiam. Por exemplo, quando pergunto "o que você faz?", o português não entende. [A pergunta tem que ser]: "Você trabalha com o quê?". "O que você faz?", aqui em Portugal, não significa nada. Então, fui aprendendo também, ia na rua conversando com muita gente, entendia também como funcionava a cabeça.
S: Mas você fez um curso intensivão de português de Portugal antes de vir? Porque aqui dizem que não falamos português, falamos brasileiro. Existe um certo preconceito até.
FP: Não, mas acho que é verdade. O sotaque muda muito, tem palavras muito diferentes.
S: Entre os momentos mais marcantes dessa viagem, Pilar lembrou de um durante a apresentação, que foi a de uma senhorinha que saiu em uma foto do livro do Saramago. Como foi isso?
FP: Em Rio de Onor, eu me encontrei com uma senhora que é a mesma senhora, Dona Maria, que estava no livro do Saramago. Ele se encontrou com ela e o marido, na época, há 40 anos. Ela está no livro, mostrou a foto que o Saramago mandou para ela. Ela me contou como era a aldeia antes, porque, no fim das contas, é também o entendimento de como as coisas eram antes, como funcionavam, o que mudou, que tipo de coisa Saramago viu e não veria mais, para o bem e para o mal.
S: Mas não tinha o nome dela no livro, só o do marido?
FP: No livro, está lá: a mulher do Seu Manoel. Imagino que, há 40 anos, fosse mais difícil conversar com uma mulher casada, em uma aldeia. O Saramago conversou realmente com o marido. E aí eu pedi para ela autografar meu exemplar do livro, embaixo da foto dela, e colocar então o nome: Dona Maria dos Anjos. Ela autografou e, no fim das contas, é mais um personagem dessa viagem.
Dona Maria dos Anjos mostra a Porchat a foto em que aparece no livro de Saramago
S: Também há lugares que não mudaram muito, aldeias que ainda estão meio que paradas no tempo?
FP: Arquitetonicamente, são as mesmas aldeias, mas, na verdade, o que todos eles falam é que as pessoas foram-se embora. Se antes havia 300 pessoas na aldeia, hoje há 15 ou 12. O que mudou é isso: a presença de pessoas. Em todas as aldeias a que fui, as pessoas falam: "Sinto falta das crianças, havia muitas crianças aqui, agora não há mais crianças". De qualquer forma, é lógico que houve uma evolução muito grande em Portugal. Quarenta anos parece pouco, mas é muito tempo para o desenvolvimento, tanto é que você vê: hoje, Lisboa é um hotspot da Europa, melhor cidade para ser visitada, o Porto também, uma coisa que não acontecia há 40 anos.
S: Nem há 10 anos...
FP: Quando vim para cá na Expo 98, eu tinha cerca de 15 anos, lembro do comentário dos meus pais e da minha família dizendo "o português ainda recebe o brasileiro com certa implicância, não gosta tanto, o turista não é tão bem recebido em Portugal". Nem sei se isso é verdade ou não. Sei que me falavam isso. E hoje é completamente diferente. Todo mundo aceita muito bem os brasileiros, os turistas. Portugal entendeu o valor do turismo.
S: Do turismo, sim. Você está tendo uma experiência não só como turista, mas como um estrangeiro famoso. Mas há muitos casos de preconceito e discriminação contra brasileiros também aqui.
FP: Há 40 anos, era 100 por mês, era muito mais. Acho que as coisas mudaram muito. Claro que existe uma resistência, pessoas nostálgicas. No fim das contas, há uma onda de conservadorismo no mundo todo. Mas acho que não há nem comparação. Lógico que as coisas poderiam estar melhores, mas já foram muito piores.
S: Você tem laços com Portugal ou é uma ligação mais com a literatura?
FP: Na verdade, um tio meu, casado com a irmã da minha mãe, é português. Então, é um laço afetivo mesmo, não só com a literatura, um laço com o país, com o lugar, com o clima. Quando fui ao Jô Soares no programa em que surgi, eu estava com a camisa de Portugal, por coincidência. Gravei "Meu passado me condena 2" em Portugal, com dois atores portugueses, o Ricardo Pereira e a Mafalda Pinto.
S: Falando desses tempos antigos, desde quando você se apresentava de chinelos no "Comédia em Pé", passava pela sua cabeça se tornar esse cara que você se tornou, uma referência não só no humor, mas uma figura quase onipresente no Brasil? Você sonhava com isso?
FP: Todo artista sonha ser reconhecido, ter trabalho, ser respeitado pelo que faz. A luta é essa, e fico feliz que sinto que algumas coisas têm acontecido nesse caminho. Não só no Brasil como em Portugal também. Então, a luta sempre é: fazer aquilo que você acredita, tentar fazer o seu melhor e torcer para que as pessoas gostem disso. [risos]
S: E as pessoas gostam. Você foi parado na Avenida da Liberdade para tirar fotos com fãs, no restaurante também todo mundo queria uma foto... Portugal é o seu segundo país, não só por causa da língua, mas pela projeção do Porta dos Fundos?
FP: Porta dos Fundos 100%, mas agora o "Que história essa, Porchat?" está passando aqui no Globoplay, as pessoas veem muito no YouTube logicamente, então as pessoas têm reconhecido. Mas o Porta dos Fundos que me projetou para Portugal.
Porchat posa para foto com fã brasileira em rua de Lisboa durante a entrevista à Sputnik
S: Você não tinha lido ainda "Viagem a Portugal"?
FP: Esse livro eu não só não tinha lido, como não conhecia. E foi com o convite [para a série] que eu fui atrás de ler e entender que livro era esse. E ele é mais mágico ainda quando você está em Portugal, porque você consegue experenciar, de verdade, aquilo que está no livro.
S: Tem uma outra história que precede totalmente essa visita a Portugal, que é de uma outra viagem que você fez para a Amazônia. Você estava em um barco com dois índios lendo qual livro do Saramago?
FP: No momento em que eu estava lendo o "Ensaio sobre a cegueira", estava na ponta do barco, eles remando em direção à aldeia. Eu estava tão imerso no livro que, quando o barco balançou e me molhou, eu me esqueci de que eu estava em um rio da Amazônia e imaginei que estava no meio daqueles excrementos todos do "Ensaio sobre a cegueira". E o primeiro pensamento que tive na minha cabeça foi de nojo quando a água bateu em mim, até eu entender que eu estava na Amazônia. Quer dizer: o livro me absorveu tanto que eu estava vivendo aquele livro como se fosse um filme da minha vida.
S: Mas você não tinha tomado ayahuasca?
FP: Ainda não...
S: Você tomou e como foi a experiência posterior?
FP: [risos] É muito louco. É um alucinógeno, né. Então você fica muito doido.
S: Tive oportunidade de entrevistar o Eduardo Fauzi, único suspeito preso por aquele atentado a bomba ao Porta dos Fundos, cuja tipificação criminal mudou para terrorismo, após a entrevista que concedeu a mim por carta, da prisão na Sibéria. Você acha que ele faz parte de um projeto de extrema-direita que vigora no mundo ou é um lobo solitário?
FP: Acho que ele é um criminoso. Está preso. Acho que ele tem ideias reacionárias de extrema-direita, mais agressivas, e que não visam à liberdade de expressão à democracia, nenhum tipo de civilização que a gente gostaria de ver. Então, a verdade é que esse tipo de pensamento tem que ser punido. Faltam ainda quatro pessoas serem pêgas e presas. Lembrando que quem era o ministro da Justiça na época do Bolsonaro era o Moro, que não falou nada, até hoje não se pronunciou sobre o primeiro ataque terrorista contra a cultura desde o Pasquim durante a ditadura. Acho que isso é muito emblemático.
S: Recentemente, houve um outro atentado à bomba, também em Botafogo, ao Consulado da China no Rio de Janeiro. O Itamaraty demorou duas semanas para se manifestar. O que você acha disso?
FP: É essa a realidade que o Bolsonaro expôs. Ele tirou dos esgotos e dos bueiros esses bichos escrotos que estavam escondidos. Se a gente pudesse dizer que há alguma coisa boa nisso é saber com quem a gente está lidando. Pela primeira vez, o Brasil está se dando conta de que sua população é racista, misógina, homofóbica, violenta e xenófoba. Então que aprendamos com nossos erros, mas, para isso, é preciso tirar esse cara do poder.
S: Ele tirou muita gente do armário?
FP: [Risos] Tirou do bueiro, não tirou do armário, não.
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