Apostar em fontes de energia renováveis não é apenas uma questão de sobrevivência do planeta e continuação da humanidade. No mundo moderno, esses investimentos são catalisadores políticos nas relações internacionais e podem até mesmo reduzir os impactos econômicos de outras matrizes de energia essencialmente relacionadas às flutuações internacionais do dólar.
A partir de maio, por determinação do presidente Jair Bolsonaro (PL), será cortado pela metade o imposto sobre importação de painéis solares. O estímulo ao mercado foi visto com bons olhos por Mauro Passos, presidente do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas na América Latina (Ideal), embora ele seja reticente a políticas protecionistas: "Na Alemanha e na Espanha não deram certo".
Central de energia solar Kosh-Agach, na República de Altai, na Rússia. Foto de arquivo
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/ Mauro Passos é um entusiasta do "crescimento da energia solar no Brasil, que superou todas as expectativas". O especialista lembra que há dez anos, "quando começou essa discussão", o país "não tinha nada". A não ser, é claro, como ele mesmo enfatizou, "as condições climáticas perfeitas para o desenvolvimento de uma proeminente indústria de energia cuja principal fonte é o Sol".
A tempestade perfeita
A opinião de Mauro Passos, entretanto, é que apesar do Brasil ser um país tropical, com sol praticamente durante o ano inteiro, o grande "motor" da indústria solar no país foram os preços cobrados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Ele aponta que os constantes reajustes no valor das contas de luz "obrigaram" os empresários e a população a investir em alternativas.
Além disso, em dezembro de 2021, o Congresso Nacional aprovou a lei que criou o marco legal da geração própria de energia. A legislação estabelece regras para consumidores que produzem a própria energia a partir de fontes renováveis, como solar fotovoltaica e eólica.
O presidente do Ideal defendeu a segurança jurídica criada pela norma. Para ele, diante "das mudanças climáticas que têm provocado calamidades mundo afora, o Brasil deve continuar trilhando esse caminho e se aperfeiçoando".
Em março de 2022, o país atingiu a marca histórica de 10 gigawatts (GW) de potência instalada de energia solar. O valor equivale a mais de 70% da capacidade da usina hidrelétrica de Itaipu. Além disso, de 2012 para cá foram investidos mais de R$ 52 bilhões nessa fonte de energia renovável, limpa e sustentável.
Hoje o país tem conectados à rede mais de 930 mil sistemas solares fotovoltaicos, que atendem 1,1 milhão de unidades consumidoras. A tecnologia solar está presente em mais de 5.470 municípios brasileiros, em todos os estados. O uso desse tipo de energia no Brasil ainda se concentra no âmbito residencial — mais de 77% dos sistemas instalados são em casas.
Apesar dos avanços, o Brasil — que é dono de um dos maiores potenciais solares do mundo — ainda está longe de atingir um patamar satisfatório: apenas 1,3% dos mais de 89 milhões de consumidores de energia elétrica do país faz uso do sol para produzir eletricidade, segundo a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar).
Como fugir da dependência da China?
Ao longo da última década, o valor das importações de painéis solares saltou de US$ 5,5 milhões (R$ 27,2 milhões) para US$ 2,3 bilhões (R$ 11,4 bilhões), quase tudo em vendas da China. Recentemente, o país asiático anunciou que o maior parque de geração de energia renovável do mundo será construído na região do deserto de Gobi.
A instalação, graças à energia solar e eólica, oferecerá uma capacidade instalada de 450 GW. Isso fará parte do plano da China de gerar até 1,2 terawatt (TW) de eletricidade verde por ano até 2030. Atualmente o gigante asiático domina a produção de energia a partir de fontes renováveis.
Mauro Passos explicou que, no curto prazo, "não tem como fugir da dependência dos insumos chineses porque a gente não vai competir com os preços da indústria chinesa". Entretanto ele enfatizou que o Brasil já passou pela fase do conhecimento técnico e científico sobre a implementação de painéis solares.
"Temos essa tecnologia. O que não temos é a escala industrial que permita ter preço competitivo. A China controla a Europa também", relembrou, comentando que o país responde por 99% da importação de painéis e peças fotovoltaicas pelo mercado brasileiro.
O governo chinês também faz investimentos massivos na produção de insumos para o funcionamento dessa indústria. Dessa forma, quando as peças chinesas se tornam mais atraentes no mercado internacional (e Bolsonaro, vale lembrar, zerou os impostos sobre placas de energia solar da China), o Brasil tende a perder força ante a concorrência.
E há uma saída para esse cenário? Mauro Passos entende que se houver uma coordenação dos países da América Latina, é possível "fugir dos insumos chineses". O presidente do Ideal entende que a região tem uma excelente condição para isso. "Chile, México e Brasil são países que têm que se aproximar e desenvolver uma indústria latino-americana de energia solar", comentou.
"Há uma dificuldade de integração muito grande. Parece que a cordilheira nos separa da turma do Pacífico. Não sei se é uma questão cultural, resquícios de épocas passadas, mas entendo que há uma certa desatenção a esse problema. Precisamos falar em cooperação latino-americana no âmbito das energias renováveis", acrescentou.
Dolarização: quando a energia fica mais cara
Nos últimos quatro anos, o Brasil conviveu com seguidos aumentos no valor do dólar, causados por inúmeros fatores, como a pandemia de COVID-19 e as constantes crises nas cadeias de abastecimento global. Ao afetar mercados, investidores e empresas, o dólar alto provoca também aumento das contas de luz em boa parte do país.
A hidrelétrica de Itaipu, a maior do país, responsável por atender cerca de 10% de toda a demanda nacional, tem a energia cotada em dólar. Isso significa que, quanto mais o dólar se valoriza em relação ao real, mais cara fica a energia de Itaipu. Quando usinas se valem de combustíveis fósseis, que têm cotações internacionais, o custo da energia no Brasil sobe.
Nesse sentido, a energia solar pode representar uma alternativa às constantes variações de uma economia dolarizada. Embora inversores e painéis fotovoltaicos sejam equipamentos (em grande maioria) importados e, por isso, ficam mais caros quando o dólar sobe, o Brasil detém tecnologia para produzir os seus próprios painéis.
Mauro Passos entende que a falta de investimento e estratégia do Estado impossibilitaram o fortalecimento dessa indústria. Entretanto há outros problemas graves que impedem o crescimento do setor, como o lobby em Brasília pelas indústrias termelétricas. "Estamos vendo isso agora", disse Mauro Passos, "com a discussão sobre a Eletrobras".
Faixas e cartazes de protesto em frente ao Senado Federal, em Brasília, contra a votação da medida provisória (MP) que trata da privatização da Eletrobras, 16 de junho de 2021.
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O especialista denunciou a existência de um "jabuti" na medida provisória (MP) que trata da privatização da Eletrobras. "O objetivo de Arthur Lira [PP-AL] era incorporar na MP 8 GW de energia térmica a gás para as regiões Norte e Nordeste. À Câmara cabe legislar, não é função do presidente da Casa planejar o setor elétrico", afirmou.
"Não se tem gasodutos e nem usinas para atender um 'jabuti' desse tamanho. Além do mais, no Nordeste, pelas boas condições de sol e vento, a energia produzida por essas fontes alternativas já asseguram a autossuficiência energética na região. E Lira sabe disso", comentou.
O especialista denunciou que o Congresso, com a medida, quer assegurar a compra de um bloco de energia elétrica a gás maior que o de Itaipu, "só que com o preço em dólar dez vezes maior. É minha velha tese se confirmando: estão dolarizando a energia".