Não é de hoje que dois dos maiores produtos do agronegócio brasileiro no mercado internacional sofrem pressões que ameaçam as exportações do país.
A soja e a carne bovina registraram, em setembro deste ano (2021), um aumento de US$ 1,91 bilhão (cerca de R$ 10,8 bilhões) no valor exportado. Contudo, este ciclo superavitário pode acabar.
Além de pendências com o mercado chinês que resultaram na queda das exportações em outubro, na última quinta-feira (16) seis redes europeias de supermercados anunciaram que não venderiam mais carne bovina com origem no Brasil ou produtos ligados à JBS, após denúncias de que a empresa brasileira teria comprado gado criado em áreas de desmatamento, dentro de um esquema conhecido como "lavagem de gado".
Para explicar as implicações e o impacto deste anúncio, a Sputnik Brasil conversou com o especialista em exportações e importações de alimentos congelados, carnes e frutas da América do Sul e CEO da empresa Trading SL., João Santos Lima.
Questão ambiental
Há algum tempo, autoridades ambientais de todo o mundo buscam por soluções para que o modelo de produção e consumo de alimentos torne-se mais sustentável. A degradação ambiental que resulta do modelo atual impacta em diversas áreas da vida cotidiana, segundo ambientalistas.
A agropecuária é uma das maiores fontes de gases poluentes, com cerca de 20% do valor global das emissões de gases de efeito estufa (agricultura, criação de gado e exploração de terrenos), e muito embora o tema não tenha sido abordado de forma mais contundente na COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021), a carne bovina continua sendo considerada uma "vilã" de peso.
Para João Santos, as grandes redes de supermercados, que revendem produtos de origem animal, obedecem a uma tendência mundial de exigência no padrão de qualidade no fornecimento das empresas produtoras.
"Cada vez mais as empresas produtoras, frigoríficos e processadoras serão cobradas para que atendam o mínimo de exigências ambientais. Esta é uma tendência que veio para ficar", explicou.
Para João a justificativa europeia, no entanto, é infundada, uma vez que a grande maioria dos frigoríficos brasileiros está a milhares de quilômetros da Amazônia, longe das queimadas que têm ocorrido no território. "A maioria dos pecuaristas brasileiros tem frigoríficos muito distantes da Amazônia. Eles estão no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Pará, Tocantins, Goiás, Minas Gerais, e continuam atuando nos mesmos espaços em que atuavam 40, 50 anos atrás. Se o território foi desmatado, foi desmatado há 50 anos", destacou.
Protecionismo ambiental ou de mercado?
O consumo de carnes em geral é, sem dúvida, muito grande. Para isto basta observar que, se a carne é um elemento de importância nas dietas ocidental e oriental, é preciso ter uma produção equivalente que atenda às necessidades deste consumo.
De acordo com o especialista, "existem vários mercados no mundo. A grande maioria desses mercados é indiferente às exigências ambientais. O mundo árabe, por exemplo, o Irã, países na África e países asiáticos hoje não querem emitir exigências porque preferem garantir o fornecimento de alimentos".
A maioria dos produtos exportados pelo Brasil são menos consumidos internamente. O mercado interno brasileiro consome muito mais cortes nobres de carne que os que exporta. O boicote, portanto, atinge um nicho que não tem muito impacto no mercado interno.
Partindo desta premissa, redirecionar a mercadoria, alvo do boicote, não parece ser uma tarefa difícil em função da crescente demanda por carne no mundo. A questão que fica é: se o boicote não afeta os produtores diretamente, quem mais pode sofrer seus impactos?
"Quando a União Europeia (UE) anuncia um boicote desta natureza, ele afeta muito mais a Europa que necessariamente as empresas brasileiras, ou argentinas e uruguaias, que têm outras opções de venda", disse João.
Dados da Comissão Europeia revelam que a UE tem um efetivo total correspondente a 78 milhões de cabeças de gado, cuja produção corresponde às políticas de apoio aos produtores com foco no abastecimento interno, podendo recorrer a uma série de medidas de mercado para, quando necessário, estabilizar os mercados da carne de bovino.
Para o especialista, "o boicote parece muito mais protecionismo europeu que uma exigência de regras ambientais. É fácil para uma comunidade [UE] dizer que um exportador do porte do Brasil não obedece às regras ambientais para, desta forma, proteger seus produtores locais, na França, Alemanha e Espanha, quando o preço e a qualidade brasileira superam o produto europeu", afirmou.
Consequências do boicote
A União Europeia importou em 2020 cerca de US$ 223 milhões (aproximadamente R$ 1,3 bilhão) de carne bovina brasileira congelada. A título de comparação, o montante equivale a menos de 6% dos US$ 4,04 bilhões (cerca de R$ 22,8 bilhões) em carne bovina congelada importada pela China do Brasil no mesmo ano.
Grandes países importadores como Rússia, Egito, Irã, China e Cazaquistão, por exemplo, já seriam mais que suficientes para absorver a produção que seria destinada à UE. Vale ressaltar que para esses mercados a questão principal acerca da produção bovina ainda é o preço.
Por essa razão, para João Santos os outros mercados não serão influenciados pela decisão europeia.
"Nos últimos 15 anos, quando a União Europeia fechou mercados, nenhum outro mercado fechou. Esses outros mercados, de volume muito maior, nunca serão impactados, tenho certeza, por uma decisão [da UE] neste campo, porque a capacidade dos exportadores da América Latina, por exemplo, é muito menor que o tamanho do mercado mundial", assegurou João. "Literalmente, hoje, e sem sombra de dúvida, os produtores brasileiros escolhem para quem querem vender. Com a ascensão da China, cada vez mais importando em volume, a situação dos produtores é de conforto em relação a outros mercados."
Para João, o volume de importação da carne bovina brasileira pela UE, 20 vezes menor que o da China, será facilmente absorvido pela demanda externa. Uma vez que isto não ocorra, poderia ser dividida internamente pelas muitas regiões do Brasil.
"Ter o mercado europeu como opção é questão de status. Mas, garanto que sem a UE os produtores brasileiros podem viver muito bem", finalizou.