Panorama internacional

Conflito de longo prazo na Ucrânia pode dividir OTAN, diz especialista

Autoridades ocidentais confirmam que seu planejamento para o conflito na Ucrânia é de longo prazo. A Sputnik explica quem sai ganhando com o prolongamento da crise no Leste Europeu.
Sputnik
Nesta terça-feira (19), o ministro da Defesa da Rússia, Sergei Shoigu, declarou que os países ocidentais têm interesse em prolongar o conflito na Ucrânia "ao máximo" e exercem pressão para que as autoridades de Kiev evitem a assinatura de um acordo de paz.
"Os EUA e os países ocidentais sob o seu controle estão fazendo todo o possível para prolongar ao máximo a operação militar especial. Os volumes cada vez maiores de entregas de armas estrangeiras demonstram claramente as suas intenções de incitar o regime de Kiev a lutar 'até o último ucraniano'", disse o ministro russo.
As declarações de Shoigu vêm após uma mudança na retórica ocidental em relação ao conflito ucraniano. Se no início da operação militar especial russa os EUA e seus aliados pediam a retirada das tropas de Moscou, agora o foco é no fornecimento de armas e treinamento para que as Forças Armadas ucranianas continuem lutando.
Desde o início de abril, autoridades reconhecem que o planejamento ocidental na Ucrânia é de longo prazo. O comandante do Estado-Maior Conjunto dos EUA, Mark Milley, disse acreditar que "este conflito será medido em anos. Não sei se em décadas, mas em anos com certeza".
Na mesma toada, o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, alertou que "devemos ser realistas e perceber que isso vai durar muito tempo".
Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN discursa durante encontro com ministros da Suécia e Finlândia
Recentemente, os EUA confirmaram mais US$ 800 milhões (cerca de R$ 3,5 bilhões) em ajuda militar a Kiev, incluindo o fornecimento de armamentos pesados. Além disso, o presidente norte-americano Joe Biden aumentou o uso das reservas estratégicas de petróleo dos EUA em um milhão de barris por dia para os próximos seis meses.
No entanto, o professor de geopolítica da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Antonio Gelis Filho, lembra que não está claro se "o Ocidente realmente tem interesse em prolongar o conflito, ou se a situação simplesmente saiu de controle".
"Algumas lideranças do Partido Democrata [dos EUA] imaginam poder criar uma situação semelhante à do Afeganistão na Ucrânia, tornando a situação não administrável para a Rússia. Hillary Clinton foi explícita em relação a isso", disse Gelis Filho.
Segundo ele, o prolongamento do conflito forneceria "enorme estímulo à indústria armamentista americana e geraria doações para as campanhas democratas em 2022 e em 2024".
A situação também seria interessante para atender ao interesse de Washington de "impedir a aproximação entre Rússia e Europa Ocidental, especialmente Alemanha e França".
O conflito na Ucrânia contribui, até o momento, para o fortalecimento da unidade da aliança militar ocidental. No entanto, uma guerra de longo prazo poderia gerar mais custos econômicos e políticos para os europeus do que para os norte-americanos, gerando atritos entre os aliados da OTAN.
"O candidato da direita radical francesa Éric Zemmour, por exemplo, afirmou [...] que 'os interesses geopolíticos da França não são os mesmos da Polônia'. Como candidato da franja política que era, pôde falar em voz alta o que muitos já deviam falar em voz baixa", considerou Gelis Filho.
Segundo ele, no entanto, Washington não teria "interesse em mudar a razão de ser da organização, descrita pelo general britânico Hastings Ismay como sendo a de 'manter os russos fora, os alemães embaixo e os americanos dentro'".
As demais regiões do globo também sairiam prejudicadas pela quebra na oferta de fertilizantes e trigo de Rússia e Ucrânia, que geram forte pressão sobre a segurança alimentar mundial.
"E pensar, como fez Hillary [Clinton], que a população da Ucrânia estaria disposta a passar dez, vinte anos nas condições em que vivia a população do Afeganistão, parece-me uma fantasia", considerou Gelis Filho.

Consequências para a Rússia

De acordo com o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Thomas Ferdinand Heye, um conflito de longa duração fortaleceria a imagem da Rússia como "vilão da arena internacional" e aumentaria o "número de baixas e sofrimento".
"Neste sentido, o principal desafio da Rússia é se valer de sua superioridade tática e operacional militar para encerrar o conflito o mais rápido possível e com o menor número de vítimas, principalmente civis", disse Heye.
Gelis Filho, no entanto, lembra que o impacto econômico do conflito tende a pesar cada vez mais sobre os russos, que precisarão de vitórias no campo de batalha para aumentar a tolerância das tropas e da sociedade à situação de conflito.
"Isso será mais grave se a Rússia mantiver a ilusão de que as relações com o Ocidente podem ser normalizadas, deixando-se paralisar", disse Gelis Filho. "Em minha opinião, a possibilidade de tal normalização é muito pequena."
Para ele, a crise econômica poderá ser uma oportunidade, caso a Rússia desenvolva sua indústria nacional, invista em alternativas financeiras e convide empresas não ocidentais para se instalar em seu território.
Nesta quinta-feira (21), o presidente da Rússia, Vladimir Putin, declarou que a "blitzkrieg" econômica do Ocidente contra a Rússia teria falhado, uma vez que o sistema financeiro russo opera com estabilidade.
Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante um evento em 20 de abril de 2022
Ao reconhecer que as consequências das sanções econômicas ocidentais podem se agravar no médio e longo prazo, Putin disse que "o Ocidente não entende que o povo russo se une perante circunstâncias difíceis".

Consequências internacionais

O prolongamento do conflito ucraniano exigirá resposta das principais organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial do Comércio (OMC), sob pena de comprovar sua alegada ineficiência.
"Uma guerra prolongada […] ressaltaria o descompasso entre a realidade do poder do planeta e a incapacidade das atuais instituições globais […] de evitar e conter os conflitos e suas consequências econômicas e humanas", disse Gelis Filho.
Por outro lado, Ferdinand aposta que o conflito ucraniano vai "levantar as organizações internacionais de sua letargia", levando-as a se reformarem e tornarem-se de fato multipolares.
"Acredito que uma guerra de longo prazo despertará a comunidade internacional de sua letargia em relação à necessidade de reformas no sistema ONU e da ordem mundial em geral", considerou Ferdinand. "Não se trata de uma Guerra Fria 2.1. Trata-se do nascimento de um sistema internacional multipolar."

Front interno de Biden

O prolongamento do conflito ucraniano terá consequências diretas para a posição do presidente dos EUA, Joe Biden, perante o eleitorado norte-americano.
Recente pesquisa realizada pelo canal NBC mostra que sete em cada dez norte-americanos tem baixa confiança na capacidade de seu presidente de conduzir bem o país durante o período de guerra.
O presidente dos EUA, Joe Biden, participa de uma cerimônia de assinatura após fazer comentários sobre fundos para ajudar a Ucrânia, no South Court Auditorium do Eisenhower Executive Office Building, em Washington, DC, em 16 de março de 2022
Gelis Filho lembra que "a população norte-americana já dá muitos sinais de estar esgotada com o estado de guerra permanente em que vivem os Estados Unidos".
Com popularidade em 40%, o futuro político de Joe Biden parece depender cada vez mais do sucesso do Ocidente na guerra na Ucrânia.
De acordo com o jornal norte-americano The Washington Post, senadores republicanos interessados em evitar que o conflito ucraniano traga dividendos políticos ao presidente Biden começam a dificultar a rápida aprovação de medidas de apoio a Kiev.
"Quanto mais tempo durar o conflito, quanto mais sucessos a Rússia acumular, mais a pressão dos republicanos sobre Biden aumentará. E se Biden se revelar um passivo eleitoral muito grande — algo perfeitamente possível — será atacado por democratas também", concluiu Gelis Filho.
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