Para Porto Fernandes, há segmentos da sociedade portuguesa e profissões em que o racismo e a xenofobia são mais evidentes. O preconceito contra profissionais brasileiros, aliás, é outro tema central na parte final desta conversa de mais de uma hora por Zoom com o primeiro e único representante brasileiro na Assembleia da República de Portugal. (Leia a 1ª parte aqui)
Instado a comentar as declarações de Miguel Guimarães, presidente da Ordem dos Médicos de Portugal (OM), que disse que a maioria dos médicos brasileiros não é inscrita no Conselho Federal de Medicina (CFM) e que os cursos de Medicina no Brasil têm duração que varia entre um e seis anos, o deputado criticou Guimarães e a burocracia para que profissionais da saúde estrangeiros possam trabalhar no país.
"Em relação à OM, infelizmente há uma má vontade política. Essa é uma briga nossa já de algum tempo. Ouvimos um grupo de 20 médicos brasileiros que estavam nessa situação. No mesmo dia, na imprensa, esse bastonário [presidente da OM], que é uma pessoa muito complicada, nos acusou de falta de conhecimento jurídico. Só que sou advogado atuante e sabia muito bem o que eu tinha apresentado, qual era o conteúdo do nosso requerimento", conta Porto Fernandes.
Sputnik Brasil entrou em contato mais uma vez com a assessoria de comunicação da OM, mas não recebeu nenhum posicionamento de Miguel Guimarães até o fechamento desta reportagem.
Leia a segunda parte da entrevista com Paulo Porto Fernandes a seguir:
Sputnik: Em 2021, houve uma proposta apresentada pelo Bloco de Esquerda de alteração do Estatuto do Estudante Internacional, que foi uma iniciativa de universitárias brasileiras em Portugal. Foi chumbada na generalidade, mas uma das maiores demandas ainda é equiparar as mensalidades ao valor que os portugueses pagam. O que pode ser feito para tornar mais justo o acesso de estudantes brasileiros ao ensino superior português?
Paulo Porto Fernandes: Senti isso na pele, porque meu filho foi estudar há quatro anos em Portugal, no início entrou pelo Enem [Exame Nacional de Ensino Médio] e acabou pagando mensalidade de estudante internacional. No meu entendimento, o brasileiro tem estatuto especial, até na Constituição é tratado de forma diferente, [assim como] portugueses no Brasil, e também brasileiros em Portugal. Não deveria haver diferenciação. Até apresentamos uma iniciativa, que acabamos não conseguindo alteração desse Estatuto do Estudante Internacional, mas é uma situação realmente injusta. Tivemos algumas universidades que aplicavam a igualdade de mensalidade.
S: Há inclusive um caso, na Universidade de Coimbra, onde as mensalidades são muito mais caras para universitários brasileiros, em que a nota de corte para entrar no Mestrado de Direito é mais alta para os brasileiros do que para os demais estrangeiros...
PPF: Em relação à nota de corte, realmente eu não sabia. É um absurdo, desigual e até xenofobia. Acredito que deva haver uma alteração [do estatuto] e também uma possibilidade, agora com o Acordo de Mobilidade da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), que já foi assinado por alguns países, mas infelizmente o Brasil ainda não assinou. Poderia também resolver essa questão. Não sei por que não assinou, mas espero que assine em breve. Sou vice-presidente do Grupo Parlamentar de Amizade Portugal-Brasil e vamos tentar trabalhar essa questão na próxima legislatura caso sejamos reeleitos.
S: O senhor falou em xenofobia. Na última semana, o presidente da Ordem dos Médicos de Portugal, Miguel Guimarães, deu declarações dizendo que os cursos de Medicina no Brasil têm duração que varia de um a seis anos e que a maioria dos formados não é inscrita no Conselho Federal de Medicina. A Embaixada do Brasil em Lisboa e o Ministério da Educação reagiram, chamando de "acusações levianas". O que o senhor pode fazer na Assembleia da República pelos médicos brasileiros que enfrentam dificuldades para trabalhar em Portugal?
PPF: Essa é uma briga nossa já de algum tempo. Iniciei um requerimento indagando a Ordem dos Médicos, quando a pandemia estava no momento mais crítico, sobre a aceitação dos médicos estrangeiros, venezuelanos e brasileiros, que tinham capacidade para trabalhar em Portugal, e fizemos alguns questionamentos. Ouvimos um grupo de 20 médicos brasileiros que estavam nessa situação, eu e minha colega do grupo parlamentar. No mesmo dia, na imprensa, esse bastonário [presidente da OM], que é uma pessoa muito complicada, nos acusou de falta de conhecimento jurídico. Só que sou advogado atuante e sabia muito bem o que eu tinha apresentado, qual era o conteúdo do nosso requerimento. Inclusive citei palavras dele mesmo tomando posse. Ele foi contraditório no seu depoimento, negando o que ele falou na sua posse. É uma pessoa muito complicada, que não colaborou em momento algum na pandemia com o governo de Portugal, uma pessoa que fazia críticas destrutivas e não no sentido de colaborar, sempre atuando de forma política. Sabidamente, ele é simpatizante do PSD. Sempre combateu o governo, mas nunca apresentando soluções, com críticas ácidas e sem qualquer tipo de contributo positivo. Apresentamos nossos argumentos e vimos que não haveria qualquer tipo de avanço. Em relação à Ordem dos Médicos, infelizmente, há uma má vontade política.
S: Não são apenas os médicos brasileiros que enfrentam dificuldades para trabalhar em Portugal, mas também os enfermeiros. Eles não poderiam ser úteis no combate à pandemia, num momento em que o sistema público português enfrenta uma crise com carência de profissionais da saúde?
PPF: Na Ordem dos Enfermeiros, é a mesma coisa. A bastonária [presidente] é militante do Chega, partido de extrema direita de Portugal, notoriamente. São duas pessoas, que ocupam duas posições nesses órgãos profissionais, que deveriam ter uma postura isenta e que fosse produtiva para a sociedade portuguesa. Infelizmente, é o contrário. Eles usam o cargo para se promover, seja pessoal ou politicamente. O PS fez um grupo de trabalho para limitar o poder das ordens profissionais na aprovação dos candidatos que desejam trabalhar em Portugal e que se limitassem a cumprir o papel das ordens, que é de fiscalizar a sua própria categoria e trabalhar em prol dela. E não obstar as pessoas que já tenham título profissional de trabalhar no país num momento tão difícil. Isso avançou. Temos essa alteração legislativa, mas infelizmente caiu o governo. Deve ser retomada agora na próxima legislatura. Espero que sim, porque houve um lobby muito grande dessas ordens para que não acontecesse. Mas vai ser apresentado novamente pelo grupo parlamentar. Já temos isso certo independente de sermos maioria ou não. Isso vai ser trabalhado, porque realmente é uma injustiça muito grande, e o país precisa de médicos. As pessoas precisam trabalhar. Espero que isso seja resolvido com essa alteração legislativa.
S: Os fonoaudiólogos brasileiros também têm dificuldades para trabalhar em Portugal, ironicamente sob o argumento da ordem de que não dominam o próprio idioma. Essa alteração legislativa volta à estaca zero com a dissolução do Parlamento. O senhor acredita que, na próxima legislatura, com a "bazuca" e o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o trabalho dos brasileiros em Portugal possa ser facilitado?
PPF: Penso que sim. Vai ser uma outra situação. Como você disse, foi aprovado na generalidade e agora tem que ser trabalhado na especialidade. Temos que apresentar novamente, um trabalho do zero. Também tivemos um trabalho com os dentistas, que estão sofrendo o mesmo tipo de problema. A questão da xenofobia existe em relação ao idioma. Às vezes, o preconceito é maior em relação à forma como o brasileiro fala do que qualquer outro tipo. Não existe preconceito em relação às novelas [brasileiras, por exemplo]. Só mesmo com esclarecimento e o trabalho na comunicação social para que esse preconceito seja quebrado. Outro ponto a que eles se apegam é a reforma ortográfica, questionam se seria necessária ou não. Acho que a língua portuguesa só sairia fortalecida com a unificação. Muitos alegam que a espanhola não é unificada. Mas a portuguesa se enquadra em outro patamar. Ela tem no Brasil a sua maior força, que tem que ser valorizada. Logicamente que não podemos impor que em Portugal se fale português do Brasil.
S: Mas se pode impor que os brasileiros falem com sotaque português? Há o caso de uma professora portuguesa que mandou uma aluna brasileira colocar um lápis na boca para treinar o sotaque de Portugal.
PPF: As escolas ensinam português europeu, mas não pode haver qualquer tipo de preconceito. Isso só enfraquece a divulgação da língua portuguesa e da cultura. No Canadá, existem muitos professores brasileiros que dão aula de português e professores de Portugal. A aceitação é muito normal e tranquila. Isso merece um trabalho de esclarecimento para que se acabe com o preconceito. Falo dentro do Parlamento com o português do Brasil, logicamente aplicando ao formato de Portugal, mas não forço nenhum tipo de sotaque, pois acho totalmente desnecessário. Falamos de forma aberta e clara. Em Portugal, compreendem muito bem as novelas [brasileiras] sem qualquer tipo de legenda. Acho que também o brasileiro é compreendido por todos. Às vezes, a nossa colocação das palavras é de uma forma diferente, mas ele é muito bem compreendido em Portugal. Na escola, meus filhos falam português de Portugal e em casa usam o português falado no Brasil, com nosso sotaque brasileiro, que é diferenciado e tem sua riqueza. Muitos gostam. Temos que combater esse preconceito em relação à língua.
S: Voltando às ordens profissionais, a Ordem dos Advogados não é um bom exemplo da desburocratização para que pessoas formadas em Direito no Brasil possam exercer a profissão em Portugal?
PPF: A Ordem dos Advogados é um exemplo em Portugal, que basta o advogado levar um prontuário para a ordem, que é analisado e verificada a autenticidade. O advogado, no início, se não for residente, pode ter um representante que será responsável por esse profissional durante determinado tempo, e pode advogar perfeitamente. Na Ordem dos Engenheiros também é da mesma forma, e não vejo por que outras profissões também não poderiam ter essa aplicação justa que também preencheria uma demanda que em Portugal temos de médicos. Até para o SNS [Sistema Nacional de Saúde] seria muito importante. Acho que só agregaria para os dois países.
S: Como o senhor vê a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que, para além de ser acusado de matar um ucraniano, também é denunciado por um tratamento violento contra brasileiros?
PPF: Existia uma ideia inicial da separação das partes administrativa e policial. Eu achava que seria muito oportuno já há muito tempo. Mas com aquela questão da violência contra o ucraniano… Existe [também] um documentário que até passava nos aviões da TAP, que era [sobre] uma cidadã russa casada com um médico francês que também ficou lá [nas instalações do SEF] por vários dias passando por violência. Isso já era conhecido em Portugal, e nunca foi tomada qualquer providência. Agora o governo acabou assumindo essa questão e vai fazer essa divisão. Acho que vai ser muito bom, porque já coloca um ponto final nessa questão da violência e do excesso de poder para uma pessoa que está indo visitar um país, de repente um turista, que corre o risco de ser espancado e até falecer dentro das dependências do SEF. Visitei as dependências depois que houve o falecimento, o governo imediatamente pediu para que houvesse uma reformulação daquele local onde as pessoas ficam transitoriamente, que fosse de forma mais digna. Fizeram isso, mas a medida legislativa da destituição vai ser realmente a solução, com a divisão das partes administrativa e policial. Há questões que demandam ações policiais, mas de forma alguma a violência. Acho que foi uma medida importante.
S: Falando de outro tipo de discriminação, o escritor Laurentino Gomes disse que Marcelo Rebelo de Sousa deveria pedir desculpas por Portugal pela escravidão. O senhor acha que Portugal é um país racista, que ainda não assume a responsabilidade sobre o processo escravagista?
PPF: Não vejo que Portugal seja um país racista. Existe racismo, sim. Mas são situações pontuais em alguns segmentos da sociedade e em algumas profissões. Até participei de um programa de doutoramento, com parte na PSP [Polícia de Segurança Pública], onde fui questionado se eu achava que existia racismo dentro da polícia. Disse que sim, que logicamente eu tinha percebido e presenciado algumas situações isoladas, mas que, dentro da instituição, deveria haver uma formação para que esses policiais pudessem receber os estrangeiros e esclarecimentos em relação ao racismo. Também que houvesse uma sensibilização para que fossem admitidas, nas forças policiais, pessoas das diversas etnias que compõem a população portuguesa. Isso seria de extrema importância para que essa questão fosse minimizada. Em relação ao pedido de desculpas do Laurentino, acho que Portugal reconhece o erro da escravidão. Vejo o próprio apoio que o país presta aos países africanos nessa questão, até hoje tem esse compromisso de Portugal nessa parceria com a África. É uma questão que deveria ser trabalhada mesmo na parte de cooperação entre Portugal e as nações do continente africano, fazendo uma reparação ativamente e não nas palavras. Às vezes, a pessoa pode pedir desculpas por um ato abominável, mas não se manifesta na atitude. Vejo que Portugal se manifesta na sua atitude e poderia até ir mais além e fazer uma parceria mais efetiva com os países da África.
S: Como o senhor vê o crescimento do Chega? Enxerga semelhanças entre André Ventura e Jair Bolsonaro?
PPF: O candidato do Chega é uma pessoa que difunde e estimula o ódio, inclusive contra os parlamentares. Desde o início fez isso. Sentimos na pele. Há colegas do Bloco de Esquerda, a própria Joacine [Katar Moreira, deputada sem partido] que é amiga minha, que sofreram esse ódio que ele estimulou. Elas foram ameaçadas. Nós mesmos sofremos algum tipo de ameaças telefônicas, eu e a [deputada do PS] Romualda [Fernandes], oriunda da Guiné-Bissau, mas que já vive há muitos anos em Portugal e participou da Secretaria de Justiça. Ele [André Ventura] estimula esse tipo de ação contra os parlamentares e as minorias étnicas. É uma pessoa que tem uma ação muito negativa em Portugal. Vejo que foi uma coisa muito ostensiva e negativa em relação à imigração. Fez muito estímulo ao ódio e ao preconceito em relação ao imigrante. A semelhança em relação ao Bolsonaro eu não consideraria, porque [Ventura] tem essa vertente muito xenófoba e voltada para a discriminação em relação às minorias. Tem sim aquela aquela questão de buscar a popularidade em relação a algumas coisas que fala. O que vejo é extremamente mais negativo no lado do candidato do Chega.
S: Como foram essas ameaças que o senhor recebeu? Foram pelo fato de o senhor ser brasileiro?
PPF: Era exatamente nesse sentido. Defendermos algumas questões que o Bloco de Esquerda e o PCP [Partido Comunista Português] também defendiam, como a questão antirracista. Um movimento que participei e até algumas questões humanitárias. Recebemos algumas ligações de pessoas dizendo: "Vocês estão se envolvendo com essa questão, não façam isso! Têm que tomar muito cuidado!" Eram algumas ameaças indiretas. Pedi para que a pessoa se identificasse, mas, de forma covarde, não se identificou. Com meus colegas foi muito pior.
S: Mas se não se identificaram, como as ameaças estariam associadas ao Chega?
PPF: Na ligação, a pessoa não se identificou como militante do Chega, mas o discurso era muito semelhante. Nem posso acusar que seja um militante. Mas atribuo, sim, a esse movimento desse partido de estimular o ódio contra as minorias.
S: O senhor planeja fazer algo na Assembleia da República no âmbito das comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil?
PPF: A expectativa é muito boa, até pelo centenário da Travessia Aérea do Atlântico Sul. Vai ser um ano muito importante entre Brasil e Portugal. Espero continuar no Grupo Parlamentar de Amizade entre Portugal e Brasil para poder participar dessas iniciativas.