Infectologista: erros do governo brasileiro no combate à COVID-19 não foram aleatórios
19:59, 31 de dezembro 2021
O mundo caminha para o terceiro ano de enfrentamento à pandemia com a vacinação em curso e as incertezas lançadas pela variante Ômicron. A Sputnik Brasil ouviu especialistas para traçar o cenário brasileiro no combate à COVID-19 em 2022.
SputnikO Brasil termina 2021 com quase 620 mil óbitos e 22 milhões de casos de COVID-19 acumulados. Apesar de o ano ter sido
muito mais letal do que o anterior – cerca de 420 mil mortes causadas pela doença ocorreram neste ano – o avanço da
vacinação gerou uma mudança drástica de cenário. Se em abril a média de mortes diárias no país passava de 3.000 óbitos, após a vacinação completa de 67% da população brasileira essa média gira em torno de 100 óbitos diários.
Um levantamento da Sputnik Brasil com base em
dados do site Our World in Data mostra que dezembro de 2021 foi o mês com menos mortes registradas por COVID-19 desde o início da pandemia. Diante do aparente otimismo traduzido dos dados, nas ruas brasileiras a população
vive um clima de quase normalidade, apesar da continuidade do uso de máscaras.
Em relatório
publicado na semana passada, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem sido fundamental no enfrentamento à crise sanitária com dados, análises e fabricação de imunizantes, elencou desafios a serem enfrentados no combate à pandemia no Brasil em 2022.
Para a Fiocruz, o ano começará sob a ameaça da variante Ômicron, do apagão de dados no Ministério da Saúde e também da politização do enfrentamento à pandemia. A Sputnik Brasil ouviu especialistas para discutir esses pontos.
Crianças estão vulneráveis diante de ameaça da Ômicron, apontam especialistas
Segundo a Fiocruz, a chegada da variante Ômicron ao Brasil cria um cenário de incertezas semelhante ao observado quando a variante Gama foi descoberta no país no final de 2020. A Gama levou o Brasil ao pior pico da doença até agora.
Na última semana de dezembro
diversos países bateram recordes de casos de COVID-19 enquanto a Ômicron se espalha a uma velocidade inédita. Nos Estados Unidos, mais de 500 mil casos foram registrados em apenas um dia, enquanto no Reino Unido foram mais de 300 mil. França e Espanha viram cifras acima de 200 mil, e a Argentina passou de 50 mil casos detectados.
Para a epidemiologista Ethel Maciel, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o ano de 2022 ainda será desafiador no manejo da pandemia, uma vez que há uma grande parcela da população mundial que não foi vacinada – pouco mais de 49% da população do planeta está totalmente imunizada. Para o Brasil, a pesquisadora ressalta que o foco deve ser vacinar as crianças e aumentar a aplicação das doses de reforço, que chegou a apenas 12% dos brasileiros.
Apesar dos alertas, a especialista acredita que a situação em 2022 deve ser melhor que a dos dois anos anteriores devido à oferta de vacinas e de
medicamentos com eficácia comprovada para o tratamento da COVID-19.
"São notícias muito animadoras e que colocam 2022 em uma vantagem muito maior do que 2020 e 2021, com tantas coisas que a gente já aprendeu ao longo desses dois anos. Então, será ainda desafiador pela dificuldade de avanço da vacina nos países, a possibilidade de novas variantes, a necessidade de talvez tomar novas doses de reforço", avalia Maciel em entrevista à Sputnik Brasil.
Gerson Salvador, médico e especialista em infectologia e saúde pública, atua em São Paulo na linha de frente do combate à pandemia. O médico ressalta que graças à vacinação há menos hospitalizações e mortes no país, apesar de um recente aumento de casos. No entanto, em uma eventual explosão de infecções pela variante Ômicron, essa situação pode mudar.
"Acho que temos que destacar algumas populações, as crianças no Brasil ainda não estão vacinadas e também há pessoas que são imunodeprimidas e idosas, que mesmo vacinadas não podem dizer que estejam plenamente protegidas de ter casos mais graves. Frente a uma possível explosão de casos, a gente pode ter um aumento de internações hospitalares e de mortes", avalia o especialista em saúde pública em entrevista à Sputnik Brasil.
Salvador ressalta que a vacinação protege a população, mas que a queda da adesão às medidas não farmacológicas – uso de máscaras e distanciamento social - cria uma situação de vulnerabilidade diante da chegada da Ômicron. Apesar de dados preliminares apontarem que a cepa causa menos casos graves, a taxa de transmissão é mais alta que nas variantes anteriores.
"Em relação a como será a Ômicron no Brasil, a gente tem que ter cautela, tem que ser cuidadoso. Estamos vendo uma ascensão de casos já agora em dezembro. Então, no primeiro semestre a gente vai ver ainda uma continuidade dessa curva ascendente de casos", aponta.
Apagão de dados: aumento de casos já é visto na linha de frente
No início de dezembro, um
ataque cibernético afetou a base de dados do Ministério da Saúde e desde então diversas cidades e estados tiveram dificuldades para reportar a situação da COVID-19. Para a epidemiologista Ethel Maciel, esse "apagão de dados" gerou dificuldade para diagnosticar a real situação da pandemia no país.
"Os dados não são confiáveis, infelizmente nós não sabemos como está a pandemia no Brasil nesse momento. E com a epidemia de gripe em muitos estados há uma dificuldade diagnóstica, os serviços de saúde estão muito cheios", aponta.
Atuante na linha de frente do combate à COVID-19, o médico Gerson Salvador destaca que o recente surto de gripe foi observado com antecedência nos postos de atendimento. Da mesma forma, nas últimas semanas houve um aumento de atendimentos de casos de COVID-19.
"A gente sentiu antes do surto [de gripe] ser notificado pelos órgãos de vigilância. A gente já estava sentindo nos postos de atendimento. E, e um segundo momento, a gente viu retornarem os casos de COVID-19. Tenho visto muita, mas muita gente mesmo que contraiu COVID-19 nas últimas semanas, nas festas natalinas, em uma curva que parece estar crescendo de maneira muito rápida", relata o médico.
Falta de liderança e nagacionismo são ameaças para 2022
A epidemiologista Ethel Maciel ressalta que a dupla crise sanitária no país tem pressionado os sistemas de saúde. Mesmo diante do cenário complexo, a pesquisadora aponta que Brasil chega à virada de ano "mais uma vez" sem a liderança do Ministério da Saúde. Maciel recorda que essa não é uma situação nova e que a pasta vem trabalhado dessa forma ao longo da crise sanitária.
"O alinhamento a pautas negacionistas por parte do Ministério da Saúde acontece desde o início. [...] Os erros do Brasil foram erros, eu diria, intencionais, erros que não foram aleatórios. Foram erros cometidos de forma intencional, de forma que o próprio ministério e o governo federal é que criaram esses problemas", afirma.
Em seu relatório, a Fiocruz lamentou casos recentes de negacionismo contra a vacinação de crianças contra a COVID-19 e as
ameaças identificadas contra o corpo técnico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O médico Gerson Salvador vai na mesma linha e relata que também recebe ameaças, comuns aos que demonstram posicionamento crítico em relação à gestão da pandemia durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Para ele, apesar das mudanças de ministros, a gestão atual continua sendo negacionista.
"Todo mundo que tem posições públicas contra os absurdos que o governo Bolsonaro tem feito na condução da pandemia recebe ataques. A gente recebe ataques em rede social, a gente tem nossos dados expostos. [...] Então, [esse posicionamento do governo] atrapalha o nosso trabalho. E esse 'atrapalhar' parece ser uma decisão deliberada. É coerente com essa condução de apoiar tudo que não funciona e boicotar as medidas que são efetivas", conclui.