Nesta quarta-feira (30), a ministra da Defesa da Alemanha, Christine Lambrecht, se reuniu com seu homólogo norte-americano, Lloyd J. Austin III, no Pentágono, na capital dos EUA, para debater o aumento dos gastos militares alemães.
O norte-americano aplaudiu a decisão alemã de criar um Fundo Especial para as Forças Armadas, com recursos estimados em € 100 bilhões (cerca de R$ 523 bilhões), e aumentar o orçamento militar regular em 7,3%, atingindo € 50,33 bilhões (cerca de R$ 263 bilhões).
O percentual e a velocidade do aumento nos gastos militares são sem precedentes na história alemã, inclusive nos períodos que antecederam as duas guerras mundiais
"A decisão do seu chanceler de fortalecer as Forças Armadas alemães é corajosa e histórica, e nós estamos ansiosos para trabalhar com vocês para implementar essas mudanças importantes", disse o secretário de Defesa dos EUA à sua colega alemã no Pentágono.
O ânimo do secretário é justificado, uma vez que a Alemanha já anunciou a intenção de adquirir caças norte-americanos F-35, produzidos pela empresa Lockheed Martin.
Dois caças Lockheed Martin F-35 da Força Aérea dos EUA sobrevoam a praia de Houlgate, noroeste da França, 6 de junho de 2021
© Foto / JOEL SAGET
"Ainda não temos detalhes de como a Alemanha vai gastar os recursos [do orçamento militar]", disse Maria Khorolskaya, pós-doutoranda em Ciências Políticas e pesquisadora do Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais da Academia de Ciências da Rússia (IMEMO-RAN, na sigla em russo), à Sputnik Brasil.
Segundo Khorolskaya, a Alemanha poderá optar por aumentar investimentos em projetos conjuntos com países europeus, como França, Itália e Espanha, ou concentrar seus gastos em estruturas da OTAN e armamentos norte-americanos.
"A compra dos F-35 nos faz questionar se Berlim quer continuar investindo em projetos como o franco-alemão FCAS", explicou a especialista. "Se a Alemanha de fato diminuir seu interesse nesse projeto, isso poderá gerar insatisfação na França."
O projeto FCAS (Future Combat Air System) seria o primeiro programa de caça multinacional do mundo. O objetivo seria criar uma aeronave de combate avançada que entre em operação em 2040, quando os caças franceses Rafale ficarão desatualizados.
Modernização das Forças Armadas
Khorolskaya revela que diversos setores das Forças Armadas alemãs necessitam de modernização ou enfrentam déficits orçamentários.
"Podemos antecipar uma modernização da frota aérea, com a compra de aeronaves, helicópteros e munição. Teoricamente, também é possível alguma modernização da frota naval e na área logística e de transportes", considerou a especialista.
No caso das aeronaves, além dos F-35 norte-americanos, Berlim tinha planos para a compra de 15 unidades de caças Eurofighter, produzidos em parceria com Reino Unido, Itália e Espanha.
Presidente dos EUA, Joe Biden, fala com o premiê japonês, Fumio Kishida, o chanceler alemão, Olaf Scholz, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, durante cúpula da OTAN em Bruxelas, 24 de março de 2022
© REUTERS / HENRY NICHOLLS
"Também foi divulgada a necessidade de modernizar a infraestrutura de helicópteros de cargas pesadas, com uma demanda de entre 40 e 60 unidades. Apesar da possibilidade de alguma compra de empresas alemãs, a maioria deve ser adquirida de empresas norte-americanas", revelou Khorolskaya. "Novamente o benefício financeiro iria para os EUA."
Indústria nacional alemã
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento da infraestrutura militar não tem sido uma prioridade do governo da Alemanha.
No entanto, na formação do Estado alemão, a partir de 1871, os investimentos em uma base industrial de defesa eram intensos.
"No período da fundação do país, [o chanceler alemão entre 1871 a 1890 Otto Von] Bismarck dizia que a Alemanha seria construída a ferro e sangue, e assim foi", disse à Sputnik Brasil o mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas Bruno Starling.
O autor do livro "Por um lugar ao sol: a construção da política externa alemã de Bismarck a Guilherme II" revela que, na sua origem, a Alemanha nutre forte tradição militar.
Pessoas junto de monumento de pedra comemorando a Grande Guerra pela Pátria (parte da Segunda Guerra Mundial, compreendida entre 22 de junho de 1941 e 9 de maio de 1945, e limitada às hostilidades entre a União Soviética e a Alemanha nazista e seus aliados) no Parque Treptower em Berlim, Alemanha, 8 de março de 2022
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"A história não nos deixa mentir [...] existe sim uma tradição alemã anterior à Primeira Guerra Mundial, se não de ser uma nação belicosa, pelo menos de investir pesado na fabricação de armamentos e áreas correlatas", revelou Starling.
Esses investimentos garantem que a Alemanha tenha, até os dias de hoje, uma base sobre a qual reconstruir sua indústria de defesa.
"Empresas alemãs como a Rheinmetall já ofereceram ao governo contratos de longo prazo de fornecimento de munições, caminhões, tanques, armas antiaéreas e de alta precisão, ainda que não tenham sido especificadas quais", disse Khorolskaya.
A especialista nota que a renovação da frota naval alemã abre caminhos para a empresa ThyssenKrupp Marine Systems, parte do grupo ThyssenKrupp, cuja história remete à unificação do Estado alemão.
Fornecimento de armas letais
Além do engordar da carteira das Forças Armadas alemãs, o chanceler Olaf Scholtz também anunciou o fornecimento de armas letais à Ucrânia, como armas antiaéreas, antitanque e munições, segundo informou Scholtz em discurso no parlamento alemão no dia 23 de março.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha tem evitado fornecer esse tipo de armamentos a partes em conflito como parte de uma política de defesa voltada à não intervenção.
"Mas a Alemanha já tinha fornecido armas letais para os curdos no Iraque", lembrou Khorolskaya. "Na época, a decisão gerou reação negativa em diversos partidos locais e na sociedade civil."
Segundo ela, o fornecimento de armas letais para a Ucrânia foi recebido sem protestos, tanto por parte das forças políticas, quanto da opinião pública.
O suporte à nova política militar de Olaf Scholz contou com apoio das principais forças políticas alemãs, como o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido Democrático Liberal (FDP) e os Verdes.
Militares dos EUA no Aeroporto Albrecht Duerer alemão, a caminho da base militar do país em Grafenwoehr, Alemanha, 1º de março de 2022
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O Partido da Esquerda tampouco se manifestou contrário ao fornecimento de armas letais ou ao aumento de gastos militares, apesar da consequente redução de 2,5% no orçamento da Educação e de 2,9% no orçamento social e do trabalho.
Apesar do consenso, Khorolskaya não acredita que a cautela militar alemã adquirida após a Segunda Guerra Mundial seja revertida de forma irreversível.
Ela lembra que muitos no Bundestag podem não estar prontos para abrir mão de projetos ambiciosos na área de energias renováveis e economia sustentável, previstos no acordo da coalizão de partidos.
Starling, por sua vez, lembra que recursos financeiros não são um problema para Berlim neste momento, e resume: "É sempre preocupante ver uma potência econômica do nível da Alemanha aumentar seus gastos militares".
No dia 27 de fevereiro, o chanceler alemão Olaf Scholz anunciou a criação do Fundo Especial para as Forças Armadas alemãs e o aumento dos gastos militares do país. Pouco mais de um mês depois, em 30 de março, a ministra da Defesa da Alemanha, Christine Lambrecht, realizou uma visita a seu homólogo norte-americano, Lloyd J. Austin III, para debater a cooperação bilateral em defesa.