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Brasil com fome: especialista defende ações urgentes e critica 'desmonte' de políticas públicas

À medida que o Brasil começa a superar a crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19, outros problemas que sempre estiveram presentes voltam a saltar aos olhos. Menos de uma década depois de sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), o país volta a viver uma dura realidade.
Sputnik
Em 2013, a parcela da população que passava fome era de 4,2%, o nível mais baixo da série histórica medida pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). No ano passado, o número saltou para 27,6%, atingindo 19,1 milhões de brasileiros. A situação causou a morte de 4.540 brasileiros por desnutrição em 2020, segundo o Ministério da Saúde. Neste ano, até maio, foram 1.231 mortes pelo mesmo motivo.
Para a professora da UnB (Universidade de Brasília) Elisabetta Recine, integrante do Grupo Temático Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o quadro vem se deteriorando há alguns anos.

"É uma nítida piora, desde 2015, 2016, com o aumento dos indicadores de pobreza, derivado de um início de crise econômica e do aumento de desemprego", apontou Recine, em entrevista à Sputnik Brasil.

Mas a situação ficou realmente calamitosa mais recentemente. Entre 2018 e 2020, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave no Brasil pulou de 10,3 milhões para 19,1 milhões.
"Se considerarmos que o ano de 2021 foi ainda mais desafiador, com pessoas buscando ossos, um maior número de pessoas em situação de rua, pegando alimentos descartados em supermercados, certamente e infelizmente a situação que foi retratada em 2020 piorou em 2021", afirmou a professora, que também é coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (OPSAN/UnB) e foi a última presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto em 1º de janeiro de 2019.
Integrantes do programa Natal Sem Fome fazem ato na orla da praia de Copacabana contra a fome no Brasil e esperam ajuda para muitas famílias que vivem em extrema pobreza, no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 2021. Foto de arquivo
Um levantamento realizado pela Rede Penssan em dezembro de 2020, chamado de Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 mostrou que, nos três meses anteriores à coleta de dados, 116,8 milhões de brasileiros estavam em insegurança alimentar, sem acesso pleno e permanente a alimentos.
Isso representa 55,2% dos domicílios brasileiros. Em 2018, essa taxa era de 36,7%.
Do total, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9%) passavam fome (insegurança alimentar grave).

"As famílias estão tentando equilibrar sua alimentação em níveis mínimos, com uma mínima constância, dependendo de um orçamento que vem de um trabalho informal. Na semana em que não conseguem, saem da [insegurança alimentar] moderada para a grave", disse Recine.

Segundo a professora da UnB, o dado é a ponta do iceberg da desestruturação social. Recine aponta que o país tem desafios de curto, médio e longo prazo profundos, para reorganizar a vida da população.
"Esses números apontam para uma crise dramática profunda e que não vai ser resolvida no curto prazo, ainda mais considerando a desestruturação da rede de políticas sociais", afirmou.
A professora explica que o Brasil deixou de ter uma rede de proteção social articulada. Ela lembra que uma alimentação saudável e adequada é a "base fundamental para crescer e se desenvolver, não só fisicamente, mas cognitivamente".

"Dependendo da extensão e da duração dessa situação de fome, há consequências que vão comprometer o restante da vida da pessoa. Para o adolescente, compromete o desenvolvimento. Para o adulto, compromete seu cotidiano, suas condições de organizar a vida, de ter uma saúde mental para lidar com os desafios desse momento", disse Recine.

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SUS e 'desmonte das políticas públicas'

Para a professora, mesmo com o maior controle da pandemia no país, o Sistema Único de Saúde (SUS) segue em alerta justamente devido às complicações causadas pela má alimentação da população.
Recine destaca a importância da atenção primária, de estruturar ações considerando as condições de vida dos brasileiros. Segundo ela, a Saúde no país não tem tido instrumentos para lidar com o nível de vulnerabilidade atual, deixando de dar o suporte necessário às famílias.

"É importante que a Saúde consiga se articular com essas ações de assistência social no nível do território. O que estamos testemunhando hoje nas unidades básicas são os profissionais de saúde se sentindo quase que impotentes diante do nível de fragilidade com que as pessoas estão chegando às unidades, seja por problemas físicos ou de saúde mental", explicou.

Recine lamenta a falta de políticas sociais no governo federal nos últimos anos. Para ela, o país tem sofrido "um desmonte das políticas públicas, de proteção social e as relacionadas à segurança alimentar e nutricional".

"Muitas das medidas de desmonte das políticas públicas ocorrem no nível do Executivo, mas muitas delas precisam da ação do Legislativo. E, infelizmente, o Legislativo tem contribuído muito com o desmonte de políticas públicas, alterando a estrutura dos programas, o orçamento, também aprovando projetos de lei que colocam em risco a posse da terra de povos e comunidades tradicionais e não aprovando medidas de apoio à agricultura familiar", elencou ela.

A coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (OPSAN/UnB) afirma que o país precisa recuperar a rede de proteção social, os programas de transferência de renda, de benefício continuado e criar ações específicas para grupos em situação de maior vulnerabilidade, como indígenas e quilombolas.
Ela diz que é preciso ter um olhar específico também às mulheres, principalmente as negras, para reduzir as desigualdades de gênero e raça.

"As políticas precisam ter uma perspectiva de interseccionalidade, porque se engana quem pensa que a fome e a pobreza são homogêneas. Elas têm cores mais dramáticas em vários grupos da nossa população", afirmou.

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