Mães brasileiras denunciam agressões contra crianças em escolas portuguesas: 'Ambiente de terror'
05:20, 1 de fevereiro 2022
Uma bofetada na cara de uma criança brasileira de 7 anos dada por uma auxiliar de uma escola na Área Metropolitana de Lisboa, que levou a sangramento nasal, rompeu o silêncio das mães diante de agressões em escolas portuguesas. A Sputnik Brasil recebeu relatos de violência em outros três colégios.
SputnikO sangue no nariz de X. foi limpo rapidamente para "limpar a cena do crime", de acordo com o relato à Sputnik Brasil da carioca Maria Venâncio, mãe da vítima, que só soube do sangramento por intermédio de uma outra mãe brasileira, cujo filho presenciou o golpe desferido pela auxiliar. O motivo? A criança só tomou a sopa e não queria comer toda a refeição.
Segundo Maria, X. tem diagnóstico inconclusivo do espectro de autismo, uma das suas maiores dificuldades é a alimentação. O caso foi revelado pela Coluna de Terça, que acompanhou a mãe até a Escola Básica Manuel Coco, em Odivelas, na Área Metropolitana de Lisboa (AML).
"Ele tem muita seletividade alimentar, o que é uma das características do autismo. A auxiliar tentou forçá-lo a comer, ele não aceitou, começou um desentendimento, meu filho perdeu o controle emocional, chutou a perna dela, e ela revidou com uma bofetada - palavra usada pela coordenadora - no rosto do meu filho. Isso foi na frente de todas as outras crianças", conta Maria à Sputnik Brasil.
No entanto, de acordo com ela, a coordenadora da escola
omitiu o sangramento ao narrar o episódio e informar que a auxiliar seria transferida no dia seguinte para outra unidade escolar. Maria solicitou que fosse chamada a Escola Segura, uma equipe da
Polícia de Segurança Pública (PSP) especializada nesse tipo de ocorrência.
"A escola não me comunicou que meu filho tinha sangrado. Quando o trouxeram, ele estava com rosto completamente limpo e já estava com mais um casaco por cima da roupa. Os policiais deram o caso meio que como encerrado, porque teríamos que ir à esquadra [delegacia]. Quando cheguei em casa, abrimos o casaco e vimos que o moletom dele tinha mancha de sangue na manga", narra.
Maria fotografou a mancha de sangue e enviou a foto por e-mail cobrando explicações da direção da escola e do agrupamento escolar sobre por que haviam escondido dela o sangramento. Como não houve respostas, voltou ao colégio dois dias depois com outra equipe da PSP.
Segundo a carioca, a coordenadora admitiu, em frente aos policiais, que só soube do sangramento no dia seguinte à agressão, pois não estaria na escola na hora do almoço, e outras auxiliares não haviam comunicado o episódio à direção por não verem necessidade.
Maria ressalta a
gravidade da agressão pelo fato de seu filho estar abarcado pelo
decreto-lei 54/2018, que dispõe sobre a educação inclusiva. A legislação prevê que "o programa educativo individual e o plano de saúde individual são complementares no caso de crianças com necessidades de saúde especiais, devendo ser garantida a necessária coerência, articulação e comunicação entre ambos".
"Para mim, está muito claro um corporativismo das auxiliares. Elas protegeram a colega, porque, no momento em que meu filho recebeu essa pancada e sangrou, a polícia tinha que ser acionada. Ela tinha que ser detida em flagrante por agressão a um menor de idade, abrangido pelas necessidades especiais. Muito pelo contrário, elas limparam a cena do crime e não reportaram à coordenação sobre o sangramento", lamenta.
Escola trata agressão como 'incidente'
Apesar da agressão, X. continua frequentando a escola, com acompanhamento psicológico. A psicóloga explicou a ele, de forma lúdica, que a agressora foi afastada e que ele está supostamente seguro no ambiente escolar. Maria registrou a ocorrência na PSP e acionou advogados para processar a escola.
A Sputnik Brasil enviou três questionamentos à direção da Escola Básica Manuel Coco e do Agrupamento Escolar Moinho da Arroja, ao qual pertence, mas as perguntas não foram respondidas. Em uma nota genérica assinada por "a direção", sem mencionar o episódio de agressão, falando apenas em "incidente" no título, lê-se o seguinte:
"O AE [agrupamento de escolas] Moinho da Arroja desenvolve a sua atividade educativa na procura sucessiva das melhores condições de aprendizagem para a sua comunidade escolar e, com esforço adicional, no estreitar de relações e apelo à participação junto dos seus encarregados de educação", lê-se em um trecho da nota.
Mas a
violência infantil não se restringe à Escola Básica Manuel Coco. Após a repercussão do caso, foi criada uma
petição on-line, no último fim de semana, "Pelo fim da violência contra crianças nas escolas portuguesas". Até o fechamento desta reportagem, mais de 1.350 pessoas já haviam assinado o documento virtual, dirigido ao ministro da Educação e à Assembleia da República.
A petição solicita, ao Ministério da Educação, a elaboração de recomendações, normas e punições sumárias aos responsáveis pelas agressões e abusos, com o objetivo de promover uma rápida mudança de cultura em relação à violência contra qualquer criança nas instituições de ensino portuguesas.
"Requerem ainda que a investigação das queixas de violência contra crianças no ambiente escolar seja realizada por comissão externa à escola, que possa atuar de forma imparcial, incluindo representantes dos encarregados de educação e do corpo discente, considerando que é comum que os pais e alunos sejam descredibilizados quando denunciam situações de violência aos coordenadores ou diretores escolares", lê-se em um trecho da petição.
Da palmatória à alimentação forçada até vomitar
A também carioca Gabriela Morena, consultora em políticas públicas, está nesse grupo de mães silenciadas. Em 15 de dezembro, ela enviou uma carta à coordenação de uma escola no Porto onde estudam suas duas filhas, de quatro e sete anos, denunciando inúmeras situações de violência, como o castigo físico da palmatória. Não recebeu qualquer resposta mais de um mês e meio depois.
De acordo com o documento, as crianças relatam que tapas nas mãos seriam "punição" para alunos que se comportam mal nas aulas. "Estes casos têm o agravante de envolver outras crianças no processo de punição, ao solicitar que segurem as mãos dos amigos durante a aplicação do castigo", lê-se em trecho da carta.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Gabriela relata um tipo de violência similar ao que aconteceu com X., que é a alimentação forçada das crianças, provocando o vômito, em algumas ocasiões. Ela prefere preservar o nome da escola para não a expor e com o intuito de tentar resolver a situação de uma forma positiva.
"Nesse caso específico, a minha filha mais nova foi vítima direta. Obrigam a criança a comer mais rapidamente, dando a comida na boca e, por vezes, a criança vomita. É comum entre os menores. E também aconteceu com a minha. São muitas práticas violentas que mantêm as crianças em constante estado de medo e angústia. É aquele terror de antigamente com exposição da criança por mau comportamento", explica Gabriela.
De acordo com ela, a prática de violência não se restringe às crianças brasileiras, mas é naturalizada pelos pais de alunos portugueses. Segundo a consultora em políticas públicas, que trabalha há anos com a educação, a violência é um traço forte na sociedade portuguesa e se dá contra os vulneráveis: crianças, mulheres, minorias, imigrantes.
A professora de balé clássico Camile Salles está acostumada a cobrar disciplina de seus alunos, mas não da forma como é cobrada de seus filhos, de sete e dez anos, na Escola Básica Integrada Dr. Joaquim de Barros, em Paço D’Arcos, a 20 minutos de Lisboa. Mesmo antes da pandemia, ela e um grupo de outros 16 pais e mães de alunos denunciaram o
comportamento abusivo por parte de uma professora.
Em uma carta enviada à direção da escola e do Agrupamento Escolar de Paço d’Arcos, eles listam uma série de agressões e violências psicológicas que a professora teria cometido contra as crianças: desde bater no braço com força e empurrar a puxar pela camisa, pela orelha até pelo pescoço.
"O que percebi é que ela agride mais os alunos brasileiros, sistematicamente. E outros dois portugueses: um é um menino negro, filho de uma auxiliar da escola. Ela gritava e humilhava demais esse menino. E outro é filho de uma mãe solo que era bastante agitado. Eles estavam vivendo um ambiente de terror total", conta Camile em entrevista à Sputnik Brasil.
Pais e mães pedem afastamento de professora
A bailarina carioca revela que o período de pandemia foi um momento de alívio para ela e seu filho, pois, durante as aulas virtuais, a professora não podia gritar nem ser agressiva, já que as crianças usavam os computadores em frente aos pais. Camile chegou a participar, junto com outra mãe, de uma reunião com a coordenação e a direção da escola para pedir o afastamento da educadora.
No entanto, segundo ela, outras sete mães que estavam presentes no colégio não foram autorizadas a entrar na reunião, e os diretores teriam minimizado as denúncias, chamado as crianças de mimadas e dito que não se podia acreditar em tudo que elas falavam.
Camile, então, encaminhou uma carta assinada por 11 pais e mães, à Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGestE) e Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC), em maio de 2021, mas nunca recebeu respostas.
"Tenho certeza absoluta de que eles têm essa coisa de acobertar. Fizemos uma reunião virtual, e muitas mães reclamaram que seus filhos estavam em pânico. Houve relatos de que a professora pegou uma menina pelo capuz do casaco, quase enforcando, e a levou pelo pescoço até o quadro para escrever. Ela não sabia [resolver a questão] e começou a chorar. [Teve] uma outra menina nova, brasileira, que [ela] puxou a orelha. A mãe transferiu a menina da escola. Eu também queria transferir meu filho, mas ele não quis se afastar dos amigos", detalha.
Camile diz ainda que descobriu outras situações em que a professora, como forma de castigo, colocou uma aluna para assistir à aula sentada no chão, e outras duas, assistindo em pé, além de jogar as provas no chão. Ela conta que chegou a pensar em voltar para o Brasil por conta disso.
A Sputnik Brasil pediu posicionamentos aos secretários de Estado de Educação, João Costa e Inês Pacheco Ramires Ferreira, e à assessoria do Ministério da Educação, mas nenhum deles respondeu até o fechamento desta reportagem.
Fizemos também questionamentos à Escola Básica Dr. Joaquim de Barros e ao colégio no Porto onde estudam as filhas de Gabriela. No entanto, diretores e coordenadores das escolas e respectivos agrupamentos escolares não responderam.