Nesta semana, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado (CRE) recebe ministros e embaixadores para debater as consequências do conflito entre Rússia e Ucrânia.
As audiências requisitadas pela senadora Kátia Abreu (PP-TO), que preside a comissão, buscam esclarecer a posição do Itamaraty e extrair garantias do Executivo federal de que vai minimizar os riscos para a economia brasileira.
"Os produtores brasileiros estão em polvorosa e com razão, não só em função dos fertilizantes, mas diante da guerra com o aumento do petróleo", revelou Kátia Abreu à Agência Senado.
Senadora Kátia Abreu (PP-TO) em seu gabinete em Brasília, 25 de fevereiro de 2021
© Folhapress / Raul Spinassé
A senadora acredita que, ainda que a operação especial na Ucrânia possa ser considerada um "erro estratégico", a postura dos EUA em relação à Rússia seria demasiado hostil.
"Estamos vendo por parte dos americanos um ataque muito frontal aos russos, desnecessário para quem quer fazer um acordo […] Não existe santo nessa história", afirmou a senadora.
A postura de Kátia Abreu parece coincidir com a do ministro das Relações Exteriores, Carlos França. Convidado para audiência na CRE no dia 24 de março, França criticou a imposição de sanções econômicas unilaterais contra a Rússia.
"O Brasil não está de acordo com a aplicação de sanções unilaterais e seletivas. Essas medidas, além de ilegais perante o direito internacional, preservam concretamente os interesses urgentes de alguns países, como o fornecimento de petróleo e gás a nações europeias. Por outro lado, atingem produtos essenciais à sobrevivência de grande parcela da população mundial", disse o chanceler brasileiro.
O ministro admitiu que o Brasil sente as consequências econômicas do conflito, principalmente em função do aumento do preço dos combustíveis e incertezas no tocante ao abastecimento de fertilizantes, essenciais à agricultura nacional.
O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, 20 de janeiro de 2022
© Pedro Ladeira
Interessado em colocar um fim nesse conflito, o Itamaraty sugeriu que o Brasil atue como mediador entre ucranianos e russos.
"A nossa ideia é realmente trazer as duas partes à mesa de negociação. E nesse sentido é preciso ouvir os dois lados", disse Carlos França em entrevista à CNN Brasil. "O Brasil, pela posição que tem de serenidade, de construção de consenso nas Nações Unidas, pode ser sim um facilitador desse diálogo."
Bons ofícios
A proposta de mediação brasileira não surpreende e está de acordo com a tradição diplomática brasileira, disse o embaixador Sérgio Queiroz Duarte à Sputnik Brasil.
"O Brasil tem antigas e construtivas relações com todos os países e sua atuação na esfera internacional sempre se pautou pela busca de conciliação entre interesses divergentes e pelo apreço às normas do direito internacional e aos princípios de boa convivência entre as nações", disse o embaixador. "Certamente esses atributos estariam presentes na sugestão feita pelo ministro de uma eventual contribuição brasileira em prol do entendimento entre as partes em conflito."
O professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, Paulo Wrobel, concorda, mas lembra que a atuação brasileira em mediação de conflitos sempre esteve concentrada no espaço sul-americano.
Embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Costa Filho, discursa no Conselho de Segurança das Nações Unidas durante reunião sobre não proliferação de armas de destruição em massa na sede das Nações Unidas em Nova York, EUA, 14 de março de 2022
© REUTERS / Andrew Kelly
"Nunca exercemos esse papel em termos globais, nossa atuação é restrita à nossa vizinhança e às questões específicas da América do Sul", notou.
Um dos principais atributos de um mediador deve ser o da imparcialidade. Oficialmente, o Brasil adotou uma postura de equidistância, que não condena nem apoia Rússia ou Ucrânia.
"Caberia às partes reconhecer a imparcialidade de qualquer mediador. Em minha opinião, o Brasil tem todas as credenciais necessárias para exercer esse papel no atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia, se ambos assim desejarem", acredita o embaixador Sérgio Queiroz Duarte.
Para Wrobel, no entanto, a postura de equidistância brasileira "também é passível de crítica" e pode ser interpretada como "ficar em cima do muro".
"Não querer desagradar nenhum dos lados também é uma tradição brasileira [...] Mas tenho certeza que há uma certa insatisfação da Ucrânia com o posicionamento do governo", acredita Wrobel.
A fim de demonstrar neutralidade, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, recebeu pessoalmente um avião da FAB vindo da Ucrânia com cidadãos brasileiros, argentinos, ucranianos e um colombiano evacuados da zona de conflito.
Recepção do Governo aos Brasileiros e Estrangeiros provenientes da Ucrânia - Operação Repatriação, 10 de março de 2022
© Clauber Cleber Caetano / Palácio do Planalto / CC BY 2.0
Apesar da proposta de mediação de Carlos França ser "ousada", Wrobel não acredita que ela venha a se concretizar, uma vez que não houve "menções ao Brasil como um possível mediador por parte da liderança russa ou ucraniana".
"Nesta altura não parece provável que o Brasil venha a participar diretamente de um processo de paz, exceto talvez por meio de sua atuação nas Nações Unidas ou estimulando as partes a preferir a via da negociação à do enfrentamento militar", afirmou o embaixador Sérgio Queiroz Duarte.
Organizações internacionais
Nesta quarta-feira, dia 30 de março, em audiência na CRE do Senado, o encarregado de negócios da embaixada da Ucrânia no Brasil, Anatoly Tkach, solicitou ao governo brasileiro que imponha sanções contra Moscou e aja para "isolar a Rússia internacionalmente".
Apesar do pedido, a posição brasileira tem sido de impedir que organismos internacionais sejam paralisados em função do conflito no Leste Europeu. O Brasil não se alinhou a países como EUA, Canadá e aliados europeus, que solicitaram a retirada da Rússia de fóruns internacionais como o G20, que reúne as principais economias mundiais.
"Temos visto o surgimento de diversas iniciativas em organismos internacionais, inclusive naqueles de caráter técnico, no sentido de expulsar a Rússia [...] o Brasil tem sido claramente contrário a essas iniciativas, em consonância com a nossa posição tradicional em favor do multilateralismo e do direito internacional", disse Carlos França ao Senado Federal.
Para o chanceler brasileiro, "o mais importante agora é que todos esses fóruns, o G20, a Organização Mundial do Comércio, a FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura], estejam completamente operantes. Para isso, todos os países, inclusive a Rússia, devem estar presentes".
No entanto, chama a atenção a ausência de organizações internacionais nas negociações de paz entre Ucrânia e Rússia.
Reunião do Conselho de Segurança da ONU em 28 de fevereiro de 2022
© AP Photo / John Minchillo
"Esse é um ponto importante, temos uma organização importantíssima como a ONU, mas que, nesse momento crítico, tem um papel muito pequeno", lamentou Wrobel.
O embaixador Sérgio Queiroz Duarte nota ainda que "as Nações Unidas atuam sempre mediante decisão dos Estados-membros, e não por iniciativa própria, inclusive na busca de soluções para controvérsias".
Segundo ele, "os Estados-membros da ONU conferiram ao Conselho de Segurança a 'responsabilidade primordial' pela manutenção da paz e segurança internacionais". O Conselho, porém, tem sido impedido de agir, uma vez que a Rússia tem poder de veto às decisões do órgão.
"Isso demonstra e confirma, a meu ver, a necessidade de uma reforma que confira maior representatividade, agilidade e legitimidade às decisões do Conselho de Segurança nos casos de rompimento da paz", afirmou o embaixador.
Wrobel concorda que a ausência de organizações internacionais nos diálogos de paz são um "sintoma de que a nossa ordem (ou desordem) internacional precisa ser revista".
"Em última instância, as grandes reformas internacionais se dão depois de grandes conflitos. Mas esperamos que esse não seja o início de um conflito de grande escala", concluiu o especialista.
A Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado Federal brasileiro recebe ministros e embaixadores para debater o conflito entre Rússia e Ucrânia e suas consequências para o Brasil. As audiências são realizadas por requerimento da presidente da Comissão, senadora Kátia Abreu (PP-TO).