Ciência e sociedade

Com 1,2 milhão de pessoas sem médico de família em Portugal, brasileiros esperam 2 anos por consulta

Portugal vive uma crise em seu sistema público de saúde que vai muito além da pandemia de COVID-19. Com quase 1,2 milhão de pessoas sem médico de família no país, brasileiros residentes ouvidos pela Sputnik Brasil também sofrem com a espera por atendimentos que demoram, às vezes, mais de dois anos.
Sputnik
De acordo com dados obtidos pela Sputnik Brasil no Portal da Transparência do Sistema Nacional de Saúde (SNS), Portugal fechou 2021 com 1.171.440 pessoas sem médico de família, 11% dos quase 10,5 milhões inscritos em centros de saúde pública.
O tema foi um dos destaques do debate entre o primeiro-ministro António Costa, secretário-geral do Partido Socialista (PS), e Francisco Rodrigues dos Santos, líder do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP), transmitido na noite de domingo (9) pela SIC. Apesar de reconhecer que falhou na promessa das últimas eleições de que todos os portugueses tivessem médico de família, Costa não quis arriscar um prazo para cumprir esse objetivo.

"Gato escaldado tem medo. Não desistimos de que todos os portugueses possam ter médico de família. Temos dois compromissos muito importantes: a criação de incentivos para a localização de médicos de família nas zonas mais carenciadas e generalizar o modelo de unidades de saúde familiares de modo a cobrir 80% da população. Julgamos que, desse modo, vamos ter uma carreira mais atrativa e mais médicos disponíveis", avaliou Costa.

Em Bruxelas, na Bélgica, o primeiro-ministro de Portugal, António Costa, coloca uma máscara de proteção contra a COVID-19 durante coletiva de imprensa após encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em 15 de outubro de 2020
Se é difícil para os portugueses, adicione todas as doses de burocracia para os brasileiros residentes em Portugal. Apesar de não haver números disponíveis de quantos dos mais de 222 mil cidadãos do Brasil que vivem no país lusitano não têm direito a médico de família, o périplo para o atendimento é muito maior, a começar pela luta para conseguir o número de utente (usuário) do SNS.
As três brasileiras entrevistadas pela Sputnik Brasil enfrentaram essa dificuldade. Leticia Gurgel aguarda, há mais de dois anos e meio, uma perícia para o filho autista. Vânia Sulzbach está sem acompanhamento oncológico pelo mesmo tempo. Após esperar 8 meses por uma cirurgia urgente no SNS, Nice Silva desistiu de morar em Portugal e voltou ao Brasil para ser operada.

Série de erros e espera de 2 anos e meio para perícia de filho autista

Leticia chegou em Braga em maio de 2019 com visto de turista. Conseguiu um número de utente provisório graças a um decreto governamental que garantia a inscrição temporária aos imigrantes durante a pandemia. No entanto, não conseguiu para o filho, inicialmente.
"Alegavam, na época, que por não ter processo junto ao Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF) meu filho não podia ter o utente. Eis que, por lei, só poderia pedir o reagrupamento do meu filho junto ao SEF depois do meu processo concluído", explica Leticia à Sputnik Brasil.
Um ano depois, ela foi morar no Barreiro, na chamada Margem Sul de Lisboa, do outro lado do rio Tejo. Quando foi transferir seu endereço para o atual centro de saúde, explicou a situação do seu filho e conseguiu o número de utente para ele, sem nenhum questionamento.

"Este comportamento é sempre observado por quem precisa dos serviços públicos aqui em Portugal. Cada lugar age de maneira independente, com regras próprias", assinala.

Com o número de utente do seu filho, pôde solicitar o primeiro atendimento médico para tentar obter um atestado multiuso, que confere o grau de incapacidade de uma pessoa e que assegura alguns apoios junto à Segurança Social. No entanto, ela só conseguiu marcar a primeira consulta após um ano de atraso.
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Já o atestado é conferido por uma junta médica, obrigatoriamente do SNS, após uma perícia que está marcada para 25 de janeiro, mais de dois anos e meio depois de ter chegado a Portugal. Isso porque, após o médico do centro de saúde do Barreiro ter encaminhado seu filho para um psiquiatra, constatou-se que havia um erro em sua inscrição.
"A pessoa que fez a inscrição do meu filho colocou o endereço de Braga e não do Barreiro. Também não indicou nenhum telefone de contato. Resultado: quando a consulta com o psiquiatra finalmente iria acontecer, foi enviada carta para o meu endereço antigo, e eu não recebi nenhuma mensagem", relembra.
Leticia só descobriu porque estava achando longa demais a espera, resolveu ir ao hospital perguntar se tinham uma previsão de atendimento e soube do erro de cadastro por falta de atenção de um funcionário do centro de saúde, que não quis admitir a falha. No entanto, a gerente entendeu a situação e conseguiu uma outra consulta no mesmo dia com um novo encaminhamento, porém para um pediatra em vez de um psiquiatra dessa vez.
"Questionei, e ele disse que o procedimento era esse mesmo e que o outro médico que fez errado", conta.
A consulta foi marcada para 14 de dezembro de 2021, mas ela e o filho testaram positivo para COVID-19 naquela semana. Ela ligou para o hospital e pediu para o atendimento ser por telefone, já que só precisava de um encaminhamento.
"A atendente foi super seca e disse que isso nunca aconteceu e que precisaria ser remarcado, o que adiaria mais não sei quantos meses. Só consegui o atendimento da médica por telefone depois do meu namorado, que é português, praticamente ameaçar sair de casa para levar meu filho ao hospital. Realmente, ficamos muito desesperados devido ao tempo de espera e tantos percalços", reconhece.
Após o atendimento por telefone, a médica fez novo encaminhamento, dessa vez, novamente para um psiquiatra, por alegar que o médico anterior havia errado ao encaminhar a um pediatra.

"E agora, já estamos em 2022 em caráter de 'urgência' conseguimos encaminhamento para a consulta para o dia 25 de janeiro de 2022 e em outra cidade. E isso não é o fim, né? Porque esse médico ainda tem que solicitar a perícia antes de termos o atestado", prevê.

Desistência e volta ao Brasil após espera por cirurgia

A carioca Maria Eunice da Silva teve que voltar ao Brasil no fim de fevereiro de 2021 após um ano morando em Portugal. Com problemas renais, ela estava sob o risco de perda do rim esquerdo por conta de um stent duplo, colocado em Portugal, que, em função da pandemia, não foi retirado.
Esperou cinco meses, mas o stent não poderia ficar tanto tempo no organismo, com risco de calcificação e perda do órgão. Dois meses após fazer a cirurgia no Brasil, ela recebeu uma carta do Hospital do Barreiro autorizando o mesmo procedimento, mas para abril de 2021, oito meses após ter sido detectada a necessidade da operação e de "ser jogada" de um hospital para outro.
"Eu estava passando muito mal, com infecção urinária, mas o chefe do setor de urologia disse que não poderia fazer nada por mim. Entrei em pânico e comecei a ter crise atrás de crise, com muita dor por conta. Aquilo queimava há dias. Aí eu falei: 'Ah, não vou ficar aqui sofrendo!'. E voltei para o Brasil", recorda.
Maria Eunice da Silva precisa voltar ao Brasil para fazer uma cirurgia, sob o risco de perder um dos rins

Dois anos e meio sem tratamento oncológico

Já Vânia Sulzbach ainda não desistiu de Portugal mesmo morando no país desde agosto de 2019, sem acompanhamento oncológico. Paulista, ela já teve câncer de pele e fazia o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em Florianópolis. Diferentemente do seu marido e de sua filha de 12 anos, ela ainda não conseguiu um número de utente nem sequer cadastro no centro de saúde da Alameda, em Lisboa.
"Não tenho assistência médica nenhuma [em Portugal]. Tinha todo o acompanhamento no Brasil a cada seis meses. Aqui, estou há dois anos e pouco sem atendimento nenhum e sem previsão também. É perigoso no meu caso", diz Vânia à Sputnik Brasil.
Em 22 junho de 2020, ela enviou um e-mail com a documentação solicitada pelo centro de saúde em que tentou a inscrição para ela, o marido e a filha. Quase três meses depois, no dia 9 de setembro daquele ano, recebeu a resposta de que havia documentos pendentes, como comprovativo de agendamento no SEF ou pedido de manifestação de interesse (MI).
No entanto, o mesmo texto citava o despacho 3763-B/2020, publicado em março de 2020 pelo governo de Portugal, quando entrou em vigor o estado de emergência em função da pandemia. Nele, lê-se que, "procurando dar resposta à natureza específica da ameaça de contágio por COVID-19, a gestão dos atendimentos e agendamentos deve ser feita de forma a garantir inequivocamente os direitos de todos os cidadãos estrangeiros com processos pendentes SEF, determinando que (...), os mesmos se encontram em situação de permanência regular em Território Nacional".
Cristian Damaceno, marido de Vânia, só conseguiu números de utente para ele e para filha depois de muito sofrimento. Literalmente. Ele sofreu um acidente de moto trabalhando e teve que fazer uma cirurgia. Como precisava do documento para fazer fisioterapia na rede particular conveniada com o SNS, ele correu atrás de todas as formas assim que conseguiu voltar a andar, alguns meses depois.
Foi até o Ministério da Saúde reclamar das informações desencontradas que ele e sua mulher receberam. No dia 8 de julho de 2021, recebeu um e-mail da Secretaria-Geral do ministério alegando que as informações repassadas pelo centro de saúde da Alameda estavam corretas.
Enfermeira assiste paciente com COVID-19 no hospital São José em Lisboa, Portugal, 19 de fevereiro de 2021
No entanto, para surpresa do casal, no dia 17 de agosto, Cristian recebeu dois e-mails da central de inscrições de Lisboa. No primeiro, constavam os números de utentes de duas outras pessoas. No segundo, recebido horas depois, com o título "Número SNS/Correção", estavam os números de utentes de Cristian e da filha, mas não o de Vânia.

Placa colocada durante cirurgia na perna está quebrada

A novela não acaba por aí. Segundo Vânia, há três meses foi verificado que a placa que foi colocada na perna de seu marido, durante a cirurgia, está quebrada.
"Esse é um mistério que a gente não entendeu ainda. Os médicos ficaram de dar uma resposta para ele o que que vai ser feito. Parece que eles esquecem e abandonam o paciente. Até agora estamos esperando um retorno deles. Simplesmente não entram em contato. A gente tem medo de chamarem e dizerem que tem que abrir de novo e fazer uma outra cirurgia. Essa é outra história muito longa e que ainda não teve um final feliz", lamenta.
Questionada pela Sputnik Brasil sobre qual a comparação que faz entre o SUS, tão criticado pelos brasileiros, e o SNS, exaltado por quem vive no Brasil como um serviço de alta qualidade europeia, Vânia diz que ainda não tem elementos suficientes para comparar, já que nunca foi atendida em Portugal. Mas, diante das burocracias e erros, ela reconhece que não é nem de perto o que ouvia falar.
"Não é nada do que falaram que eu teria atendimento tranquilo", conclui.
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