A decisão inédita ocorreu devido à mistura de cerca de 36 mil votos válidos com 157 mil (80%) anulados por não estarem acompanhados de cópia do documento de identificação do cidadão em 139 das 200 assembleias eleitorais do círculo da Europa. A origem da contenda foi uma reclamação do Partido Social Democrata (PSD) junto à Comissão Nacional de Eleições (CNE) sobre a contagem dos votos dos emigrantes.
A rigor, contabilizando ou não os 157 mil anulados, o resultado permaneceria o mesmo, com o PSD e o Partido Socialista (PS) elegendo um deputado cada no círculo da Europa. No entanto, outros partidos, como Livre, PAN, Chega e Volt recorreram ao Tribunal Constitucional (TC) para impugnar o resultado, diferentemente do que publicou no Twitter o ministro Luís Roberto Barroso, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil, no dia seguinte ao pleito.
O TC acolheu parcialmente o recurso do Volt, partido pan-europeu, por considerá-lo mais bem instruído juridicamente. No acórdão, a Corte decidiu que devem ser considerados nulos os votos remetidos por via postal cujos respectivos boletins não tenham sido acompanhados de fotocópia do documento de identificação do eleitor. Mas foi além e determinou novo pleito em 139 mesas eleitorais.
"Em face da grande desproporção entre o volume dos votos declarados nulos e o dos que relevaram para a distribuição dos mandatos neste círculo eleitoral, é perfeitamente possível que a decisão de declarar nulos todos os votos no universo em que se tenha verificado a confusão entre votos válidos e inválidos tenha influído no resultado geral da eleição no círculo, medida pela distribuição de mandatos", lê-se no acórdão do TC.
Na sequência, a CNE decidiu convocar nova eleição para todas as 200 mesas eleitorais do círculo da Europa, nos dias 12 e 13 de março. Os portugueses que emigraram para outros países europeus poderão votar presencialmente ou pelo correio, como ocorreu nas legislativas do dia 30 de janeiro. Porém, a posse da nova Assembleia da República, prevista originalmente para 23 de fevereiro, deve ocorrer, agora, apenas em 28 de março.
A decisão dos juízes pegou de surpresa o próprio presidente português. Antes, Marcelo Rebelo de Sousa estava convicto de que o Tribunal não alteraria a data de posse do novo governo. Já agora, o mandatário admitiu que partiu do princípio de que o TC não anularia as eleições. Apesar de minimizar a situação inédita, responsabilizou os partidos políticos pela lambança eleitoral.
"Isto é uma lição para os partidos. Está decidido. É a democracia a funcionar", relativizou Rebelo de Sousa, citado pelo Expresso.
Para o presidente, a culpa é dos partidos, pois haviam subscrito um acordo que reconhecia como válidos todos os votos por via postal, ainda que não fossem acompanhados com cópia do cartão de cidadão.
Candidato do Volt: 'Anulação de votos é afronta à democracia'
Já o Volt comemorou a determinação do TC como uma decisão determinante na defesa da democracia e dos direitos dos portugueses espalhados pela Europa. Questionado pela Sputnik Brasil sobre por que recorrer ao Tribunal já que o Volt não conseguiria eleger nenhum deputado mesmo que os 157 mil votos fossem validados, Duarte Costa, candidato do partido ao círculo europeu, celebra a repetição da eleição.
"A grande motivação foi a salvaguarda da democracia. Não podemos aceitar que, no resultado de um ato eleitoral, 80% dos votos sejam anulados, em qualquer círculo eleitoral. No círculo da Europa, em que é preciso um esforço que cada eleitor faz para conseguir que seu voto seja contabilizado e, depois no final, vê-lo anulado, é frustrante, uma afronta à democracia e é uma vergonha nacional em 2022 isso acontecer", justifica Duarte Costa.
Já José Palmeira, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade do Minho, vê interesses econômicos dos partidos ao entrar com recursos junto ao TC. Em entrevista à Sputnik Brasil, ele afirma que as siglas que recorreram ao Tribunal não conseguiriam eleger deputados no círculo da Europa, mesmo que os 157 mil votos fossem validados.
"Só se compreende a reclamação por razões de ordem financeira, dado que os partidos recebem uma subvenção estatal em função do número de votos que arrecadam", explica Palmeira à Sputnik Brasil.
Duarte Costa rejeita o argumento do especialista, destacando que o Volt não tem assento parlamentar na Assembleia da República, apesar de tê-lo no Parlamento Europeu.
"O recurso não tem nada a ver com o resultado do Volt e muito menos com perspectivas de subvenção financeira. Somos um partido sem subvenção política, não temos financiamento do Estado nem um departamento jurídico para nos apoiar, como os grandes partidos. Estamos muito satisfeitos e felizes com essa decisão, porque permite que a democracia não seja atropelada e, sobretudo, que 157 mil votos não sejam descartados no lixo", rebate.
Duarte Costa, candidato do Volt à Assembleia da República de Portugal pelo círculo da Europa
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Professor diz que aprovação do Orçamento deve atrasar
Para Palmeira, mais do que prejuízos políticos e financeiros, o que está em jogo neste processo é o dano na reputação que resulta do incumprimento da lei por parte de partidos que devem ser os primeiros a respeitá-la, sobretudo os que têm assento parlamentar e, por isso, são responsáveis pela elaboração das leis e, em caso de discordância, podem promover a sua alteração.
"De resto, há prejuízos financeiros que resultam da repetição do processo eleitoral e custos políticos dado o atraso no início da nova legislatura e na formação do governo, para além do fato de o Orçamento de Estado para 2022 ainda não estar aprovado e só dever aplicar-se ao segundo semestre do ano", ressalva.
José Palmeira, professor de Relações Internacionais da Universidade do Minho
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No entanto, o professor acredita que o episódio não afeta a credibilidade do ato eleitoral. Ele concorda com Rebelo de Sosa que a democracia funcionou, com o TC possibilitando que 80% dos votantes do círculo eleitoral da Europa que viram os seus votos anulados por razões processuais possam agora fazê-lo dentro da legalidade.
"As mesas [eleitorais] que validaram os votos que não cumpriam aquele requisito descumpriram a lei. O fato de isso atingir 80% dos casos levou o TC a ordenar a repetição das eleições no círculo da Europa que elege dois deputados", pontua.