Nesta terça-feira (19), o ministro da Defesa da Rússia, Sergei Shoigu, declarou que os países ocidentais têm interesse em prolongar o conflito na Ucrânia "ao máximo" e exercem pressão para que as autoridades de Kiev evitem a assinatura de um acordo de paz.
"Os EUA e os países ocidentais sob o seu controle estão fazendo todo o possível para prolongar ao máximo a operação militar especial. Os volumes cada vez maiores de entregas de armas estrangeiras demonstram claramente as suas intenções de incitar o regime de Kiev a lutar 'até o último ucraniano'", disse o ministro russo.
As declarações de Shoigu vêm após uma mudança na retórica ocidental em relação ao conflito ucraniano. Se no início da operação militar especial russa os EUA e seus aliados pediam a retirada das tropas de Moscou, agora o foco é no fornecimento de armas e treinamento para que as Forças Armadas ucranianas continuem lutando.
Desde o início de abril, autoridades reconhecem que o planejamento ocidental na Ucrânia é de longo prazo. O comandante do Estado-Maior Conjunto dos EUA, Mark Milley, disse acreditar que "este conflito será medido em anos. Não sei se em décadas, mas em anos com certeza".
Na mesma toada, o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, alertou que "devemos ser realistas e perceber que isso vai durar muito tempo".
Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN discursa durante encontro com ministros da Suécia e Finlândia
© AFP 2023 / JOHN THYS
Recentemente, os EUA confirmaram mais US$ 800 milhões (cerca de R$ 3,5 bilhões) em ajuda militar a Kiev, incluindo o fornecimento de armamentos pesados. Além disso, o presidente norte-americano Joe Biden aumentou o uso das reservas estratégicas de petróleo dos EUA em um milhão de barris por dia para os próximos seis meses.
No entanto, o professor de geopolítica da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Antonio Gelis Filho, lembra que não está claro se "o Ocidente realmente tem interesse em prolongar o conflito, ou se a situação simplesmente saiu de controle".
"Algumas lideranças do Partido Democrata [dos EUA] imaginam poder criar uma situação semelhante à do Afeganistão na Ucrânia, tornando a situação não administrável para a Rússia. Hillary Clinton foi explícita em relação a isso", disse Gelis Filho.
Segundo ele, o prolongamento do conflito forneceria "enorme estímulo à indústria armamentista americana e geraria doações para as campanhas democratas em 2022 e em 2024".
A situação também seria interessante para atender ao interesse de Washington de "impedir a aproximação entre Rússia e Europa Ocidental, especialmente Alemanha e França".
O conflito na Ucrânia contribui, até o momento, para o fortalecimento da unidade da aliança militar ocidental. No entanto, uma guerra de longo prazo poderia gerar mais custos econômicos e políticos para os europeus do que para os norte-americanos, gerando atritos entre os aliados da OTAN.
"O candidato da direita radical francesa Éric Zemmour, por exemplo, afirmou [...] que 'os interesses geopolíticos da França não são os mesmos da Polônia'. Como candidato da franja política que era, pôde falar em voz alta o que muitos já deviam falar em voz baixa", considerou Gelis Filho.
Segundo ele, no entanto, Washington não teria "interesse em mudar a razão de ser da organização, descrita pelo general britânico Hastings Ismay como sendo a de 'manter os russos fora, os alemães embaixo e os americanos dentro'".
As demais regiões do globo também sairiam prejudicadas pela quebra na oferta de fertilizantes e trigo de Rússia e Ucrânia, que geram forte pressão sobre a segurança alimentar mundial.
"E pensar, como fez Hillary [Clinton], que a população da Ucrânia estaria disposta a passar dez, vinte anos nas condições em que vivia a população do Afeganistão, parece-me uma fantasia", considerou Gelis Filho.
Consequências para a Rússia
De acordo com o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Thomas Ferdinand Heye, um conflito de longa duração fortaleceria a imagem da Rússia como "vilão da arena internacional" e aumentaria o "número de baixas e sofrimento".
"Neste sentido, o principal desafio da Rússia é se valer de sua superioridade tática e operacional militar para encerrar o conflito o mais rápido possível e com o menor número de vítimas, principalmente civis", disse Heye.
Gelis Filho, no entanto, lembra que o impacto econômico do conflito tende a pesar cada vez mais sobre os russos, que precisarão de vitórias no campo de batalha para aumentar a tolerância das tropas e da sociedade à situação de conflito.
"Isso será mais grave se a Rússia mantiver a ilusão de que as relações com o Ocidente podem ser normalizadas, deixando-se paralisar", disse Gelis Filho. "Em minha opinião, a possibilidade de tal normalização é muito pequena."
Para ele, a crise econômica poderá ser uma oportunidade, caso a Rússia desenvolva sua indústria nacional, invista em alternativas financeiras e convide empresas não ocidentais para se instalar em seu território.
Nesta quinta-feira (21), o presidente da Rússia, Vladimir Putin, declarou que a "blitzkrieg" econômica do Ocidente contra a Rússia teria falhado, uma vez que o sistema financeiro russo opera com estabilidade.
Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante um evento em 20 de abril de 2022
© Sputnik / Mikhail Tereschenko
Ao reconhecer que as consequências das sanções econômicas ocidentais podem se agravar no médio e longo prazo, Putin disse que "o Ocidente não entende que o povo russo se une perante circunstâncias difíceis".
Consequências internacionais
O prolongamento do conflito ucraniano exigirá resposta das principais organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial do Comércio (OMC), sob pena de comprovar sua alegada ineficiência.
"Uma guerra prolongada […] ressaltaria o descompasso entre a realidade do poder do planeta e a incapacidade das atuais instituições globais […] de evitar e conter os conflitos e suas consequências econômicas e humanas", disse Gelis Filho.
Por outro lado, Ferdinand aposta que o conflito ucraniano vai "levantar as organizações internacionais de sua letargia", levando-as a se reformarem e tornarem-se de fato multipolares.
"Acredito que uma guerra de longo prazo despertará a comunidade internacional de sua letargia em relação à necessidade de reformas no sistema ONU e da ordem mundial em geral", considerou Ferdinand. "Não se trata de uma Guerra Fria 2.1. Trata-se do nascimento de um sistema internacional multipolar."
Front interno de Biden
O prolongamento do conflito ucraniano terá consequências diretas para a posição do presidente dos EUA, Joe Biden, perante o eleitorado norte-americano.
Recente pesquisa realizada pelo canal NBC mostra que sete em cada dez norte-americanos tem baixa confiança na capacidade de seu presidente de conduzir bem o país durante o período de guerra.
O presidente dos EUA, Joe Biden, participa de uma cerimônia de assinatura após fazer comentários sobre fundos para ajudar a Ucrânia, no South Court Auditorium do Eisenhower Executive Office Building, em Washington, DC, em 16 de março de 2022
© Nicholas Kamm
Gelis Filho lembra que "a população norte-americana já dá muitos sinais de estar esgotada com o estado de guerra permanente em que vivem os Estados Unidos".
Com popularidade em 40%, o futuro político de Joe Biden parece depender cada vez mais do sucesso do Ocidente na guerra na Ucrânia.
De acordo com o jornal norte-americano The Washington Post, senadores republicanos interessados em evitar que o conflito ucraniano traga dividendos políticos ao presidente Biden começam a dificultar a rápida aprovação de medidas de apoio a Kiev.
"Quanto mais tempo durar o conflito, quanto mais sucessos a Rússia acumular, mais a pressão dos republicanos sobre Biden aumentará. E se Biden se revelar um passivo eleitoral muito grande — algo perfeitamente possível — será atacado por democratas também", concluiu Gelis Filho.